Declinações do despertar na experiência psicanalítica

É uma das minhas manias o despertar, é um relâmpago. Ele se situa para mim, quando me acontece, quando acordo. Tenho nesse momento um breve clarão de lucidez, que não dura, é claro. Entro como todo mundo nesse sonho que se chama realidade. (LACAN, J. “RSI”)

 

O que é possível elucidar sobre o despertar, quer estejamos no nível do inconsciente transferencial, interpretável? E do inconsciente real, cuja primazia é dada ao sinthoma como acontecimento de corpo?

Não seria injusto afirmar que o tema do despertar tenha ocupado Lacan ao longo do amplo arco de tempo que abarca seu ensino. Ele mesmo o declara: não é o desejo de dormir, mas o desejo de despertar, que o agita[2].

Diferentemente de Freud, em cuja obra as menções ao despertar foram mais literais e referidas à experiência onírica, com Lacan o despertar ganha um alcance clínico e semântico mais amplo: fulgurações de despertar tornam-se parte da própria experiência analítica, indicando tanto a irrupção de um elemento disruptivo, quanto o limiar que marca o fim de uma análise[3].

O despertar figura no ensino de Lacan como disrupção já no Seminário 2, em seu comentário sobre o sonho da “injeção de Irma”, onde mesmo diante do horror, quando se depara com “o fundo das coisas” no momento da visão angustiante “da carne informe”, Freud “evita o despertar”[4]. Ele não desperta naquele momento humano, demasiadamente humano, em que se costuma acordar para continuar a sonhar[5]. Momento em que o sonhador desperta a fim de evitar um encontro com o real: “quando acontece no sonho alguma coisa que ameaçaria passar ao real, isto os enlouquece de tal maneira que acordam imediatamente, quer dizer, continuam a sonhar”[6]. O sonho aqui significa a imersão na trama das representações e dos discursos que tecem a realidade. O despertar, e o consequente retorno à realidade, é tido por Lacan como um adormecer diante do real.

Suas formulações sobre o despertar se sucedem, ao longo dos Seminários, e também dos Escritos, e estão presentes até o limiar de seu ‘ultimíssimo ensino’, quando aproxima o inconsciente do sonho, e diferentemente da aura otimista da primeira década de seu ensino, prevalece certo desencantamento. No Seminário 25, o momento de concluir, proclama que através da associação livre, Freud estaria apenas sonhando sobre o sonho[7]: “sonhamos com a eternidade. Este sonho consiste em imaginar que despertamos… O inconsciente é precisamente a hipótese que não sonhamos somente quando dormimos”[8]. E “o despertar absoluto, seria a morte”[9].

Quando a experiência que se desborda no espaço de um lapso, onde já “não se tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação)” [10], neste campo em que se atesta o gozo opaco do sinthoma, e já não há franqueamento, dissolução ou liberação, não há tampouco a produção de efeitos de despertar pela via do saber significante[11]. Lacan enfatiza que “somente então temos certeza de estar no inconsciente”, ou seja, de que o inconsciente “seja o real”, em contraponto ao inconsciente transferencial, constituído a partir da transferência e do sujeito suposto saber (o que implica também na suposição de um sujeito ao saber inconsciente). Ao nível do inconsciente real não haveria despertar porque ele é homólogo ao traumatismo, ao inassimilável, ao que faz furo no discurso universal[12].

Neste arco temporal de pouco mais de duas décadas, as relações entre sonho e despertar não se dão de forma unívoca. Lacan as apresenta de diferentes maneiras: às vezes como oposição, ou como alternância, e mesmo como pulsação; às vezes ao modo de uma torção; ora como continuidade, e ora como radical descontinuidade.

Em seu ultimíssimo ensino, ele conduz este binômio às raias do paradoxo, ao propor que o despertar não será mais que um sonho: o sonho do despertar (le rêve du réveil)[13]. O interessante é que pensá-lo deste modo implicará ao mesmo tempo em uma conjunção e em uma disjunção entre sonho e o despertar.

 

Vida da linguagem

Ao aproximar despertar e sonho, Lacan faz uma objeção à concepção de tempo fundada na ideia do eterno, subsidiária do tempo da tradição, o que levou Freud a reunir tempo e eternidade sob a rubrica do amor ao pai[14]. Nessa perspectiva, o despertar seria tributário do real como necessário, ou seja, se despertaria em relação a uma verdade imutável e para sempre a mesma.

A eternidade pode ser concebida, ainda, como ausência do tempo, seja na perspectiva freudiana, para a qual o inconsciente não conhece o tempo, seja no horizonte de uma continuidade ininterrupta, não escandida e sem falhas, como se fosse possível passar o tempo todo a sonhar, embalando-se pelo efeito adormecedor dos discursos, mesmo quando estamos acordados. Nessa perspectiva, despertar seria um modo de continuar a dormir, por outros meios[15].

É a partir deste horizonte que, no Seminário 23, Lacan incita a nos desprendermos da ideia de eternidade[16]. O que se revela, entre outras coisas, em seu sonho de despertar a psicanálise do pesadelo da história[17], que a confinaria num tempo linear, saturado de sentido; perspectiva refratária tanto ao tempo lógico, quanto ao tempo topológico, para os quais, diferentemente do tempo cronológico, não haveria linearidade, sucessão nem continuidade[18].

É nesse contexto que Lacan traz à luz as dimensões da falha e do acontecimento:

O que se passa quando alguma coisa acontece a alguém em consequência de uma falha? Essa falha não está condicionada unicamente pelo acaso… A falha exprime a vida da linguagem, sendo que a vida para a linguagem significa algo muito diferente do que chamamos simplesmente vida. O que significa morte para o suporte somático, tem tanto lugar, quanto vida nas pulsões que provém do que acabo de chamar de vida da linguagem. As pulsões, provém da relação com o corpo, que não é uma relação simples… além disso, o corpo tem furos[19].

 

Pois bem, estão postos aqui, em sequência, a falha, o acontecimento, a vida da linguagem e o corpo. Antes de avançar, é preciso interrogar quanto ao estatuto do real nesse momento do ensino de Lacan: estaria o real fora do tempo? Estaria ainda referido ao que não muda, à natureza e o movimento cíclico dos astros, ao que retorna sempre ao mesmo lugar? Não, o real a essa altura é concebido a partir do acontecimento imprevisto, e este, no âmbito da experiência analítica, não apenas se inscreve no tempo, mas cria o tempo[20].

 

A sessão analítica

No sonho, assim como na sessão analítica, a realidade exterior adormece para que a realidade psíquica possa aflorar. Por isso a sessão, tanto quanto o sonho, não duram. Não se pode viver em permanente estado de sessão analítica[21]. Mas o desejo de despertar também não tem nada de natural, sendo até mesmo contra natural, já que a tendência de todo discurso é o adormecimento.

Diferentemente do sonho que adormece, no lapso de tempo que dura uma sessão, a dimensão atemporal do inconsciente eternizada no desejo de dormir é perturbada. É escandida pela interpretação e pelo corte da sessão, inaugurando a dimensão da surpresa[22], que é um dos nomes do despertar na experiência analítica.

Mas opor de um modo estanque a via dos discursos que adormecem e a via da experiência analítica, como se a primeira fosse deletéria, e a segunda, ao visar o despertar, fosse a boa via, não seria um modo apropriado de abordar a questão, já que estas dimensões se mesclam[23], e mesmo, se relacionam ao modo de uma torção moebiana: na prática da psicanálise temos automaton próprio à regularidade do dispositivo analítico, que poderá se descompletar quando a sessão analítica se reduz a uma escanção, favorecendo à emergência de um real. Nesta direção, o despertar próprio à realidade cotidiana diante do qual o sujeito adormece quando se aproxima daquilo sobre o qual nada quer saber, é atravessado pelo despertar próprio à sessão analítica, que irá “escandir o encontro sempre falho com o real, aquele que acontece entre sonho e despertar”[24].

O despertar no âmbito da experiência analítica, convocará não o real como necessário, em sua eterna permanência; ou mesmo o real como impossível, que se impõe sob os auspícios do impossível de dizer e de simbolizar; mas o real como contingência, que se atualiza na sessão analítica.

 

Trauma, troumatisme[25]

No seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, encontra-se uma das formulações cruciais de Lacan sobre o despertar. Neste seminário, o despertar será abordado através do sonho traumático[26]. Nessa perspectiva, quando o imaginário do sonho evoca visualmente o que está foracluído do simbólico, o despertar se realiza como angústia. Nos sonhos traumáticos, haveria um apagamento da realidade fantasmática, em benefício de um despertar ao real.

Jacques-Alain Miller chama a atenção para o caráter fugidio e transitório das formações do inconsciente: o sonho, o lapso, o ato falho e o chiste, fulguram, e em seguida se eclipsam. Entre as formações do inconsciente, a única que se distingue por sua permanência é o sintoma. O caráter permanente do sintoma se contrapõe ao caráter fugidio das demais formações, a não ser em uma situação muito precisa: quando um sonho se repete, indica um trauma. O sonho recorrente, tem o estatuto de um sintoma, naquilo que o sintoma comporta de “mais real”[27].

Mas o crucial aqui, não é a trama de sentidos que se deslinda enquanto se relata o que se sonhou, mas o tempo necessário à apreensão do objeto a. A reversão temporal própria ao traumatismo torna-se legível, à medida que o passado traumático é atualizado na sessão analítica “pela presença do analista enquanto corpo vivo”[28]. O trauma desregula as relações do sujeito com o tempo, reenviando aos traços de afeto que irrompem como après-coup nos sonhos traumáticos. Será preciso dar lugar à interpretação para que o real do trauma passe da eternidade de um instante que nunca se tornaria passado, ao acontecimento de um dizer, enodando-se, assim, à dimensão real e também mais singular do sinthoma.

O trauma, tal como concebido por Lacan em seu último ensino, decorre da incidência da língua, que enquanto tal, imprime traços de afeto sobre o corpo[29]. É da ordem daquilo de um troumatisme[30]. Lacan forjou este neologismo a partir da equivalência entre trauma e furo no discurso[31], e com ele abordará o trauma como um encontro com o real para o qual o falasser não encontra correspondência no plano simbólico, ponto forclusivo para todo ser falante. Conjugando traumatismo e trou/furo, Lacan abordará o trauma como algo intrínseco à incidência da linguagem sobre o corpo. As marcas de afeto provenientes deste acontecimento não são reabsorvíveis pela trama das significações.

 

O umbigo do sonho e o ininterpretável

O despertar reenviará, ainda, ao umbigo do sonho como cicatriz do trauma. Retomemos, antes das formulações de Lacan, o texto freudiano:

Há frequentemente uma passagem, mesmo no sonho mais completamente interpretado, que tem de ser deixada obscura; isto se deve a que, durante o trabalho de interpretação, damo-nos conta de que neste ponto existe uma meada de pensamentos oníricos que não pode ser desemaranhada… esse é o ponto central do sonho, o ponto onde o sonho mergulha para o desconhecido… É num certo lugar em que essa malha é particularmente fechada que o desejo onírico se desenvolve, como um cogumelo de seu micélio[32].

