Textos de orientação
O Punctum tem o prazer de anunciar a chegada de quatro novos textos sob a rubrica Textos de Orientação do site. Os três primeiros textos nos remetem diretamente ao cerne de importantes diretrizes epistêmicas que não devem ser esquecidas quando o assunto é linguagem, gozo e segregação. São eles O monólogo da aparola de Jacques-Alain Miller onde há a delimitação precisa no ensino de Lacan da passagem que ele opera da estrutura da linguagem ao registro de lalíngua; na sequência o Racismo 2.0 de Éric Laurent retoma as impactantes previsões lacanianas do crescente acirramento proporcionalmente intenso da expansão dos ditos “mercados comuns” com a globalização e por sua vez do racismo; e por fim Miquel Bassols em O bárbaro: transtornos de linguagem e segregação elucida com um exemplo prático a distinção norteadora na experiência analítica da segregação que é aquela inerente à estrutura da linguagem, da exclusão social que um sujeito pode sofrer como consequência direta de um não acesso ao campo da linguagem e da fala. O quarto texto A sessão obsoleta de Marcela Antelo está fora dessa série, mas não deixa de se enlaçar com esses outros três anteriores, uma vez que condensa as articulações mais amplas vistas acima ao que se produz no espaço de uma sessão analítica a partir do que de real da presença do analista pode se apresentar, seja a partir do seu corpo físico ou virtual e que está ligado a posta em jogo do desejo do analista, condição para que o encontro de um analisante com o real do seu gozo possa se dar e uma análise acontecer. Desejamos, uma boa leitura a todos!
Bruna Guaraná
Pela comissão de Site e Boletim do XXIV EBCF
Bibliografia e ressonâncias
É preciso avançar no campo social, no campo institucional e nos preparar para a mutação da forma da psicanálise. Sua verdade eterna, seu real trans-histórico não serão modificados por essa mutação. Ao contrário, eles serão salvos se apreendermos a lógica dos tempos modernos[1].
Tomo apoio em Coisas de fineza em psicanálise, já na primeira lição, para conversar com a citação de Miller, em Le neveu de Lacan, afirmando que a psicanálise é um acontecimento e não um fenômeno da civilização. Se é como acontecimento que ela instaura a cada vez, desde Freud, um novo regime de saber, é assim também que coloca no mundo um fazer sempre inédito. Como um modo de operar, que incide na clínica e fora dela, remando contra a maré do movimento do mundo – que em muitos momentos arrasta os psicanalistas –, a psicanálise insiste.
Como remar contra a maré e avançar no campo social ao mesmo tempo? Ao psicanalista cabe tomar posição para que uma análise seja possível, mas sua presença não se faz menos importante fora do espaço de uma análise, ainda que se faça apenas sob transferência, já que não há psicanalista fora dela. Pode-se recolher algo desses efeitos de presença no intenso trabalho que se articula em torno dos laboratórios do CIEN.
Judith Miller, na criação do Boletim Eletrônico do CIEN no Brasil, retoma a lição de Freud que situa a psicanálise em um lugar distinto de uma visão de mundo, uma Weltanshaung, “seja ela progressista ou humanista, baseada na ilusão de deter um saber que dá as soluções dos problemas”[2]. É na inter-disciplinaridade, com hífen, encarnando o signo da invenção, como propôs Philippe Lacadée à Judith Miller, que vem grafado o lugar vazio onde um saber singular pode vir a se alojar: “um laboratório opera uma modificação, uma mutação, uma perspectiva de subjetivação”[3].
Seguindo um pouco mais a citação, Miller afirma que avançar no campo social implica em “uma mutação da psicanálise em sua forma, sem modificar sua verdade eterna, seu real trans-histórico”. Se o CIEN é uma demonstração de que é remando contra a maré que se torna possível avançar no campo social, isso só se faz a partir da posição analisante, como aquela capaz de sustentar a presença do analista no mundo, aquela que se extrai do “real trans-histórico”. Mais uma vez, é no escrito que se aloja a marca do próprio acontecimento, fora de qualquer referência a contextos. Parece-me que é desde esta posição que podemos nos fazer ancoradouro para que acontecimento e sentido se enlacem, num imbricado atar e desatar, a partir do gozo, na remada de cada um.
Andréa Vilanova (EBP/AMP)
Posto que dar essa satisfação é a urgência que a análise preside, interroguemos como pode alguém se dedicar a satisfazer esses casos de urgência[4].