 

Freud se refere, em seu comentário, ao trabalho de interpretação, o que nos leva a interrogar se haveria um ponto de opacidade prévio ao sentido, algo que já estaria ali, ou mesmo algo próprio à estrutura da linguagem sobre o qual a interpretação tropeçaria; ou se trataria, no texto freudiano, daquilo que se forjará no próprio tecido do trabalho interpretativo, como resto e ponto de convergência[33].

O umbigo do sonho, tal como retomado por Lacan, aponta ao ininterpretável, a um limite onde todo e qualquer sentido se detém: ponto cego, opaco, ao mesmo tempo causa e motor dos sonhos, ou seja, um dos modos de presença do real no sonho[34].

Em “Resposta a uma questão de Marcel Ritter”[35], Lacan articulará o umbigo do sonho ao Unerkannt, ao “não reconhecido”, aproximando-o do recalque originário: “A relação ao recalque originário… é isso o que Freud aponta a propósito do umbigo do sonho. É um trou/furo, é algo como o limite de uma análise. Isso tem evidentemente algo a ver com o Real”[36].

Lacan tece, nesse texto, uma analogia entre a cicatriz umbilical e o que chama de “nó do dizível”, o que implicará, por um lado, que seja considerado como um furo, por onde o sentido se esvai; e por outro, como uma cicatriz, como o que no sonho é a marca de exclusão do falasser em relação à sua origem, índice de que o sonhador reencontra, na tentativa de representar o sonho, o fato de que na raiz da linguagem está o impossível de dizer[37].

 

Letra

Uma aproximação entre letra, sonho e despertar requer a localização de suas coordenadas, ao menos aquelas que no ensino de Lacan nos permitam ensejar este movimento: “A borda do furo no saber, não é isso que ela (a letra) desenha?”[38].

Enquanto a fala engendra sentidos, a escrita vai ao encontro do sem sentido. Por essa razão, é preciso distinguir o significante e a letra. O significante efetua o significado, enquanto a letra é matéria. Não é preciso sair do campo da linguagem para alcançar nela, o que se apresenta como fora do sentido: “A heresia não é sair do campo da linguagem, é permanecer nele, mas regulando-se por sua parte material, ou seja, pela letra (lettre), ao invés de regular-se pelo ser (l’être)”[39], sendo este último, por excelência, o campo da fantasia, do inconsciente como verdade, e da proliferação do sentido.

Nesta direção, encontra-se o apelo à invenção de um significante novo, que será novo não por ser um significante a mais, mas porque não estando “contaminado pelo sono, desencadearia um despertar” [40]. Um sonho somente poderá ser lido sob a égide de uma escrita, à condição de se desprender o campo do ser, para o campo da letra. Perfurando o sentido, ao se soltar da cadeia, a incidência de um significante novo poderá deter a metonímia.

Lacan forjará o sintagma “saber ler de outra maneira”[41], como uma leitura feita a partir da falha, do tropeço, daquilo que joga tanto com o equívoco, quanto com a dimensão do escrito na fala. Este modo de leitura não se apoia sobre o sentido e a significação, mas na materialidade da palavra, ou seja, naquilo que poderá fazer ressoar uma letra de gozo, forjada nos confins do sentido.

Se com a associação livre Freud não terá feito mais que sonhar, se por meio da interpretação significante não se chega a despertar, um sonho terá efeitos de despertar se, cortando a ventilação do efeito de verdade, apontar “à pressão do real do sintoma”[42].

J.-A. Miller articulará a interpretação à leitura, e o sonho à escrita, evocando nesta aproximação a escrita assonante de James Joyce em Finnegans Wake. A escrita joyceana corta o alento do sono[43], “secando” o sentido. Partindo do princípio de que a matéria literária e os sonhos seriam forjados a partir dos mesmos elementos, Joyce produziu uma obra capaz de despertar a literatura de seu sonho[44].

A grande obra joyceana, não apenas leva ao limite uma diluição do tempo histórico, como também forja na própria escrita, acontecimentos de linguagem improváveis, outorgando à subjetividade de sua época outra trama, e ao texto, outra textura. Nessa perspectiva (aquela traçada pelo wake de Finnegans), o despertar coincide com um “acontecimento de linguagem”[45].

 

Os trumains[46]

Tem-se, ainda, no limiar do ultimíssimo ensino, a invenção por Lacan de um novo neologismo. Os trumains, cunhado a partir do trou/furo, em analogia a um objeto extraído do campo da topologia, o toro: “há mais de um furo naquilo que se chama homem. É até mesmo uma verdadeira peneira”, o enuncia, jocosamente. O troué, (furado), marcado pelo troumatisme, também ressoa como true (verdade), a qual Lacan fará alusão em seguida, ao evocar a invenção freudiana, a análise, ao “anunciar a única verdade que conta: não há relação sexual entre Os trumains”: o que há de bizarro nos trumains, prossegue Lacan, “é que ele monopoliza a morte”, l’amort, é como Lacan conjuga em outro neologismo, trumains, amor e morte. E ressalta: “o curioso é que o homem preze muito a sua condição de ser mortal”[47]. Ele prossegue, nesta lição, com os toros e os furos, discorrendo sobre funerais, múmias e rituais de mumificação, o que nos permite apontar a uma espécie de generalização do troumatisme, e não mais o falo ou a castração, como horizonte comum aos trumains. É o inconsciente real, enquanto se inscreve como falha irredutível, cujo modo de inscrição é o furo[48], o que parece estar em jogo aqui.

É sob a perspectiva de que ao nível do sinthoma o despertar não passaria de um sonho, que Jacques-Alain Miller assinala que o ser humano (Os trumains), está condenado ao sonho[49]. O homem tórico, este que gira em círculos, lhe traz à luz, por evocação, os “homens ocos” de T.S. Eliot”. Retomo aqui os primeiros versos deste pungente poema:

Somos os homens ocos
Os homens empalhados

Uns nos outros amparados…
Cachola cheia de crina. Que pena!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos
São surdas, inexpressivas
Como o sopro do vento na relva seca
Ou o trotar dos ratos sobre os cacos quebrados
Em nossa cave seca[50].

 

Miller ressalta, ainda, que o uso deste neologismo no plural (trumains) acentua “isso que do humano é por essência, social”[51]. Essa “sociologia imediata do falasser” se deve à aprendizagem da língua, cuja ênfase é colocada “na tecedura do aprendiz”[52], nos traços de afeto, nas marcas deixadas por lalíngua sobre o corpo: “lalíngua é para cada um algo recebido… é uma paixão, é algo que se sofre… O que Lacan denomina sinthome é a consistência dessas marcas, por isso ele reduz o sintoma a ser um acontecimento de corpo. Algo ocorreu ao corpo devido a lalíngua. Esta referência ao corpo (como consistência de gozo) é ineliminável do inconsciente”[53].

 

Acontecimento de corpo

A referência ao Finnegans Wake de James Joyce é também ponto a partir do qual Lacan formula o sintoma como acontecimento de corpo[54]. Joyce nos mostra que o trauma é aquele da incidência de lalíngua sobre o ser falante[55]. Não se trata aqui do corpo especular, mas do corpo como superfície de inscrição do gozo, cuja irrupção, traumatiza. Já um acontecimento, eclode com sua “dimensão de surpresa antes que se possa estabelecer o sentido desse encontro”[56].

Diferentemente do sujeito do significante, o corpo falante não se faz representar em uma trama de sentidos. Ele reenvia ao traumatismo do sistema da linguagem sobre si próprio, à marca do impossível de dizer que ressoa no dito[57]. Trata-se de um gozo inscrito na palavra, que a própria palavra não alcança dizer: “Se o sintoma é acontecimento de corpo, como dar conta do fato de que o gozo possa escapar ao autoerotismo do corpo e responder ao forçamento de uma jaculação interpretativa?”[58].

Lacan evocará a “jaculação” em sua fórmula jubilatória, onomatopeica, recorrendo à escrita poética para dizer deste forçamento por meio do qual “o analista pode fazer soar outra coisa que não o sentido”[59].

O gozo como acontecimento de corpo tem afinidades com o infinito, dirá Miller, ao aproximá-lo ao gozo feminino, e “isto poderá nos chegar através de um sonho”[60]. Há sonhos cuja leitura tocam diretamente o corpo de gozo.

O trabalho do sonho sob transferência se presta tanto a uma leitura feita ‘espontaneamente’ pelo próprio inconsciente-intérprete, quanto à incidência do desejo do analista, que ao instaurar uma disjunção entre a fala e o sentido, apontará à escrita como letra, em sua materialidade fora do sentido, conferindo legibilidade, assim, ao acontecimento de gozo que determinou a formação do sinthoma, reduzido à sua fórmula inicial, o puro choque da linguagem sobre o corpo[61].

A partir de que tipo de experiência do sujeito, é possível pensar o sonho como acontecimento de corpo?[62] E o que isto tem a ver com o despertar? Há no curso de uma análise, despertares parciais, que se produzem quando a barreira do sentido é transposta[63]. O relato do sonho traz em si um paradoxo, pois ao mesmo tempo que convida à significação, veicula um gozo inominável[64]. Para tanto, é preciso decifrar os sonhos, interpretá-los, percorrer os desfiladeiros do sentido em suas múltiplas associações, consentir com os enredos da significação, até que se converta em um resto fecundo, em um ponto fora do sentido.

Diz-se então, que o sonho como acontecimento de corpo poderá advir como instrumento de um despertar[65], seja como emergência do “real de um efeito de sentido”[66], seja como circunscrição de um furo, ao cingir-se o impossível de dizer.

 

Fulgurações que despertam

Vejamos um fragmento de sonho relatado por Alejandro Reiñoso, em seu primeiro testemunho:

Sério no trabalho analítico, perturbado pelas temáticas mortificantes humilhantes, muitas vezes me encontrava com um sorriso do analista que me inquietava. Um sorriso sem sentido. Do que ele ri? Não entendia, não havia razão nenhuma para rir. Trago um sonho estranho: “estava em um restaurante chinês, saboreei um arroz muito saboroso e comi com prazer. Era um arroz cantonês (Il riso alla cantonese)”. O analista, antes de eu concluir o relato do sonho, recorta o equívoco: – O riso à Lacan-tonese, o riso à Lacan! Nesse momento, explodo de rir, numa risada aberta que envolve todo o corpo; o analista também ri. Mas o que é isso? E o que isso tem a ver com a risada de Lacan? Nenhum sentido. Escrita poética da interpretação que tocou as entranhas. Algo novo que começaria a ter um efeito de leveza e soltura no corpo. Isso habilitou também uma via inédita, a do cômico, que dissolveria parte da vivência séria da existência[67].