Nesse escrito de 1976, Lacan se coloca parceiro nos casos de urgência, na medida em que não os desconhece e fica a par da condição de urgência que se apresenta na experiência humana. Não por amor ao próximo, mas pelo lugar que um analista pode ocupar diante das urgências de satisfação, a ser levado em conta no tratamento.
Se nos anos 70 ele interrogava a posição do analista frente às urgências – o que o fez não tirar o corpo fora, levando-o, inclusive, a escrever – o que dizermos hoje se o nosso tempo é o de uma eclosão frenética onde a urgência dá o tom da demanda?
Que condições precisam ser manejadas para promover o acontecimento analista em condições tão pouco favoráveis, onde o tempo de compreender é suprimido diante da estupefação frente ao real do gozo opaco e sem lei?
“Persiste a questão do que pode levar alguém, sobretudo depois de uma análise, a se historisterizar ( hystoriser) de si mesmo”[5].
Nessa reunião entre história e histeria, autorizar-se de si mesmo – não sem os outros – e estabelecer-se enquanto analista após uma experiência que encontra o seu limite na satisfação que marca o fim da análise, desloca a questão. É com essa verdade mentirosa que se pode sustentar o “status de uma profissão recém – surgida”[6] promovendo, no espaço de um lapso, o inconsciente.
Os casos de urgência que sempre atrapalham o analista tornam-se, mais do que nunca, um desafio para a psicanálise do século XXI. No manejo de uma temporalidade que não é a da urgência, mas, a de um ato que estabelece pelo corte a reafirmação do analista como par. À maneira de um poema que se escreve e que nos possibilita dizer: analista, presente!
Cassandra Dias Farias (EBP/AMP)
[1] MILLER, J.-A. Le neveu de Lacan. Paris: Verdier, 2003, p. 124.
[2] MILLER, J. “Por que um Boletim Eletrônico do CIEN no Brasil?. Em: https://ciendigital.com.br/index.php/textos-de-referencia/
[3] Ibid
[4] LACAN, J. “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 569.
[5] Ibid. p. 568.
[6] Ibid.
Sobre a II Preparatória. Comentários e perguntas.
O relatório[1] aborda com rigor e de modo bastante vivo a subversão promovida por Freud e Lacan em relação ao tempo e inconsciente. Dá um passo a mais na direção de abordar a subversão introduzida no percurso de uma análise pelo acontecimento analista.
O texto abre um conjunto de questões que suponho irão emergir durante o debate. Antes de endereçar questões para Rosário e para o cartel, vou destacar alguns pontos para começar uma conversa.
Da leitura do relatório, extrai algumas questões que me tocaram. Começo com Freud, que subverteu a sua época com a invenção do inconsciente, inconsciente que desconhece o tempo e é inferido a partir de suas formações e manifestações clínicas interpretadas à luz do que “já estava escrito”. O tempo passa e o inconsciente permanece com seu automatismo de repetição.
Lacan extrai da repetição freudiana uma nova aliança temporal que não é cronológica, é lógica[2]. A subversão temporal lacaniana promoveu inversões importantes. A inversão de perspectiva do inconsciente como o já escrito para o inconsciente a advir conta com a presença do analista que testemunha um roteiro que leva de volta ao futuro. O lugar da determinação inconsciente cede lugar à contingência, retira o peso do que “estava escrito” no inconsciente como um “para sempre” e promove um deslizamento para um “desde sempre”. Daí a importância da presença do analista e o manejo do tempo da sessão regida pelo tempo lógico.
O manejo do tempo incidindo na superfície que se desdobra na fala, ao ser rompida pelo corte do analista, coloca em relevo o furo encoberto pela manta tecida pelo significante e pelo objeto a em sua função de o bordear. Podemos dizer da importância da presença do analista como corte e ato que ao furar a significação inconsciente que se extrai da construção discursiva relacionada à experiência traumática, redireciona a prática analítica para a dimensão real do gozo sem sentido que se experimentou. O que se visa nas letras que escrevem as marcas da vida não é o sentido, e sim, o que do encontro traumático do significante com o corpo se perde, deixa restos que se inscrevem como furo ou excesso.
O relatório aborda modalidades da presença do analista no percurso de uma análise. Analista se presentificando como corte; interpretação como ato incidindo na equivocidade da palavra; ou na repetição como automaton ou na iteração do UM, liberando algo do real do gozo e redirecionando uma análise da repetição para um tempo de invenção. Destaco ainda o analista se presentificando como surpresa, tempo do acontecimento imprevisível, precipitando por um instante fulgurante a irrupção do real e a abertura a um novo modo de leitura e escrita do inconsciente que não se decifra, mas que toca o sentido real.