 

Antes da conclusão do relato, o analista corta a narrativa, extraindo-lhe um equívoco: o riso à Lacan-tonese. Não o deixa escapar! A leitura pelo equívoco toca o falasser em seu corpo de gozo. O perturba, o subverte e surpreende. A explosão de riso que faz vibrar todo o seu corpo parece instaurar quanto ao regime de gozo, uma mutação, um antes e um depois. O que acontece se dá no âmbito da sessão analítica, num espaço entre o relato do sonho, a intervenção do analista, e seus efeitos.  Ou seja, o acontecimento de corpo não se escreve sem antes ser passível de uma leitura que aponte não a trama de sentidos, mas ao equívoco, que dá lugar ao real de um efeito de sentido, que tem ao mesmo tempo efeito de furo.

Entre sentido e sem sentido, significante e letra, o trabalho de sonho revira a própria trama, destramando o que aparta o significante de sua motérialité, subvertendo a sonolência crônica da linguagem, e eventualmente tocando, com seus chuviscos de real, também o corpo de quem o escuta. “Será possível, do litoral, constituir um discurso tal que se caracterize por não ser emitido pelo semblante”?[68] – indaga-se Lacan em Lituraterra. Um discurso que perfure a barreira do semblante, fazendo passar ao ouvinte o que se escava do vazio por meio da letra? Estariam os sonhadores deste tempo que é o nosso, à altura desses ‘acontecimentos de linguagem’?

Lucíola Freitas de Macêdo (EBP/AMP)

 

[1] Texto originalmente publicado na revista Opção lacaniana, n.84, fevereiro 2022, p.87-98.

[2] Lacan, J. (2011, dezembro). “A terceira”. Opção Lacaniana. (62): p. 25.

[3] Cf. Koretsky, C. (2019) Sueños y despertares: una elucidación psicoanalítica. Buenos Aires: Grama.

[4] Lacan, J. (1985 [1954-55]). O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 197-198.

[5] Lacan, J. (1992, [1969-70]). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 54.

[6] Lacan, J. (2008 [1972-73]). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 76.

[7] Lacan, J. Le moment de conclure, lição de 11 de abril de 1978, inédito.

[8] Idem, lição de 15 de novembro de 1977.

[9] Lacan, J.  Improvisation: désir de mort, rêve et réveil, l’Ane n°3, 1974.

[10] Lacan, J. (1976/2003). “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 567.

[11] Miller, J.-A. (2012). El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, p.184-185.

[12] Idem, p. 9-22.

[13] Idem, p. 263.

[14] Miller, J.-A. (2013). Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, p. 389-390.

[15] Idem, p. 141.

[16] Lacan, J. (1975-76/2007). O Seminário, livro 23, o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 145.

[17] Miller, J.-A. Piezas sueltas, p. 389-390.

[18] Miller, J.-A. El ultimíssimo Lacan, p.184.

[19] Lacan, J. O Seminário, livro 23, o sinthoma, p. 144.

[20] Miller, J.-A. (2004). Los usos del lapso. Buenos Aires, Paidós, p. 234-235.

[21] Idem, p. 244.

[22] Miller, J.-A. (2000). A erótica do tempo. Rio de Janeiro: EBP-RJ, p. 55.

[23] Miller, J.-A. (1987). Despertar, Matemas I. Buenos Aires: Manantial, p. 119.

[24] Idem, p. 120.

[25] Lacan, J. seminário 21, Le no-dupes errent, 19.02.1964. (Inédito).

[26] Lacan, J. (1964/1985). O Seminário, livro 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 59-61.

[27] Miller, J-A. (2015, junho). “Ler um sintoma”. Opção Lacaniana. (70): p. 18.

[28] Miller, J-A. (2000). Op. Cit. EBP-RJ, p. 51-52.

[29]  Miller, J-A. (2004, dezembro). “Biologia lacaniana e acontecimento de corpo”. Opção Lacaniana. (41): p. 54.

[30] Lacan, J. Les non-dupes errent, lição de 19 de fevereiro de 1974, inédito.

[31] Miller, J.-A. (2011, setembro). “A psicanálise, seu lugar entre as ciências”. Correio, n. 69, p. 27-28.

[32] Freud, S. “A interpretação dos sonhos”. (1900) In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 5. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 560.

[33] Vanderveken, I.(2019). “O umbigo do sonho não é um inefável.” XII Congresso da AMP. Disp. em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=traumdeutung&sub=despertar&file=traumdeutung/despertar/20-04-21_lombilic-du-reve-nest-pas-un-ineffable.html.

[34] Mandil, R. (2019). “Sonho e inconsciente real”. XII Congresso da AMP. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/sueno-e-inconsciente-real.html

[35] Lacan, J. (abril 2020) «O umbigo do sonho é um furo – resposta de Jacques Lacan a uma pergunta de Marcel Ritter”. Opção Lacaniana, n. 82, p. 13-20.

[36] Ibidem, p. 14.

[37] Mandil, R. “Sonho e inconsciente real”. Op.cit.

[38] Lacan, J. (1971/2003). «Lituraterra». In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 18.

[39] Miller, J.-A. O ser e o Um, lição de 25 de maio de 2011, inédito.

[40] Miller, J.-A. (2012). El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, p. 145.

[41] Lacan, J. Le moment de conclure, lição de 10 de janeiro de 1978, inédito.

[42] Miller, J.-A., O ser e o Um, lição de 25 de maio de 2011, inédito.

[43] Lacan, J. (1975/2003). “Joyce, o sintoma”. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 566.

[44] Mandil, R. (2003) Os efeitos da letra, Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro: Contra Capa, p. 261.

[45] Miller, J.-A. Piezas sueltas, p. 395-396.

[46] Lacan, J. Le moment de conclure, lição de 17 de janeiro de 1978, inédito.

[47] Ibidem.

[48] Laurent, É. (2016). “Inconsciente e acontecimento de corpo”. Correio, n. 78, p. 32-33.

[49] Miller, J.-A. (2019). “Les trumains”. XII Congresso da AMP. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/20-03-02_los-trumanos.html.

[50] Ibidem.

[51] Miller J.A. El ultimísimo Lacan, p. 185.

[52] Ibidem, p. 190.

[53] Miller, J.-A. Piezas sueltas, p.75.

[54] Lacan, J. (1975/2003). “Joyce, o Sintoma”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 565.

[55] Miller, J.-A. (2010, abril). “Lacan com Joyce”. Correio, n.65, p. 58.

[56] Laurent, É.(2016) O avesso da biopolítica, uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, p. 50.

[57] Laurent, É. (2016, abril). “Inconsciente e acontecimento de corpo”. Correio, n. 78, p. 33.

[58] Laurent, É. (2019). “La interpretación acontecimento”. Virtuália, n. 73. Disponível em: http://www.revistavirtualia.com/articulos/831/destacado/la-interpretacion-acontecimiento.

[59] Lacan, J.(1998, agosto). “Rumo a um significante novo”. Opção Lacaniana. (22): p. 10.

[60] Miller, J.-A., O ser e o Um, lição de 02 de março de 2011, inédito.

[61] Miller, J.-A. (2015, junho). “Ler um sintoma”. Opção lacaniana. (70): p. 21.

[62] Ventura, O. (2020). “Cuando el sueño despierta Un Cuerpo”. Papers 6. XII Congresso da AMP. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/el-tema/papers/papers_006.pdf .

[63] Laurent, É.(2019). «El despertar del sueño o el esp de un son». XII Congresso da AMP. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/template.php?sec=el-tema&file=el-tema/textos-de-orientacion.html.

[64] Ventura, O. (2020). Op. Cit.

[65] Laurent, É. (2020). Op. cit.

[66] Lacan, J. R. S. I. Lição de 11 de fevereiro de 1975, inédito.

[67] Reiñoso, A., Primeiro Testemunho. Ouïr. (Inédito). Cf. “Un despertar poético a la risa”. Papers+Um. XII Congresso da AMP. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/el-tema/papers/01_papers.pdf.

[68] Lacan, J. (1971/2003). “Lituraterra”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 23.


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A poética na fenda entre dois

Analista: presente! Tal frase surgiu a Romildo do Rêgo Barros como um sopro, num instante. Pareceu-lhe poético, estético, um grão a perseguir. Ao me convidar para coordenar a Comissão Científica, disse: “Já tenho o título e se escreve assim: Analista dois-pontos presente ponto de exclamação”. Um título para ser lido: da fala ao escrito. E acrescentou: “É só isto o que tenho. Temos pela frente a tarefa de desdobrá-lo e extrair dele algum ensino”.

Sobre o “desdobrar”, Romildo escreveu:

“O analista, como a mulher, é desdobrável, e isto tem consequências. A primeira delas é que ele, assim como ocorre quando recebe uma demanda de análise, não sabe de antemão o que vai acontecer, e menos ainda quando lança mão do seu computador ou do seu telefone, suplementares do antigo setting […].

Só o tempo dirá com maior clareza os efeitos e o sentido desse acréscimo e desse gesto inédito […]. Uma coisa pelo menos é certa: após essa experiência, nós nos tornamos sem dúvida mais sensíveis à contingência, longe do dogmatismo […]”[2].

 

No desdobrar, uma aposta na abertura ao indeterminado, na contingência que fura o dogmatismo por um gesto inédito. Punctum!, nome do nosso boletim on-line! Nosso encontro acontece no instante punctum da história da psicanálise, quando em resposta à pandemia, a experiência de uma prática on-line aconteceu de forma inédita. “Analista: presente!” faz par com esta novidade, e, como disse Christiane Alberti, “não para denegri-la ou celebrá-la, mas tomando-a como um vetor de nossa investigação”[3].

Ao cair na rede, o “Analista: presente!” logo se desdobrou, dirigindo-se a um S2: “presença do analista”. Mas haveria uma identidade entre os termos? Para Laura Rubião, “Analista: presente!” “transmite, necessariamente, por sua escrita singular, um curioso enodamento entre o que se diz e o que se escreve. Dois pontos, pausa, detenção. Na sequência, o que se enuncia sob o modo exclamativo – presente! – […]”[4].

 

Entre dois pontos

Dois-pontos é um elemento linguístico sem sentido, assemântico, que se intromete entre o analista e o presente. Esse elemento tem um valor de pausa, e eu acrescentaria que instala entre o semântico e o assemântico uma conjunção indeterminada. Entre o analista e o presente não há uma conexão lógica direta, requer-se uma passagem. Sem os dois-pontos e a exclamação, “analista presente” é só um sintagma onde um substantivo se liga ao adjetivo, estabelecendo uma identidade entre os termos: S1-S2.

Mas, pausa lá! Tem dois-pontos no meio do caminho.

Graças a um cochicho de Flávia Cêra, pude ler alhures, em Giorgio Agamben, que o sinal de dois-pontos, numa frase, “[…] inclui também a ‘não-relação’ ou a relação que deriva da não-relação […]”[5]. Ele retoma a metáfora de Adorno, que evoca os dois-pontos como o sinal verde no trânsito da linguagem, bem como os tratados sobre a pontuação, onde se lê que os dois-pontos também ali são classificados “entre os sinais que abrem”[6]. Então, seguindo essa trilha aberta por Agamben, talvez seja possível dizer que também entre Analista e presente haja “uma espécie de passagem sem distância e identificação – algo como uma passagem sem mudança espacial”[7]. Presumo que esse sinal assemântico abre a outra dizmensão (ditmension[8]), tal como escreveu Lacan.  “Que na pontuação esteja presente um elemento assintático e, mais em geral, assemântico, está implícito na conexão constante, com o respiro […] e que age necessariamente como uma interrupção do sentido […] indica onde se deve respirar”[9].

A poética do título assim se desdobra. Sigo com Éric Laurent: Se “Lacan evoca a insistência da carta poética em infringir as regularidades sintáticas”, é porque “há na letra uma insistência de violação. O que interessa a Lacan é a escrita poética como ilha de efração, de irregularidade”[10]. Uma pausa para respirar, corte que abre passagem a uma outra dizmensão, indeterminada, mas que pode acontecer – a poética do título se mostra então como um achado e um tropeço, suporte e vertigem da causa que desagua numa experiência de análise e em cada época.

Falar do argumento e dos eixos de nosso trabalho foi a tarefa que a coordenação do Encontro me incumbiu, hoje, mas me vi num impasse: como apresentar o argumento, uma vez que ele já caiu nas redes? Mesmo que muitos ainda não o tenham lido, como apresentar o mesmo de uma outra maneira?

Ouvi[11] sobre uma conferência onde Esthela Solano contava sua análise com Lacan e fui dormir. O título da Ornicar? especial: Lacan Redivivus! me despertou e eu, nele, ouvia: Lacan: presente! Uma edição fora de série, “sem exegeses eruditas da doutrina, um livro dedicado a torná-lo vivo”[12]. Folheei esse objeto precioso. Li o que ali escreveram aqueles que se analisaram com Lacan, o efeito de real do encontro com um analista: presente!

O frescor do redivivus se fez presente, e eu o segui…

 

Entre a eternidade e o instante

Chama a atenção como nos testemunhos dos analisantes de Lacan, o analista, em ato, corta a rotina como um objeto sonante, perturbador, acolhedor, nunca o mesmo, no par e passo da pulsação temporal que escande o dizer. A presença do gesto, da modulação da voz, seu tom, sua ternura, sua cólera, seu cinismo, seu silêncio participam do tecido de um laço a dois e, mais ainda, de uma subversão. Lemos em cada relato dos analisantes um Lacan diferente, presente em cada um como em nenhum outro, o que ilustra muito bem que, no discurso analítico, “só se trata disto, do que se lê e tomando como o que se lê para além do que vocês incitaram o sujeito a dizer”[13]. O que nos leva a investigar o estatuto do inconsciente e da interpretação na atualidade na clínica.

De Freud a Lacan, onde estamos?

Para Freud, o inconsciente é uma cidade eterna. E o analista, na analogia freudiana, se aproximaria do arqueólogo em sua função de escavar os escombros[14] e interpretar seus resíduos para ler os capítulos apagados da história, devolvendo-lhe um lugar na rede dos sentidos. Mas, tomada no giro da dinâmica da transferência, a presença do analista pode vir a surgir como um obstáculo, fechando a porta do inconsciente.

Lacan, em 1953, lê essa dificuldade apontada por Freud assim: “No momento em que ele [o paciente] parece pronto para formular alguma coisa de mais autêntico, de mais quente do que jamais pôde atingir até então, o sujeito, em certos casos, se interrompe e emite um enunciado que pode ser este: Eu realizo de repente o fato da sua presença[15]. Ou seja, antes da porta se fechar, algo ali irrompe e se precipita na presença do analista. Aproximação e tropeço! Lacan segue perseguindo esse impossível de apreender que a presença do analista evoca, construindo formas para sondá-lo e dele se servir na direção da clínica.

Em “Posição do inconsciente” (1960), Lacan diz que o analista faz “parte do conceito do inconsciente, posto que constitui seu destinatário” e que ele só sustentaria a presença do inconsciente ao “experimentar-se sujeitado à fenda do significante”[16]. Ou seja, a parte destinada ao analista no inconsciente é a que se abisma na fenda do Outro, no furo do significante, uma formulação que parece auspiciar o S de Ⱥ. Em 1964, em uma aula cujo título é a “presença do analista”, nome de um livro[17] fortemente criticado por Lacan, este diz que a expressão presença do analista era muito bela e seria um erro reduzi-la “a essa espécie de pregação lacrimejante, a essa intumescência cerosa, a essa carícia um pouco viscosa…” e afirma em seguida: “a presença do analista é ela própria uma manifestação do inconsciente”[18]. Lilia Mahjoub nos abre o alcance de tal bela expressão:

“[…] as sessões com ele não eram verdadeiramente curtas. Durante estas, ele se levantava, vinha me olhar enquanto eu estava deitada no divã, sorria para mim. Eu queria desaparecer. Eu fechava os olhos como o fazem as crianças que querem se esconder.[19]

É o início do verão, está fazendo muito calor naquele lugar habitualmente fresco que é o 5, rue de Lille. Glória me avisa que posso ir ao escritório de Lacan onde ele me espera. Aninhado em sua poltrona, atrás do divã, ele gesticula para que eu me deite com um ‘Ah, querida, venha’. Acho seus trajes um tanto negligenciados, sua camisa aberta deixando aparecer sua barriga. Fico em silêncio este dia. Ele também. Na sessão seguinte, digo a ele: ‘A última vez, o senhor tinha a sua camisa aberta’. E ele me solta em tom suave: ‘O que eu tinha de aberto?’”[20].

 

Interpretação que descortina o que em si insistia como olhar na cena de sua fantasia. Esta vinheta esclarece que o inconsciente que se abre ali, por um instante, já não é mais o freudiano, e sim aquele que acontece lá onde o analista é sujeitado à fenda que abre… e Lacan fará um percurso até o final do seu ensino para o bem dizer. Ele parece estar no seu encalço.

Ainda, no Seminário 11, ele dirá ser justo o bom senso – aquele do sentido, “que fecha a porta, ou a janela, ou o postigo”, do inconsciente. E “a bela com quem queremos falar está lá detrás”, pedindo para reabrir os postigos. “E por isso mesmo [diz Lacan] que é neste momento que a interpretação se torna decisiva, pois é à bela que temos que nos dirigir”. Para ele, o inconsciente, que se trata de realizar, “ele não está do lado de lá do fechamento, ele está do lado de fora. É ele que, pela boca do analista, apela à reabertura do postigo”. A bela lá fora, surge na boca do analista… se intromete nesta fenda. Impossível de apreender, ela está sempre lá, presente, “em toda abertura, por mais fugidia que seja, do inconsciente”[21].

Se, “no primeiro ensino de Lacan, a interpretação tinha como efeito dar acesso aos capítulos apagados da história, ao que ali estava escrito”, nos escombros da cidade eterna, Lacan segue em seu ensino e “se livra dessa referência à história”[22] lacrimejante, cerosa, viscosa da associação sem fim, através da interpretação que se dirige à bela que passa e não se deixa capturar pela rede dos sentidos.

Esthela Solano conta em seu livro Três segundos com Lacan que, antes de ir ver Lacan, fez uma análise em que as sessões duravam 45 minutos. Ali ela falava, fumava e chorava o tempo todo. Com Lacan, suas sessões eram curtíssimas e as interpretações sem nenhum sentido. Ela não entendia nada, mas furavam a couraça de sentido que tecera na análise anterior. Um dia, ele corta o que ela estava a dizer numa sessão que dura exatos três segundos. Ao atravessar o pátio, ouve o equívoco que o corte evidenciava, e ela ri pela primeira vez, depois de tanto chorar. Para que gastar 45 minutos para chorar quando bastam três segundos para sorrir? O corte desprega o S2 do S1, algo do gozo se libera desse Um que se lê, agora, de outra maneira e a faz sorrir. Tal como precisa Miller, “é preciso que haja um limite ao monólogo autista do gozo. […] – A interpretação analítica faz limite[23]. O analista aí presente é o corte que rompe “na contramão do princípio do prazer […] introduz o impossível”[24]. Uma vinheta que mostra que cada sessão é única e instala o tempo como analista[25], a perfurar o inconsciente repetição para dar lugar ao fulgor do inconsciente intérprete. Esthela Solano seguiu sua análise numa outra posição, sem choro, e os cortes rápidos continuariam até o final.

“A questão não é saber se a sessão é longa ou curta, silenciosa ou falante. Ou a sessão é uma unidade semântica, aquela em que S2 vem pontuar a elaboração – delírio a serviço do Nome-do-Pai, muitas sessões são assim, ou então a sessão analítica é uma unidade assemântica, reconduzindo o sujeito à opacidade de seu gozo. Isso supõe que, antes de ser concluída, ela seja cortada”[26].

 

No caso de Esthela Solano e Lilia Mahjoub, o analista perturba a defesa, perfura sua ficção numa ajuda-contra para fazer percutir a moterialité[27] que faz vibrar o real no dizer. Uma aposta na potência de subversão. Dito de outro modo, o “analisante fala, o analista corta. Não é mais a palavra que faz a coisa, mas o corte que tem o poder de mudar a estrutura das coisas”[28]. O real que não é o mundo, uma vez que “não há nenhuma esperança de alcançar o real pela representação”[29] e o simbólico só pode mentir. Então, só temos o corpo como suporte, não há outro, para vibrar e repercutir o que é da existência. Lacan explora os recursos que permitem ao analista alçar a fenda e fazer vibrar o furo em S de Ⱥ, pois “o forçamento é por onde um psicanalista pode fazer soar outra coisa que não o sentido”[30]:

“[…] depois de longos anos e no meio de desavenças fantasmáticas variadas, eu estaciono um dia meu carro […] em um quarteirão da rue de Lille. Eu abro minha porta e um outro carro adentra no meu. […] eu me precipito à sessão para fazer uma descrição exaltada do acontecimento. Eu o lia como um ato falho que poderia ter tido uma incidência catastrófica. Eu vibrava com as ressonâncias do que poderia ter acontecido. E então, [Lacan] soltou um ‘em suma, isso aí não tem nenhuma importância’. Esta interpretação soou como um: ‘c’est fini’. Era o tempo de despertar dos encantamentos da leitura de todos esses signos. Eu estava confrontado com uma outra espécie de buraco, uma espécie de travessia do deserto, até a saída final”[31].