O fragmento do passe de Anna Aromi nos dá o testemunho de uma re-leitura do que estava escrito, e de uma re-escrita que tem como efeito uma nova experiência de satisfação.
Destaco ainda um aspecto muito valorizado no relatório que enoda o clínico, epistêmico e o político, ou seja, a responsabilidade ética do analista na prática clínica, na instituição ou na interlocução com a cidade, de sustentar uma presença que introduz pausas, intervalos a cada vez que o tempo da urgência regido pelos imperativos e pela pressa, recusa o tempo do inconsciente e sua escansão.
A perspectiva de algo novo na experiência do inconsciente numa análise atravessa o relatório. A presença do analista, instaura uma nova temporalidade que faz acontecimento e o que é da ordem do acontecimento propriamente dito é tudo aquilo que sai do círculo do possível e necessário. O corte ou interpretação que se torna ato, opera na contramão do princípio do prazer: incidindo na conexão S1 – S2 que tende ao infinito, introduzindo o impossível da não relação. Esse é o sentido preciso que Lacan dá à afinidade do tempo e da contingência.
O analista de antemão não sabe o que vai acontecer na sessão, mas sua função o convoca à uma posição de abertura ao indeterminado, à contingência, que fura a regularidade da sessão analítica, abrindo à surpresa. “A surpresa diz respeito a um momento não homogêneo em relação ao restante do tempo”[3], instante relâmpago que se instaura num lapso de tempo em que a presença do analista se manifesta no fulgurar do inconsciente em sua dimensão real, ininterpretável, presentificando o gozo vivificado que reverbera no corpo do analisante.
O terceiro fragmento clínico é muito ensinante sobre os efeitos do manejo do tempo e a presença do analista. A analista se empresta à forma que a paciente inventou de fazer intervalos e utilizar mensagens de whatsapp, possibilitando a construção de uma nova amarração sinthomática construída em torno de um novo uso que faz de sua arte.
O efeito surpresa pode ser também demonstrado no fragmento clínico trazido por Rosário em que a analisante enquanto falava sobre suas crises de pânico em que sente seu corpo fugir, nomeia seu “jeito” de estar com o Outro como “agradador”. O analista, frente ao corte produzido pelo “agradador” ouve um dizer que se lê de outra maneira, significante novo que localiza o gozo do sintoma que toca o corpo.
Na perspectiva trazida pelo relatório, o lugar do analista não se reduz à destinatário do Outro do inconsciente. O analista, ele próprio, sujeitado ao inconsciente estruturado como falha, equívoco, mal entendido; tendo chegado o mais próximo do real em sua experiência de análise, conduz uma análise se oferecendo a encarnar o furo, o trauma, o que perturba a defesa frente ao gozo impossível de negativizar e simbolizar.
As vinhetas clínicas contribuem para demonstrar a intrusão do tempo libidinal que incide e reverbera no corpo falante assim como demonstra o manejo do que permanece vivo e se abre para uma nova escrita e leitura sem os efeitos imaginários e ilusórios do sujeito suposto saber. Interessa-nos interrogar e investigar a cada vez, em cada caso, o efeito do que se extrai de uma análise, que implica, como aponta o relatório, um novo saber fazer com o sinthoma, dando a ele a chance de funcionar não como entrave, mas como modo de uma nova satisfação. Nesse trabalho de corte e reconfigurações e rearranjos sinthomáticos, ou como sublinha o relatório, de um advir de uma nova leitura e escrita, se destaca a questão do objeto a na clínica borromeana, sua função de inscrever um vazio através do qual se enodam os registros R.S.I., dando margem a uma nova articulação da função superfície e tempo.
O relatório nos leva a viajar no tempo do inconsciente. Passamos pelo tempo do a posteriori, pelo tempo presentificado pelo analista como surpresa e seus efeitos disruptivos e pelo tempo escandido no instante de ver, tempo para compreender e momento de concluir.
Concluo, interrogando. O que podemos avançar em torno do manejo do tempo e do que se extrai de uma análise hoje que implica um reviramento na função superfície e tempo?
Podemos supor que o tempo descontínuo introduzido pela manifestação do analista como irrupção do real durante o percurso de uma análise, rompendo as coordenadas do espaço e tempo da sessão, tem alguma afinidade com o tempo da urgência subjetiva?
Glória Maron (EBP/AMP)
[1] N.E.: Comentários e perguntas da autora na II Preparatória do XXIV EBCF, sobre o texto de Maria do Rosário do Rêgo Barros, publicado neste Boletim, a partir do trabalho em cartel composto por Fernanda Otoni Brisset, Flávia Cêra, Patrícia Badari, Cleide Monteiro, Nora Gonçalves, Denizye Zacharias, Marcus André Vieira, Laura Rubião e Maria do Rosário do Rêgo Barros (Mais Um).