 

Éric Laurent evoca o instante em que o falasser se depara com o seu exílio da relação que não existe. “Quando atingimos esse ponto, essa ausência do eu (moi)” é onde algo de novo acontece. Lacan sustenta que só aí “estamos no registro do discurso analítico”[32]. Ele verifica a fenda, onde a barra tomba sobre o A, o que instala uma passagem a uma outra dizmensão: da fala ao escrito. Pois, “tudo o que é escrito parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual”[33]. É a este impossível que a interpretação se dirige, a bela com quem se quer conversar. E o que por esta via se abre “não tem a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve”[34], pois se o inconsciente é o que se lê, “o que há de mais próximo daquilo que nós analistas, graças ao discurso analítico, temos de ler – é o lapso”[35]. Isso nos abre à problemática da interpretação corte, assemântica e apofântica[36], quando se alcança uma outra dizmensão:

“Em uma sessão, digo: ‘Acordo todas as manhãs às 5 horas. É a hora em que a Gestapo vem procurar os judeus em suas casas…’ Lacan se levanta, se precipita até mim e acaricia minha bochecha esquerda. E corta a sessão. Num primeiro tempo, fiquei siderada, emocionada. Num segundo tempo, decompus a palavra: geste-à-peau (gesto na pele). Em um terceiro tempo, […] anos depois, pude mensurar o que esse ato de interpretação havia transformado em mim. […] A palavra alemã ‘Gestapo’, por meio de um gesto no corpo, passou para a língua francesa. Um ato de tradução. A doçura desse gesto adoçou minha recusa dessa língua. Esse gesto também fazia um corte, uma refenda ali onde o sujeito é sua própria divisão. Ali onde ele está o mais próximo do real. Havia um antes e um depois”[37].

 

O acontecimento analista aqui, nesse depoimento de Susanne Hommel, faz par com a urgência do tempo de onde não se sai: o tempo do real! Miller irá dizer que “Uma interpretação sempre quer dizer ‘você leu mal o que estava escrito’. […] A interpretação supõe que a própria fala seja uma leitura, que ela reconduza a fala ao ‘texto original’”[38]. E da origem o que temos é o furo, o furo do umbigo, a fenda do real que ressona como um sopro desse exílio, “quando o esp de um laps […] já não tem mais nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos a certeza de estar no inconsciente […] digo: o inconsciente, ou seja, o real”[39].

Lacan, tal como o lê Éric Laurent, nos leva “à passagem entre o inconsciente eternidade ligado à morte e o inconsciente instante próprio ao vivente”[40]. Desde o início de seu ensino, ele persegue o instante em que a porta se abre, o relâmpago que tudo muda e subverte ao ler o mesmo de uma outra maneira, uma nova amarração. Lacan corta e costura e faz da experiência analítica uma prática topológica orientada ao real, fenda aberta ao indeterminado, à espreita dessa bela inapreensível, fora do sentido, com sua potência subversiva. Se para Freud o inconsciente é Roma, a cidade eterna, para Lacan, o inconsciente acontece num instante em Baltimore ao amanhecer.

 

O tempo da escolha: o indeterminado que subverte

Portanto, quando Romildo do Rêgo Barros, diretor da EBP, enunciou o título do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – Analista: presente! –, tal convite se desdobra em dois caminhos enodados sob um mesmo giro: se, por um lado, evoca o analista presente na experiência analítica, por outro lado também faz par com a época e evoca a presença da psicanálise na cidade. Podemos ler aí um convite para que os diversos colegas analistas da EBP extraiam da sua experiência uma lupa para ler o grão de real alojado no laço inexorável do discurso analítico com o sintoma social, e que se mostra presente na transversalidade pulsante dos debates que se impõem na pauta do dia como questões de Sociedade e que, consequentemente, ressoam na atualidade da clínica, desdobrando-se em questões de Escola.

O analista de orientação lacaniana não é indiferente ao espírito do seu tempo, à subjetividade da sua época, ao que repercute no sinthoma de cada um. Hoje, o sonho democrático encontra-se ameaçado em diversos sítios do planeta. A guerra contra a Ucrânia configura-se “uma das grandes tragédias históricas deste século, que já vem se mostrando como um século da anti-democracia”[41]. Discursos totalitários brotam em campos supostamente democráticos, cujo efeito, como dissera Lacan, tem sido “a segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes”[42]. No Brasil, estamos em um momento decisivo, cuja urgência diz respeito ao risco eminente de o fascismo aqui se instalar. E isso nos diz respeito, pois “não há escola sem fazer escolhas, não há escola sem partido, sem tomar partido anti-fascista”[43]. Não existe psicanálise sem democracia, portanto, estamos aí engajados, porque “a indiferença não se mantém um segundo na economia do discurso analítico, desde que há o desejo do analista”[44], enfatiza Miller em “Ponto de basta”. A experiência analítica nos ensina, tal como podemos ler nas vinhetas que trouxe aqui, que basta um instante para que uma subversão aconteça, mudando a direção dos ventos que sopram. É este o sentido da palavra augenblick[45].

“O instante é desse modo o presente que, de repente, ganha um sentido, é a própria existência, subitamente mobilizada, que se ilumina presentemente em suas possibilidades as mais próprias, tornando-se por isto e de alto a baixo, afrontamento ou resignação, resolução ou abandono, liberação ou servidão, diante da alternativa que a intima a decidir por si mesma escolhendo”[46].

 

Neste instante, o que está em jogo é um projeto de sociedade e a democracia, irredutivelmente, é a escolha analítica. Portanto, engajar-se nos debates em pauta, infiltrando ali o grão da diferença absoluta que não se deixa normatizar, concerne à ética da Psicanálise, em sua função compensatória, como pulmão artificial. Analista presente, então, brilha, mais ainda, como um respiradouro, face aos impasses crescentes da civilização, que hoje flerta com o extremismo genocida do pensamento único que atropela as soluções singulares, diversas e inéditas, como se fosse possível tudo determinar. Contudo, a matéria que orienta a nossa prática é o gozo, cujo real dissolve toda pretensão de encerrar o que quer que seja em uma última palavra.

Comecemos, então, por perguntar sobre a forma como a existência e o impossível se enlaçam e perfuram o espírito da época. Afinal, a experiência analítica vocifera: o ser sexuado só se autoriza de si mesmo e de mais alguns outros[47], e o analista, também! A Escola é uma comunidade dos que não fazem comunidade; a lógica da segregação é a coletiva; a psicologia individual é a social. Como a psicanálise faz par com a urgência de nossa época? Como furar a muralha da segregação, da homofobia, enfim, do racismo “com mais costuras do que cortes que permitam a circulação de novas palavras, de tribos diversas, enlaçados de um novo modo na Babel da nossa época?”[48]. A comunidade da EBP, pela singularidade que lhe causa, não é indiferente às consequências do racismo estrutural enraizado no Brasil, tal como podemos ler na última edição de Correio Express, com Marcus André:

“(…) o genocídio negro define-se por um jogo em que estamos todos envolvidos. Não é o racismo individual, que tanto causa polêmicas e pedidos de prisão, nem mesmo o institucional, o de uma empresa, que se resolve com uma política de cotas. É o racismo de toda uma sociedade que envolve cada um de seu lugar próprio. E talvez haja uma contribuição própria de Lacan ao debate. É que na clínica psicanalítica o termo “estrutural” só existe para localizar de que modo o sujeito pode ser chamado a participar da subversão dessa estrutura”[49].

 

Sim, é esta a aposta, pois não existe uma concatenação determinada e o indeterminado guarda uma subversão possível, um corte que inaugura um novo modo de ler, de fazer, de saber e de viver. Um novo laço social pode advir num instante aberto à não relação entre dois pontos. O XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano é um convite a investigar a relação e a não relação entre a consistência e inconsistência, existência e ex-sistência, determinação e indeterminação, gozo e ausência, materialidade e furo, corte e costura, o impossível e o laço, na atualidade da experiência analítica, onde no vivo de cada caso participa o vivo da época, a partir de três eixos de investigação:

I – O analista presente no espaço de um lapso?

II – O tempo, o corte e o ato: o acontecimento analista.

III – O impossível e o laço: o analista e a época.

A responsabilidade do analista aí se desdobra, como analista e como cidadão, para perfurar o totalitarismo que vier se apresentar em qualquer dimensão, na clínica ou na política, visando entre dois pontos, a abertura que dá passagem a um respiro.

De repente, eu realizo o fato de sua presença no que se passa, se perde, se transforma. O insondável, o incabível, o irredutível se faz intruso e, num claro instante, esclarece que há um infinito que sopra da junção mais íntima de um laço a dois.

Faz escuro, mas eu canto…[50]

Analista: presente!

 

Aguardamos os desdobramentos da nossa aposta no indeterminado que subverte, onde quer que esteja presente a experiência analítica da EBP.

Fernanda Otoni Brisset
Coordenadora da Comissão Científica do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.

 

[1] N.E.: Texto apresentado pela autora no dia 5 de maio de 2022, na atividade de lançamento do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano “Analista: Presente!”.

[2] BARROS, R. R. “Analista: Presente! (em circunstâncias e tempos diversos)”. Punctum, n. 0. Disponível em: http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/analista-presente-em-circunstancias-e-tempos-diversos/

[3] Intervenção de Christiane Alberti, Presidente da Associação Mundial de Psicanálise, na Assembleia Geral da Escola Brasileira de Psicanálise, em 30 de abril de 2022.

[4] RUBIÃO, L. “Analista: presente!”. Punctum, n. 0. Disponível em: http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/analista-presente/

[5] AGAMBEN, G. “A imanência absoluta”. In: ALLIEZ, E. Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000. p. 171.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem.

[8] Ditmension é um neologismo usado por Lacan e traduzido por Sérgio Laia em português como dizmensão. Em 1976, por ocasião da última lição do Seminário O sinthoma, Lacan esclarece que esse neologismo, por sua homofonia, faz-se ler de uma outra maneira: “Dizmensão é mensão do dito. Essa maneira de escrever tem uma vantagem: permite prolongar mensão [mention] em mentira [mensonge], indicando que o dito não é de modo algum forçosamente verdadeiro.” Cf. LACAN, J. O seminário, livro 23: O Sinthoma. (1975-1976) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 141.

[9] AGAMBEN, G. 2000, op. cit., p. 173. O autor conversa, aqui, com a Gramática de Dionísio Trácio e com os primeiros tratados de pontuação. Cf. MASMEJAN, J. H. Traité de la ponctuation. Paris: I-F. Bastien, 1781.

[10] LAURENT, É. “A interpretação: da escuta ao Escrito”. Correio, São Paulo, n. 87, p. 37, 2022.

[11] Agradeço a Andrea Orabona a gentileza dessa referência, em momento tão oportuno.

[12] MILLER, J.-A.; ALBERTI, C. (Dir.) Ornicar?, Lacan Redivivus, Paris: Navarin éditeur, 2021. Texto de contracapa. Tradução nossa.

[13] LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 39.

[14] FREUD, S. “Construções na análise”. (1937) In: FREUD, S. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. p. 345. (Obras incompletas de Sigmund Freud)

[15] LACAN, J. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. (1953-1954) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. p. 52. Grifo do autor.

[16] LACAN, J. “Posição do inconsciente”. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 848.

[17] Marcela Antelo escreveu sobre esse livro, de Sacha Nacht, no artigo “A sessão obsoleta”, publicado em Opção Lacaniana, São Paulo, Ed. Eolia, n. 30, p. 55, 2001.

[18] LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. p. 121.

[19] MAHJOUB, L. “Le tourbillon de la vie”. In: MILLER, J.-A.; ALBERTI, C. (Dir.). Ornicar?, Lacan Redivivus. Paris: Navarin éditeur, 2021. p. 359. Tradução nossa.

[20] MAHJOUB, L. « …s’aille à mourre ». La Règle du Jeu, n. 75, 2011. Tradução nossa. Disponível em: https://laregledujeu.org/2011/10/12/7330/s-aile-a-mourre%c2%a0/

[21] LACAN, J. 1988, op. cit., p. 125-126.

[22] LAURENT, É. 2022, op. cit., p. 66.

[23] MILLER, J.-A. “O monólogo da aparola”. Opção Lacaniana online, nova série, São Paulo, ano 3, n. 9, nov. 2012.

[24] Ibidem.

[25] MILLER, J.-A. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: EBP, 2000. p. 52.

[26] MILLER, J.-A. “L’interprétation à l’envers”. La Cause freudienne, Paris, n. 32, p. 13, jan. 1996.

[27] Neologismo criado por Jacques Lacan reunindo na palavra moterialité os vocábulos mot (palavra) e matérialité (materialidade).

[28] MILLER, J.-A. « Os Troumains ». Lição de 2 de maio de 2007 do curso de J.-A. Miller A orientação lacaniana. O ultimíssimo Lacan (2006-2007). Versão estabelecida por Pascale Fari e traduzida em português por Vera Avellar Ribeiro. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/20-03-02_los-trumanos.html

[29] LACAN, J. La troisième. Paris: Navarin éditeur, 2021. p. 17.

[30] LACAN, J. “Rumo a um significante novo”. Opção Lacaniana, São Paulo, Ed. Eolia, n. 22, p. 10, ago. 1998.

[31] LAURENT, É. “Apprendre à lire, ou le trajet d’une letter”. In: MILLER, J.-A.; ALBERTI, C. (Dir.) Ornicar?, Lacan Redivivus. Paris: Navarin éditeur, 2021. p. 367. Tradução nossa.

[32] LAURENT, É. 2022, op. cit., p. 73.

[33] LACAN, J. 1985, op. cit., p. 49.

[34] Ibidem, p. 47.

[35] Ibidem, p. 51.

[36] Éric Laurent, desdobra o alcance de tal interpretação: “A problemática da interpretação assemântica introduz uma dimensão híbrida entre o significante e a letra, ao passo que toda uma parte do ensino de Lacan os opõe. Ela dá conta do fato de que Lacan vem a opor a interpretação e a fala. ‘A interpretação analítica […] incide de uma forma que vai muito mais longe do que a fala. A fala é um objeto de elaboração para o analisando, mas o que acontece com os efeitos do que diz o analista – porque ele diz –, não é trivial formular que a transferência desempenha nisso um papel, mas isso não esclarece nada. Tratar-se-ia de explicar como a interpretação incide e que ela não implica necessariamente uma enunciação’”. Em: LAURENT, É. 2022, p. 65-66.

[37] HOMMEL, S. Uma história de família no tempo do nazismo. Correio, São Paulo, n. 87, p. 31-32, 2022.

[38] MILLER, J.-A. 2000, op. cit., p. 54.

[39] LACAN, J. “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. (1976) In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 567.

[40] LAURENT, É. 2021, op. cit., p. 366.

[41] AVRITZER, L. “Guerra, democracia e soberania. A terra é redonda”. 5 mar. 2022. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/guerra-democracia-e-soberania/?doing_wp_cron=1650251667.0410819053649902343750.

[42] LACAN, J. Petit discours aux psychiatres de Sainte-Anne. (1967) Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/1967-11-10.pdf. Acesso em: 3 ago. 2017.

[43] Comentário de Maria do Rosário do Rêgo Barros, na Assembleia Geral da EBP, em 30 de abril de 2022

[44] MILLER, J.-A. “Ponto de basta”. Opção Lacaniana, São Paulo, Ed. Eolia, n. 79, p. 30, 2018.

[45] Augenblick é o termo usado por Heidegger para se referir a o instante. Em Miller (2018, op. cit., p. 26), lemos como Beaufret realiza a preciosa tradução desse termo em francês, observando o sentido antigo das palavras: “a melhor tradução do alemão Augenblick seria, em francês, choix (escolha), pois o sentido antigo de choisir (escolher) é voir (ver)”.

[46] BEAUFRET, J. De l’existentialisme à Heidegger. Introduction aux philosophies et autres textes. Paris: Vrin, 2000. p. 58 apud MILLER, 2018, op. cit., p. 26.

[47] LACAN, J. Le séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent. 1974. Inédito.

[48] Mensagem que me foi enviada por Margarida Assad e que orientou com precisão a questão.

[49] VIEIRA, M. A. “Meus dias de branco”. Correio Express, 18 abr. 2022. Disponível em: https://www.ebp.org.br/correio_express/2022/04/18/meus-dias-de-branco1/

[50] MELLO, T. Faz escuro mas eu canto. São Paulo: Global Editora, 2017.


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Relatório do Comitê de Ação: A psicanálise virtual

O uso do virtual na psicanálise se disseminou, nos últimos dois anos, como uma prática consoante à era digital, dominante no estado atual da civilização. Nesse período, grande parte dos analistas membros da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) passou a fazer uso extenso de instrumentos multimídia, razão pela qual podemos tomá-lo como um genuíno laboratório experimental do qual se pode retirar ensinamentos a respeito de seu impacto[2] sobre a própria psicanálise. Ao colocar em questão esses usos na experiência analítica, a proposição de Jacques-Alain Miller e Angelina Harari para o Comitê de Ação da Escola Una constitui-se, portanto, como uma oportunidade ímpar para interrogarmos, à luz do ensino de Lacan, a presença desses objetos técnicos-virtuais no âmbito das Escolas da AMP. Diante da ausência de leituras mais aprofundadas sobre a atualidade clínica desse problema, fez-se necessário recolher um vasto campo de observações críticas que os analistas extraem de experiências em que o virtual é um componente importante.

O motor propulsor do uso em grande escala da psicanálise virtual foi a crise que se instalou no planeta a partir de novembro de 2019, com o surgimento de uma peste viral altamente contagiosa e mortífera. A imposição de medidas emergenciais de isolamento e restrição do convívio social fez com que as pessoas dos quatro cantos do mundo, já adaptadas à chamada desconexão[3], se vissem constrangidas a lockdowns, fechamentos de fronteiras e proibições de viagens. Na esfera da experiência analítica, as consequências recaíram sobre as limitações de deslocamento do paciente para encontrar seu analista. O virtual aparece, portanto, como um recurso viável para tratar e mesmo suplantar esse entrave à efetuação do ato analítico.

A disseminação e a acessibilidade a esses objetos técnicos tornam a interação humana permeada pelo virtual um fato corriqueiro e banal. Diante disso, indaga-se também: não teria chegado o momento para o contato remoto em tempo real acontecer entre analista e analisante? Para isso, bastaria acionar o compartilhamento instantâneo entre dois pontos, via internet, conectando o dispositivo do analista com o de seu paciente! Como se sabe, é marcante para a reflexão dos especialistas que a experiência digital se caracteriza pela desterritorialização, ou seja, “o não estar presente”[4]. É o caso então de se interrogar acerca das condições da experiência que acontece por meio dessa modalidade de interação. Se a vida on-line implica que as pessoas se encontrem desatreladas de um enraizamento espaço-temporal, qual é o efeito desse “não estar presente”, ou do “desprendimento do aqui e agora”[5], para o encontro virtual com o analista? Enfim, para a prática lacaniana, é insuficiente postular que o virtual se estabelece no alinhamento com a “subjetividade da época”[6]. É preciso alargar o campo dessas interrogações para o de sua interferência no âmbito do “desejo do analista”, princípio ético que consiste no motor da prática analítica?

A psicanálise é uma prática em que a materialidade da palavra está implicada de modo singular[7]. O próprio analista resulta de sua experiência com a fala, na medida em que busca dar conta do modo de gozo que o habita; depois, como leitor do discurso do inconsciente do sujeito, que aposta no dizer para assegurar-se de algo do gozo do sintoma que o anima, em detrimento das vivências repetitivas de indiferença e exclusão[8]. Falar da prática analítica sob a interferência do virtual se inscreve no horizonte da análise crítica e permanente que os psicanalistas devem fazer para que o discurso analítico não tenha seu emprego degradado[9].

A prática analítica é uma experiência suficientemente definida e limitada enquanto tal, a partir da descoberta do inconsciente estruturado como uma linguagem e articulado por cada sujeito em um discurso. O discurso do inconsciente supõe uma falta essencial, uma perda que, desde Freud, foi localizada na sexualidade. Em contraposição, o uso do virtual na experiência da análise carece de mais esclarecimentos e formalizações clínicas; coloca em questão a experiência do falasser. Constata-se ainda que as inferências da tecnologia, favorecida pelos recursos possibilitados pela internet, foram penetrando gradualmente o setting analítico: mensagens de texto, registros de sonhos, prints de conversas são exemplos do uso de Apps como órgão de memória externo. A substituição em massa do encontro presencial pelas sessões on-line, bem como seu pagamento por Pix, veio por uma contingência, mas favorece nossa conversação para avaliar em que medida a ingerência da técnica no discurso atual preserva ou compromete os princípios éticos do procedimento analítico[10].

Para encorajar os psicanalistas membros da AMP a falar sobre essa experiência, o Comitê de Ação: A psicanálise virtual propôs um estudo exploratório, por meio de uma plataforma de pesquisa on-line[11], sobre a atualidade dos usos do virtual, que teria continuidade em um recolhimento abrangente de experiências clínicas. Destaca-se o fato que esse método foi inspirado pelos psicanalistas da International Psychoanalytique Association (IPA), que tomaram a iniciativa, já há alguns anos, para validar a psicanálise por telefone[12]. Nosso objetivo não foi o de obter respostas conclusivas nem estabelecer uma doutrina sobre a psicanálise virtual, mas poder levantar opiniões e questões para orientar nossa Conversação.

O questionário contém dezoito questões fechadas e uma aberta, seguida de uma sondagem sobre disponibilidade para uma contribuição particularizada da experiência. A décima quinta questão visa o recolhimento das dificuldades. Enviou-se, assim, para cada um dos membros da AMP declarado Analista Praticante (AP) ou Analista Membro de Escola (AME), de acordo com os anuários das sete Escolas da AMP, disponíveis em seus sites.