[2] MILLER, J.-A. Los usos del lapso. Paidós. Buenos Aires.
[3] _______. A erótica do tempo. Latusa. EBP Seção RJ. 2.000.
Tempo, corte e ato: o acontecimento analista
“Repetir repetir – até ficar diferente
Repetir é um dom do estilo”[i].
O manejo que o poeta Manoel de Barros se permite fazer com as palavras nos oferece uma ocasião para apreender a relação do tempo com a invenção. Repetir até ficar diferente, repetir até extrair da repetição um estilo.
Palavras de poeta que nos levam a interrogar a relação do inconsciente com o tempo, nos introduzindo em uma dimensão que pode subvertê-lo e não só deixando-o fixado em um escrito a ser repetido indefinidamente, para prová-lo como necessário incansavelmente.
Nosso eixo de trabalho vai nos permitir interrogar como se entrelaçam o epistêmico, o clínico e o político na presença do analista em nosso tempo. Um tempo de imperativos de gozo imediato, de objetos prêts-à-porter, que dificultam o consentimento com os intervalos, as suspensões, que estejam a serviço não de formas de evitação do real, mas de precipitação ao ato que tenha valor subjetivo.
Convidamos desde já nossos colegas a nos transmitirem em nosso Encontro como experimentam esse entrelaçamento em sua prática no consultório e fora dele.
O tempo subvertido: Freud
A psicanálise foi inventada por Freud a partir do seu encontro com as manifestações corporais das histéricas, fenômenos de uma época que escapavam às explicações e ao controle da ciência. Freud as escutou e se fez presente de forma diferente dos médicos de sua época. Ele não só as escutou, mas extraiu de sua escuta algo que as re-situava em relação aos fenômenos corporais dos quais padeciam. Freud apostou que as histéricas poderiam dizer algo sobre o que lhes escapava. Ele abriu um lugar de endereçamento para a estranheza que emergia nos lapsos, nos sonhos, nos chistes e assim inventou o inconsciente atemporal que acolhe a repetição e o leva a buscar na textura histórica o que irrompe como acontecimento. Ele recolhe a incidência traumática dos acontecimentos que vêm à tona nessas manifestações. Um passado que se faz presente.
O tempo subvertido: Lacan
Lacan adere à hipótese do inconsciente freudiano[ii] e à subversão temporal que ela introduz. Ele a coloca a trabalho, introduzindo novos elementos para ler o que no presente permanece vivo das marcas deixadas por acontecimentos passados. “Algo comparável a um escrito que é condição da fala e não sua versão acabada. Um ‘desde sempre’, ao invés de um ‘para sempre’”[iii]. O desdobrar linear dos acontecimentos é subvertido pela dimensão do a-posteriori, da retroação e será possível tirar novas consequências dessa reversão temporal. Ao interrogar, ao longo de seu ensino, esse “já escrito”, surge a necessidade lógica da invenção do objeto a que vai incidir na forma de estar presente e de escutar seus pacientes. O manejo do tempo da sessão ganha um lugar decisivo na operação analítica.
O sujeito-suposto-saber em questão
Articulado ao analista como objeto a, Lacan estabelece o matema da transferência a partir do sujeito-suposto-saber, estabelecendo uma “nova aliança entre o tempo e o inconsciente”[iv], que terá consequências no manejo do tempo na sessão e na relação com o saber[v]. Para dar esse passo, Lacan considerou o que se passava no avesso da suposição e foi buscar no tempo lógico a presença do tempo libidinal.
O movimento de retroação temporal que se produz numa análise vai visar na textura dos significantes que emergem e se escrevem no “quadro do saber” [vi]o furo produzido por sua incidência traumática. E a sessão analítica vai ser regida não pelo relógio, fator externo ao que se passa nela, mas pelo que ali acontece.
O analista não se reduzirá a fazer parte do conceito do inconsciente como lugar de endereçamento[vii]. A sua presença incidirá de forma viva no corte e na interpretação em ato. A sessão, portanto, não se orienta pelo tempo em sua duração, mas pelo instante em que fulgura o estava escrito, quando ele se apresenta e se presentifica, pois o inconsciente ganha uma dimensão de separação quando se localiza o objeto em jogo no “já escrito”.
Será na estrutura de mal-entendido, de engano, própria do sujeito suposto saber[viii], que Lacan vai encontrar a possibilidade da emergência do ato do analista. Só quando se consente com o S(A barrado), a falha estrutural no Outro, impossível de anular ou de preencher, é que o ato se dá em sua dimensão de certeza.