O quadro a seguir permite mostrar que a adesão dos membros da AMP à pesquisa não foi expressiva. Por outro lado, a maioria daqueles que respondeu à décima nona questão enfatiza a importância da iniciativa para lançar o debate entre nós. O conjunto das respostas dos analistas ao questionário mostra um panorama das Escolas em relação à psicanálise virtual:

 

 

ESCOLA

(Numeração por ordem de fundação)

 

Nº de membros

 

Nº de questionários enviados

 

Nº de questionários respondidos

 

“Seu ponto de vista sobre a psicanálise virtual”

 

Demanda de contribuição escrita

 

Nº de textos recebidos

1.ECF 431 431 104 55 10 6
3. EBP 258

11 outras escolas

247 101 59 10 9
2. EOL 527

10 aderentes

27 outras escolas

500 10 8
4. ELP 262

23 não declaram ser AP

239 326 198 10 3
5. NEL 139

9 outras escolas

130 10 5
6. SLP 128

2 outras escolas

126 53 23 10 4
7. NLS 218

67 outras escolas

151 35 25 10 5
Total 1.983 1.823 619 360 70 40

 

A ECF se manifestou de preferência problematizando a psicanálise virtual. Alguns de seus membros sinalizaram o surgimento de coisas inéditas por telefone; outros pensam que o virtual pode ser usado, mas de maneira pontual; alguns reforçaram que a presença dos corpos é indispensável, ao menos no início. Poucos mencionaram a função de manter o laço transferencial durante a pandemia; e a maioria acha que a psicanálise virtual não é possível, não é psicanálise.

A EOL, a SLP e a NEL[13] consideram a psicanálise virtual possível. Destacaram sua utilidade para manter o laço transferencial durante a pandemia em situações emergenciais e quadros de angústia. A maioria considera que só é aplicável quando já há um certo percurso de análise. O modo virtual “pode ser combinado com o presencial”, “produz efeitos analíticos”, “veio para ficar”. Há quem considere possível iniciar uma análise on-line e, na mesma proporção, quem ache “que a entrada em análise não se dá pelo modo virtual”.

A EBP se adaptou muito bem à psicanálise virtual. Os analistas que, antes da pandemia, recusavam a sessão on-line passaram a usá-la. É a Escola mais otimista em relação ao futuro da psicanálise virtual: “veio pra ficar”, “não tem volta”, “difícil retroceder”, mas “é preciso intercalar com sessões presenciais”. Foi também a Escola que mais colocou questões sobre a presença do analista, o limite do ato analítico, a necessidade do corpo a corpo, a possibilidade ou não da entrada em análise e do final de análise.

A SLP defendeu a utilidade da psicanálise virtual como “uma forma de manter a psicanálise viva”, “para situações singulares”, “para pacientes em trânsito”, “para pacientes fóbicos”. Em contrapartida, muitos analistas foram taxativos: “não faço”, “nunca pratiquei”, “inviável”, “não substitui a presencial”.

A NLS considera a psicanálise virtual um meio necessário apenas para situações de isolamento, urgência e distanciamento geográfico. De maneira geral, não são favoráveis. Acham que produz efeitos terapêuticos, mas não toca o real. Notaram desinibição para falar, mas também inércia.

Em relação aos analisantes: na sua maioria, os pacientes dos analistas da ECF recusaram a sessão por telefone. Alguns interromperam, talvez por ser “muito ligado à imagem real” ou porque “faz consistir demais o objeto voz e a imagem”. Os que aceitaram circunstancialmente se opuseram ao uso do vídeo.

Muitos pacientes e analistas em formação da EOL, ELP e NEL recusaram o modo virtual. Outros, contudo, querem continuar com as sessões on-line. Um certo número de pacientes que tinha interrompido por causa de deslocamento geográfico retomou o trabalho de transferência. A preferência foi pelo uso exclusivo do áudio. O recurso do vídeo leva à interrupção do trabalho analítico em pouco tempo.

Na EBP, muitos pacientes declararam preferência pelo modo virtual. Outros interromperam o trabalho para retornar depois da pandemia. Os analistas, por sua vez, registraram que a psicanálise virtual é “extenuante”, “cansativa” e “interfere no desejo do analista”.

Um analista em formação da SLP precisou lançar mão da psicanálise virtual e sinalizou efeitos terapêuticos sobre a transferência.

Na NLS, os analisantes manifestaram sentir falta do deslocamento e do jogo de presença/ausência das sessões presenciais.

Os analistas das sete Escolas partilharam de uma mesma recomendação: “a psicanálise virtual é desaconselhável para psicóticos”. Para crianças e adolescentes, prevaleceu a opinião de ser impraticável, mas teve alguns pareceres contrários. Uma outra proposição presente nas respostas de todas as Escolas foi o limite da psicanálise virtual para os fins da psicanálise pura: “não leva ao final de análise”. Por isso a psicanálise virtual foi enfatizada como uma experiência limitada.

Considerou-se o uso da psicanálise virtual para favorecer os outros dois pilares da formação do analista: a supervisão on-line e a formação permanente nas Escolas, por meio de um modelo híbrido para a transmissão.

O convite para a contribuição clínica relançava as dificuldades com a prática da psicanálise virtual. Destacou-se o ponto mencionado por Jacques-Alain Miller, em 1999, concernente à função essencial da presença em carne e osso na análise para o tratamento do real.

Se ver e conversar não faz uma sessão analítica. Na sessão, dois estão ali juntos, sincronizados, mas não estão ali para se ver, como o demonstra o uso do divã. A co-presença em carne e osso é necessária, mesmo que seja apenas para trazer à tona a não relação sexual. Se sabota-se o real, o paradoxo se apaga. Todos os modos de presença virtual, mesmo os mais sofisticados, vão tropeçar nisso[14].

 

Nessa entrevista, Miller cogitou que o movimento geral de virtualização em curso desde as ultimas décadas do século XX não contaminaria a psicanálise pela própria especificidade da prática analítica. A pesquisa confirmou que “a ausência dos corpos limita as intervenções”, “fica difícil responder com o corpo a um ponto da interpretação”, “a possibilidade de se marcar uma escanção com o corpo fica suprimida”[15]. Deitar no divã pode representar estar à mercê do Outro, em uma posição de resignação e submissão. No divã, o sujeito se desveste de seu corpo ativo, abandona o corpo imaginário, a imagem de si mesmo[16]. Resta, nesse lugar, um corpo como trapo, resto, lixo precioso. Porém, quando “o imaginário assume a liderança, que presença real do analista permite franquear”, se esse não está, ainda assim pode-se tocar o real?

O silêncio encarnado fica comprometido, é confundido com uma ausência por falha técnica: “Você está aí?”, “Está me escutando?”. Uma vez, a conexão com a internet falha de fato e o analista retorna a ligação, mas o paciente não responde. Na sessão seguinte, diz que estava certo de ter sido um corte. Corte? Ou algo a proveito da defesa?

Antes da pandemia, muitos analistas da AMP não tinham ideia da possibilidade da psicanálise por meio virtual. Alguns poucos tinham se iniciado nessa prática e realizavam sessões on-line sobretudo para atender pacientes em situação de urgência subjetiva ou de migração geográfica. Uma circunstância política excepcional em um país, cuja consequência foi a migração em massa, levou à prática expressiva de sessões on-line.

Para aqueles que aderiam, o virtual é apresentado como uma ferramenta para garantir a presença quando os corpos não podem se deslocar. A proposta é singularizar o virtual, adaptando-o para cada caso, pois os recursos foram avaliados como propícios às invenções de arranjos no sintoma de cada um. À questão de saber se é possível fazer presente o corpo através das novas tecnologias, os analistas inventaram, por exemplo, a marcação da tripla escansão temporal da sessão: no primeiro tempo, o do acolhimento do paciente, o analista usa o vídeo; no segundo tempo, o da associação livre, o analista coloca o computador sobre o divã, de forma que o paciente, através da tela, tenha o ponto de vista de quem está deitado no divã; para marcar o terceiro, o corte da sessão, o analista retira o computador do divã[17].

Observou-se que o confinamento e o excesso de mobilidade, ambos efeitos sintomáticos da virtualização do mundo, resvalam sobre a transferência. Um paciente só se engajou no trabalho analítico depois de perceber que se confinar era seu modo de estar em casa. Um outro, habituado a muitos deslocamentos internacionais, durante a pandemia fazia suas sessões perambulando pelas ruas, passando por vários lugares. Na experiência analisante de uma analista acometida por um problema de saúde, que restringia seu deslocamento até o analista, as sessões on-line permitiram-lhe obter efeitos analíticos importantes sobre o real de seu gozo, que situa a partir do manejo da transferência: um amor intenso, à distância[18].

Na clínica da psicose, só possível virtualmente devido à pandemia, o corpo se destaca como objeto infectado. Um fragmento de caso mostra que, na transferência, o muito “ao lado” do analista, surgido nas sessões presenciais, foi amenizado nas sessões on-line, o que permite colocar a questão: as sessões on-line podem entrar na pragmática da clínica como um recurso para o tratamento ou se constitui como um remédio para a dificuldade própria ao laço transferencial na psicose?[19]

Nos casos de inibição extrema, o corpo em exibição do inibido é esvaziado do olhar do Outro ou ganha uma defesa? O caso de uma jovem mostra outra perspectiva. Antes, seu corpo tremia, suas mãos suavam, sentia-se transparente e ficava paralisada. O uso do Skype permitiu ao analista forjar um modo de presença/ausência singular, encenando o encontro presencial: vídeo ligado no início, desligado durante o transcorrer da sessão e religado para encerrá-la. Quando não há imagem, o analista faz barulhos — digita no computador, folheia livros, arrasta objetos. Outras vezes, faz silêncio absoluto. A psicanálise virtual para essa analisante serviu como uma tela de proteção contra a presença do Outro. Ao retornar às sessões presenciais, o corpo não treme mais. Perdeu o aspecto rígido, vivificou-se. Foi “o analista que se tornou tela; a marcação da presença/ausência com ruídos produziu efeitos inesperados”[20]. Em outro caso, o virtual gerou inibição: o paciente não podia explicar seus sonhos por telefone[21].

Uma coisa é o psicanalista lançar mão de recursos do virtual para operar, outra coisa é a psicanálise ser qualificada de “virtual”, “por telefone” ou “no ciberespaço”. A clínica do corpo falante implica um corpo presente, que possa fazer surgir o ponto de angústia, única a visar o impossível de suportar do gozo. A voz significante que atravessa a barreira do som não é a voz objeto da psicanálise, objeto da pulsão invocante, veículo pelo qual se acede ao real. A imagem percebida na tela, “minha imagem”, “minha presença no Outro”, i(a) do estágio do espelho, não tem resto. Por isso é diferente do objeto no nível do olho, objeto a separado e elidido em outro lugar, distinto daquele que causa o desejo. Os recursos do virtual destacam a forma visual e ilusória; o olhar que me reflete e, por me refletir, é imaginário, elide a materialidade do furo pulsional. Sem a presença em carne e osso para perturbar o fascínio da boa forma, é possível tocar o arrebatamento do gozo pelo fato de o corpo ter se deixado habitar pelo significante?

Para além do corpo visual, o que interessa à psicanálise é o corpo pulsional, de furos e bordas, sobre o qual a palavra se escreve. Os casos apresentados mostraram mais o recurso da tecnologia na experiência da palavra do que um uso propriamente psicanalítico do virtual visando a parte de vida do corpo libidinal que permite a escrita do inconsciente.