No apólogo dos três prisioneiros, o ato de saída da prisão só se torna possível, quando se corre o risco. No a posteriori das escansões, no movimento de uma parada e um partir de novo, que leva à certeza antecipada. Os três tempos lógicos que Lacan extrai desse apólogo: instante de ver, tempo para compreender, momento de concluir, trazem à tona que o que se tem para compreender só leva à saída se permitir uma conclusão enviesada (de travers)[ix]. O tempo para compreender toma outra dimensão a partir do corte e da interpretação que toca na equivocidade da palavra[x]. Não é uma compreensão sem limite na duração da sessão, mas uma compreensão que leva em conta o que faz corte.
O encontro do sujeito com a linguagem produz efeitos no corpo que ficam inscritos como excesso e como furo. Lacan pôde destacar do traumatismo (troumatisme), o furo (trou), naquilo que se produziu como excesso no gozo sem sentido que se experimentou. No movimento de retroação temporal que a experiência do inconsciente em uma análise provoca no encontro com um analista, algo pode acontecer que abre, perfura o excesso que ali se instalou, faz aparecer o vazio.
Nossa questão é de saber como fazer do entrave que representa o sintoma, um modo de circunscrever o vazio, que possa extrair do gozo sua dimensão mortífera, mortificante.
A presença do analista, para tanto, parece crucial para que isso possa acontecer: em uma sessão de análise, uma paciente conta sobre suas crises de pânico em que sente seu corpo fugir. Sem nenhum acontecimento extraordinário que desencadeasse tais crises, fala de seu “jeito” de estar com o Outro, sempre atravessada por um vai-e-vem de preocupações em que ressalta uma grande necessidade de agradar. É quando nomeia esse seu jeito como “agradador”. A analista repete a palavra e, em seguida, corta a sessão ouvindo, da paciente, os ecos da surpresa de uma palavra que nem sequer existe, mas que, no entanto, diz. O analista como corte circunscreve, no que ouve, um dizer que se lê de outra maneira. No “agradador” há um gozo do sintoma que toca o corpo. O corte é sempre uma aposta, ato analítico que visa o gozo alojado na materialidade (moterialité) significante.
O que perfura já estava lá, embora encoberto, a letra no significante, que dá ao objeto a de Lacan um novo lugar, o de inscrever um vazio através do qual podem se enlaçar os registros simbólico, imaginário e real para sustentar o sinthoma. O furo que a letra inscreve no significante abre para um novo saber fazer com o sintoma, dando a ele a chance de funcionar não como entrave, mas como modo de proporcionar uma nova satisfação. Anna Aromi, em seu relato de passe diz:
“O fim de minha análise me permitiu descobrir as letras com as quais minha fantasia foi escrita. Não somente eu pude lê-las – o que já é muito -, mais ainda me servir delas para re-escrever alguma coisa de diferente. A análise, nesse sentido, é como uma re-escrita”[xi].
E ela acrescenta: “A alegria do passe é uma alegria advertida do que não está escrito para sempre, mas a re-escrever constantemente”[xii].
Uma análise é a oferta de um encontro vivo que permite manter aberto o furo que abre a novas escritas, que dá a chance de manejar de forma diferente as letras que marcaram nosso corpo e que tornaram necessária a construção de sintomas, de ficções para tratar o excesso de gozo opaco que elas deixaram.
Uma análise nos ensina que o rodar em círculos da repetição deixa no centro um vazio, que só terá valor de abrir para o novo a partir da operação de corte sustentada pelo analista. Movimento que se desenvolve em espiral[xiii].
Clínica borromeana
O corte faz intervalo não só no que se repete na cadeia significante S1-S2, abrindo para outras leituras, mas por incidir na própria insistência do significante sozinho que não faz cadeia, que J.-A. Miller destacou como reiteração. Em nossa prática contemporânea, essa reiteração fica bem mais evidente. E coloca para o analista uma questão nova: como estar presente, como fazer corte para abrir brechas na insistência de um gozo opaco e sem sentido? O que está em jogo nesses casos não é uma busca de saber, de decifrar o que parece estranho ao sujeito. A demanda vem atravessada por um imperativo de gozo imediato, um mais e mais insaciável. A coragem ética do analista se fará presente em suas invenções para fazer valer pelo corte, intervalos que, em muitos desses casos, se exerce no próprio ir e vir às sessões. E isto torna fundamental a presença do analista com seu corpo em um lugar que provoque um reviramento no tempo e com os cortes possibilitando um novo enodamento entre superfície e tempo[xiv].
Uma vinheta nos ensina sobre os efeitos deste manejo do tempo, ao qual a analista se empresta à forma que a paciente inventou de fazer intervalos e de utilizar mensagens de whatsapp para transmitir suas construções. Ela procura um analista em razão de sucessivos desligamentos do Outro social não conseguindo se fixar ou se envolver no trabalho. Está perdida e imersa em uma multiplicidade de atividades dispersas. Às vezes fala de livros que leu sobre assuntos de seu interesse, mas não faz uso desse saber. Além disso, envia sempre fotos dos seus trabalhos de tecelagem. Após um episódio em que se angustia, suspende o encontro presencial com a analista mantendo só mensagens no whatsapp. A analista, presente como olhar furado, perfura a consistência imaginária e permite uma amarração tecida no manejo do tempo, abrindo intervalos entre o corpo e o pensamento, entre as alternâncias de presença/ausência, entre as dimensões do espaço e do tempo.
O ir e vir serviam de instrumento para a tecelagem que ela ia fazendo por intermédio de sua arte permitindo usá-la em outra função. Com o manejo do tempo a serviço da tecelagem, o analista acontece como presença sutil no tecido das invenções e nos imprevistos ao longo do percurso. Acolher esse tipo de paciente e poder sustentar essa prática como analítica requer tirarmos consequência da clínica borromeana que Lacan nos legou.
Contamos com o que vocês poderão nos transmitir em nosso Encontro do acolhimento em suas práticas de pacientes e de situações que, inclusive, poderiam parecer inaccessíveis à psicanálise, e que, graças à presença viva, em corpo do analista puderam ser tratadas.
A presença real do analista com seu dizer, com seu corpo pode funcionar como testemunha do que se perde[xv]. Esta indicação de Clotilde Leguil é fundamental para pensarmos o analista incluído no conceito do inconsciente[xvi], não apenas como lugar de endereçamento, mas com sua presença viva que contribui para não deixar desaparecer a manifestação contingente do inconsciente e sua função operatória na nossa prática, hoje com as novas demandas motivadas pela urgência de gozo que termina por se transformar em angústia. Quando o imperativo é gozar, o supereu fica solto nas suas exigências, com apoio do que vigora na nossa época. No encontro com um analista, no corpo a corpo da sessão analítica, que implica corte e ato, algo se perde e precisa de uma testemunha, para poder ter efeito de abertura para outra coisa, para algo que possa vir a ser assumido como um estilo, dito pelo poeta, ou como um sintoma, no dizer do analista.
Analista: presente! Como essa afirmativa subverte o empuxo de nossa época a viver o presente, sem passado e sem futuro, que leva a um vale tudo, eliminando a responsabilidade por suas consequências. Em que isso se diferencia do que se indica na frase da canção de Geraldo Vandré, “quem sabe faz a hora não espera acontecer”. Esse saber que faz a hora não é aquele sobre o passado com seu peso de determinismo, nem aquele do futuro como consequência inabalável desse passado. Mas um saber aberto à contingência, tocado pelo imprevisível.
Fiquemos atento às surpresas que a prática do psicanalista nos oferece.
Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros
(EBP/AMP)
[i] Barros, M. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016, p. 16.
[ii] Miller, J.-A. Los usos del lapso. Buenos Aires: Paidós, 2010.
[iii] Barros, R. do R. “Apresentação”. Miller, J.-A. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, p. 7.
[iv] Miller, J.-A. Los usos del lapso. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 14.
[v] Ibid. p. 91-116.
[vi] Lacan, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 254.
[vii] Leguil, C. “Presença do psicanalista como testemunha da perda”. Boletim Punctum Extra. Disponível em: http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/
[viii] Lacan, J. “O engano do sujeito suposto saber”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 339. “Na estrutura do engano do sujeito suposto saber, o psicanalista (mas quem é, e onde fica, quando é – esgotem a lira das categorias, isto é, a indeterminação de seu sujeito – o psicanalista?), o psicanalista, no entanto, tem que encontrar a certeza de seu ato e a hiância (béance) que o constitui”.
[ix] Lacan, J. Seminário Les Non-Dupes Errent. Aula de 09 de abril de 1974. Inédito.
[x] Brousse, M. H. “O equívoco”. Texto apresentado nas Jornadas da ECF, 8-9 de outubro 2011, Práxis lacaniana da psicanálise. “Esse é o princípio que dá ao equívoco seu valor de ferramenta em psicanálise, faz passar da necessidade repetitiva à contingência do possível. Para apreender-se com tal, o equívoco empurra à escrita, arrastão sinthoma até o real e não até o discurso, a um ‘tem sido assim, mas que a um ‘isso quer dizer’”.
[xi] Aromi, A. «Un littoral d’écriture». Mental : revue internationale de psychanalyse, n° 32. Ce qui ne peut se dire, ce qui s’écrit “. Novembro, 2014.
[xii] Ibid.
[xiii] Miller, J.-A. «Os trumains». Lição de 2 de maio de 2007 do curso de J.-A. Miller. A orientação lacaniana. O ultimíssimo Lacan (2006-2007). Versão estabelecida por Pascale Fari e traduzida em português por Vera Avellar Ribeiro. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/20-03-02_los-trumanos.html
[xiv] Lacan, J. Seminário Les non-dupes errent. Aula de 9 de abril de 1974. Inédito.
[xv] Leguil, C. “Presença do psicanalista como testemunha da perda”. Boletim Punctum Extra. Disponível em: http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/
[xvi] Lacan, J. O Seminário, livro 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
O sentido e os seus dejetos
“… a fantasia da Amazon é ter certeza de que a falta será saturada por um objeto do mercado global, que estará tão acessível a todo momento, quanto o saber na internet”[1].
I
Talvez a expressão mais usual para definir a função do analista, pelo menos no nosso meio, seja a de objeto, ou de “semblante de objeto”. O analista faz semblante de objeto.
Ou seja, o analista é aquele cuja presença torna possível que surja em cena, ou na cultura, o objeto, mas de certa forma transformado pela vestimenta do semblante. Penso que essa função de semblante atinge, aliás, não somente o objeto, mas também outras funções que se manifestam em uma análise, como de Outro, ou mesmo de sujeito.
Existe, como se pode ver, uma certa tensão na expressão, entre o objeto, – o objeto desnudo, digamos assim, mesmo que seja hipotético -, e seu caráter de semblante. Esta tensão pode, naturalmente, se manifestar com uma coloração afetiva, como nos mostrou nossa colega argentina Silvia Salman há alguns anos, no seu testemunho de passe.
Silvia defrontou-se, já para o final da sua análise, com um objeto, no caso representado pelo analista, que parece corresponder a esse súbito desnudamento: ela lhe deu o nome de “objeto estranho”, denominação oportuna, meio à la E.T.A. Hoffmann, que insere esse objeto na categoria freudiana do Unheimlich, traduzido em português por infamiliar. É um objeto que surge, não de uma acumulação progressiva de experiências, mas de repente, como na situação contada no texto freudiano, do senhor que irrita Freud ao irromper na cabine do trem onde Freud se encontrava, e que, após alguns segundos, é reconhecido como sendo ele próprio, Freud, cuja imagem lhe fora devolvida por um espelho[2].
II
A língua, assim como as experiências científicas, as relações sociais, ou mesmo uma escolha qualquer feita por alguém, têm algo em comum: todas produzem dejetos, entendidos aqui como seus resíduos finais, depois de cumpridos seus processos de produção.
Quando perguntamos, portanto, de onde vem tal vocábulo, e citamos tal termo grego ou latino, talvez tenhamos a impressão de que se trata de um processo direto, ou evidente. Na verdade, as palavras se formam ao longo de uma história tortuosa, cheia de encontros surpreendentes e de mudanças nos seus significados, o que faz com que nunca possamos ter, na prática, uma certeza absoluta de que tal palavra da nossa língua se origina realmente ou completamente de tal vocábulo latino ou grego, por mais que se pareçam formalmente. Ou então, uma palavra antiga, primitiva, pode ter dado origem a um conjunto extenso de outras palavras, que aparentemente não têm nenhuma relação semântica entre elas. Basta pensar no verbo latino fari, que, além de significar falar na nossa língua, deu origem a outras palavras que são distantes do sentido original: infante, nefasto, e tantos outros.
As palavras, assim como a própria língua no seu conjunto, estão sempre em movimento ao longo do tempo, e vão deixando restos que não são aproveitados explicitamente na produção do sentido. Ou até mesmo conduzem para um sentido oposto ao original. Lembro que na primeira leitura que fiz do Unheimlich freudiano, o que mais me impressionou foi o fato de duas palavras opostas, que em princípio deveriam excluir-se, pudessem significar a mesma coisa: heimlich e unheimlich.
O sentido, portanto, não recobre inteiramente a palavra. A rigor, ele é apenas um dos seus aspectos. Se recobrisse, não existiriam, para citar só dois exemplos, estas importantes produções da língua: a poesia e a ironia, que são maneiras de fazer vacilar a estreiteza do sentido. Em consequência, tampouco haveria o diálogo psicanalítico, que se dá em um espaço no qual se confrontam em permanência o sentido e os seus dejetos.
Em seu texto que chamou de A salvação pelos dejetos, Jacques-Alain Miller nos explica:
“…a descoberta freudiana (…) foi, como se sabe, primeiramente, a desses dejetos da vida psíquica, os dejetos do mental que são o sonho, o lapso, o ato falho e mais além, o sintoma”[3].
E, mais para o final do artigo, Miller define o analista de uma forma que me parece definitiva:
“O que os salva (…) é ter tido êxito em fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso”[4].
Esse novo discurso, chamado por Lacan de discurso do analista, é a maneira de tornar possível um laço social que inclua o dejeto.
Se Miller diz que o analista teve êxito nessa operação de “fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso”, é porque outros, sabendo ou não, fracassaram. Quer dizer, em outros momentos da História, ou mesmo agora, houve e há irrupções do objeto como dejeto da fala. O que há de particular – talvez inédito – no trabalho do analista, é ter incluído essa irrupção em um laço social. Esta é a grande novidade trazida pela psicanálise.
Em outras palavras, o dejeto, se por um lado é incompatível com o sentido, passa a ser, por outro, um componente necessário ao discurso.
Romildo do Rêgo Barros (EBP/AMP)
Presidente do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano
[*] Trabalho para a reunião preparatória do Encontro Brasileiro em 13/05/2021, em mesa (online) com Marcus André Vieira.
[1] LAURENT É., “Gozar da internet”. Disponível em: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/gozar-internet#:~:text=%C3%89ric%20Laurent%20%E2%80%93%20A%20internet%20transforma,portanto%20a%20todas%20as%20coisas.
[2] FREUD S., “O estranho”. Obras Completas. Vol. XVII, p. 309, Nota 1.
[3] MILLER J.-A., “A salvação pelo dejetos”. Correio. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. N. 67. Dezembro de 2010. p. 19.
[4] Ibid. p. 23.
Editorial – PUNCTUM 3
Punctum 3 chega com tudo! Inauguramos o boletim com o vídeo da entrevista concedida por Esthela Solano Suarez que generosamente abriu as portas de sua casa em Paris a Fernanda Otoni Brisset, para nos brindar com um testemunho vivo de sua análise com Lacan e, também, de sua prática como analista, de onde podemos extrair um valioso ensinamento sobre o tema da presença do analista.
Na sequência, o excelente vídeo onde Jésus Santiago destaca do tema Analista: Presente! a dimensão do presente como o tempo que interessa à experiência de uma análise. Ele nos convida a pensar no analista dos nossos tempos como aquele que opera na contramão do tempo da espera, e cujo saber fazer permite sustentar a radicalidade de uma prática orientada pela urgência do ato.
Romildo do Rêgo Barros comparece com um texto de orientação da maior importância: O sentido e seus dejetos, em que trata da presença do analista como suporte da tensão que se estabelece entre semblante e objeto. Ele retoma a definição apresentada por Miller em A salvação pelos dejetos, do analista como aquele que teve êxito em fazer da sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso, e avança propondo pensar no caráter inédito do que Lacan chamou discurso do analista, como o que é capaz de incluir no laço social aquilo que da palavra não é recoberto pelo sentido e que irrompe como dejeto.
O relatório do cartel responsável pelo eixo 2, apresentado por Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros na última preparatória merece ser lido com atenção juntamente com os comentários e perguntas de Glória Maron publicados aqui na sequência. Tempo, corte e ato: o acontecimento analista é um texto que explora em detalhe as consequências da subversão promovida por Freud e por Lacan na relação com o tempo em uma estreita articulação com a clínica borromeana sem perder de vista a dimensão política que faz parte da presença do analista como acontecimento.
Na rubrica Bibliografia e Ressonâncias, as colegas da EBP Andréa Vilanova e Cassandra Dias Farias iluminam aspectos relevantes e abrem brechas de leitura nos pequenos trechos do ensino de Lacan e Miller selecionados pela comissão de Bibliografia.
E para finalizar, a nota de Bruna Guaraná, participante da comissão de site e boletim, que anuncia os textos de orientação de Jacques Allain-Miller, Eric Laurent, Miquel Bassols e Marcela Antelo que acabam de chegar no site do Encontro.
Boa leitura a todos e se você ainda não se inscreveu no Encontro, basta clicar no link abaixo! Não deixe para depois!
Andréa Reis Santos
Pela Coordenação da Comissão de Site e Boletim