 

Ana Lydia Santiago

 

[1] Relatório elaborado para La Grande Conversation de l’École Une (19-20/03/2022), pelos integrantes do Cartel La psychanalyse virtuelle: Ana Lydia Santiago (EBP), autora [Mais um], Andrea Zelaya (EOL), Amelia Barbui (SLP), Iván Ruiz (ELP) e Victoria Paz (ECF).

[2] LEVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 21. O autor questiona o emprego da “metáfora bélica do impacto” para esclarecer as consequências que as tecnologias da informação impigem sobre a vida civilizada. A inadequação dessa figura retórica transmite a ideia de que “essas técnicas viriam de outro planeta, do mundo das máquinas”, como se fossem criações pré-discursivas, sem relação com o fato de que são produtos inerentes às linguagens e instituições sociais complexas.

[3] RHEINGOLD, H. La Réalité virtuelle (1991). Paris: Dunop, 1993.

[4] LÉVI, P. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996. Como afirma o autor, no virtual, “a sincronização substitui a unidade de lugar, e a interconexão, a unidade de tempo”. p. 19.

[5] O filósofo Paul Virilio examina vários outros fenômenos que marcam o espírito da época tecnologizada, como o paradoxo entre velocidade e inércia; as transformações das experiências em comum, suscitadas pelo compartilhamento compulsório de informações e pelos monitoramentos contínuos; bem como as novas formas de isolamento e dispersão que vieram junto com a expansão das redes digitais e a multiplicação das telas. Mais a respeito, ver: VIRILIO, P. Estética da desaparição (1980). Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.

[6] LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1953). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 322.

[7] LAURENT, É. “Princípios diretores do ato analítico”. In: Sociedade do sintoma. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007. p. 215-220. Primeiro dos oito princípios da psicanálise, tal como proposto em 2004, por Éric Laurent, então Delegado da AMP.

[8] LACAN, J. Déclaration à France-Culture en 1973. Disponível em: https://m.youtube.com

[9] LACAN, J. “Ato de fundação”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

[10] MILLER, J.-A. “Introdução ao método psicanalítico”. In: Lacan elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

[11] SurveyMonkey.

[12] Plataforma utilizada pelos psicanalistas da IPA engajados em contribuir para a construção de um aspecto específico e novo da técnica psicanalítica: “a psicanálise por telefone”. Compartilhar as propostas, colocar à prova o que está sendo pensado e respaldar as recomendações faz parte da metodologia de sua validação. Os trabalhos encontram-se publicados nas revistas e anais de congressos da IPA (Estados Unidos, América Latina e Europa). As referências utilizadas pelos analistas na produção de seus artigos são basicamente textos de Freud e de membros da IPA, frutos do debate interno que vem acontecendo desde os primeiros anos do século XX. O livro de Ricardo Carlino, por exemplo, médico e membro efetivo da Associação Psicanalítica da Buenos Aires (APdeBS), dá expressão ao estabelecimento de standards para a psicanálise por telefone, mas também a revisão de princípios. O autor busca o suporte do discurso jurídico para a institucionalização da psicanálise por telefone.

[13] O questionário era anônimo e nem todos os respondentes quiseram se identificar. Por essa razão, as respostas dos analistas membros da EOL, da ELP e da NEL foram agrupadas a partir do critério Língua Espanhola.

[14] MILLER, J.-A. “A mundialização da psicanálise na era digital”. Entrevista com Éric Favereau. Libération. 3/7/1999.

[15] A contribuição de Cristina Martínez de Bocca (EOL) apresenta exemplos de intervenções que não podem prescindir do corpo do analista. Em uma caso, por exemplo, uma alisante está com o olhar perdido, olhando pela janela, o analista, sem dizer uma palavra, se levanta e fecha a janela. Em outro caso, o analista se levanta pondo o corpo entre a janela aberta e a criança e diz: “não te deixarei cair”.

[16] Extraído da contribuição de Luciana Silviano Brandão (EBP) para o Comitê de Ação: A psicanálise virtual.

[17] Extraído da contribuição de Katty Langelez-Stevens (ECF) para o Comitê de Ação: A psicanálise virtual.

[18] Extraído da contribuição de Ioanna Verigaki (NLS) para o Comitê de Ação: A psicanálise virtual.

[19] Extraído da contribuição de Maria Cristina Giraldo (NEL) para o Comitê de Ação: A psicanálise virtual.

[20] Extraído da contribuição de Monica Vacca (SLP) para o Comitê de Ação: A psicanálise virtual.

[21] Extraído da contribuição de Miguel Bassols (ELP) para o Comitê de Ação: A psicanálise virtual.


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O inconsciente real

por Jacques-Alain Miller[1]

 

1. O traumatismo Freud

Dicência[2] (disance) lacaniana

A perspectiva que lhes trago, hoje, tem seu ponto de partida a posteriori[3] . Inopinadamente, o que não quer dizer de modo inoportuno, ainda que isto os tenha importunado, eu me vi marcando no ano passado, por três vezes e de maneira não dissimulada, a distância que eu tomava, ou melhor, que se tomava, entre este eu (je) que lhes fala e a dicência lacaniana[4] .

distância & dicência

Eu disse dicência. Essa não é uma palavra que eu tenha forjado, mas sim um termo introduzido por Damourette e Édouard Pichon em seu Essai de grammaire de la langue française[5] , do qual Lacan o tomou. Aliás, ele teve um relacionamento pessoal com Édouard Pichon que, além de gramático, era psicanalista e acolheu favoravelmente o jovem Lacan nesse meio, dedicando-lhe um artigo em que deplorava, já naquela época, seu caráter incompreensível[6] .

A dicência é “a língua tal como falada pelas pessoas de um dado ofício”. Quanto aos hábitos profissionais, nossos autores fazem esta sensata observação: “Os termos técnicos que designam atos, ferramentas, produtos de um modo de atividade humana são freqüentemente ignorados pela maioria das pessoas”[7].

Digo dicência lacaniana porque essa língua me parece, hoje, ter uma extensão suficiente para que lhe poupemos o nome de jargão, mais pejorativo. Um jargão é a língua falada por um destes meios “que recorrem, seja por interesse, fantasia, ou tradições particulares, a certas construções frasais ou a vocábulos incompreensíveis para os não-iniciados[8] ”.

A distância da dicência lacaniana na qual eu me encontrava num certo momento foi suturada no ano passado, uma vez que – vocês são testemunhas – retomei meu ramerrame que nos levou, até o final do ano, através do Seminário: de um Outro ao outro[9] . Se relembro essa distância da dicência em que eu me encontrava é porque, definitivamente, ela me é preciosa e gostaria agora de fixar nela minha posição para este ano.

A propósito, digo a mim mesmo: talvez eu tenha estado desde sempre, sem o saber, nessa distância da dicência e talvez esse seja o segredo do que chamam minha clareza – é o que me chega de fora –, que seria devida, em última instância, ao fato de eu me esforçar para não me deixar levar pela dicência dos psicanalistas e também porque, à distância da dicência, deixo a Lacan a responsabilidade de seu dizer, o traço singular de seu dizer que é sempre amortecido na dicência.

 

Reação e resposta

Lacan formulou, assumiu sua singularidade de maneira evidentemente enigmática quando disse, em seu Seminário: o sinthoma: “É pelo fato de Freud ter verdadeiramente feito uma descoberta” – supondo essa descoberta como verdadeira – “que se pode dizer que o real”, a categoria do real da qual trata o Seminário, “é minha resposta sintomática”[10]. A descoberta suposta verdadeira, no caso, é o inconsciente. Lacan diz também: “Digamos que é pelo fato de Freud ter articulado o inconsciente que reajo a ele”[11]. O real seria assim uma reação de um, de um só, à articulação freudiana do inconsciente.

As duas palavras são ditas: reação e resposta. A resposta é sem dúvida de uma ordem mais complexa do que a da reação. Mas talvez este seja o termo menos significativo pelo fato de que Lacan ali está, se supõe estando, num traumatismo.

Como entendê-lo? Da seguinte maneira, é simples: a descoberta de Freud faz furo no discurso universal. Pelo menos essa foi a perspectiva adotada por Lacan, de saída, no que concerne a Freud.

E o que convencionalmente chamamos o ensino de Lacan constitui, em seu conjunto, uma resposta a esse furo. Sob modos variados, Lacan não cessa de demonstrar que essa descoberta não tem alojamento em nenhum outro discurso que a precedeu. Foi esse furo no universal – perspectiva tomada por Lacan em relação a Freud – que o precipitou na elaboração múltipla do discurso analítico, suplementar, a fim de dar moradia à descoberta de Freud.

Lacan falou do acontecimento Freud, assinalando com esse termo o corte introduzido por Freud, o que dele pôde se expandir. Eu, porém, falaria de bom grado do: traumatismo Freud.

O acontecimento Freud foi – Lacan a ele retorna muitas vezes, a cada uma de suas viradas e reviradas -, de saída, desconhecido, tamponado, a ponto de Lacan poder dizer que a famosa peste, na verdade, se revelara “anódina. Ali aonde ele [Freud] supunha levá-la” – os Estados Unidos – “o público se arranjou com ela”[12].

O que nos resta como ensino de Lacan provém de alguém que não se arranjou com ela. A ambição desse ensino, aqui presente entre nós, é a de repercutir o traumatismo-Freud. Nessa perspectiva, o que de fato podemos pegar nas malhas de uma dialética são as repercussões de um traumatismo.

Lacan o disse a propósito do enunciado do real, sob a forma de uma escritura, a dos nós: o enunciado do real sob essa forma “tem o valor de um traumatismo”. Ele o tempera ou explica falando do “forçamento de uma nova escrita”[13].

 

2. Inconsciente transferencial

Inconsciente // interpretação

Aqui está o que dá aos nossos sensatos estudos um dramatismo no qual não conto instalá-los. Prefiro instalá-los na dificuldade visando, tanto quanto me seja possível – em relação a mim, é claro -, balizar o que não passou para a dicência.

Para instalá-los, para nos instalar na dificuldade, tomarei o último texto, bem curto, dos Outros escritos[14]. Lacan o escreveu imediatamente depois de o Sinthoma – ele é datado de 17 de maio de 1976, ao passo que o Seminário do Sinthoma foi concluído em 11 de maio – e merece ser lido de perto. Eu o apresentarei cuidadosamente a vocês, abrevio quando necessário. Vejam como ecoa a primeira frase desse texto, feita de modo a ir direto ao cerne da questão: “Quando […] o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente”[15].

Isso pode nos parecer conhecido, pois o valor dos sem-sentido foi, desde sempre, enfatizado e posto em função por Lacan. Todavia, o que essa frase surpreendente comporta – se a observarmos de perto – é a disjunção entre o inconsciente e a interpretação, uma exclusão entre essas duas funções. Digo função no que concerne ao inconsciente, porquanto, nesse mesmo texto, Lacan fala da “função inconsciente”[16].

Isso é próprio para fazer vacilar o que acreditamos saber da articulação do inconsciente, visto tratar-se exatamente do avesso, por exemplo, da tese desenvolvida no Seminário 6: o desejo e sua interpretação, segundo a qual “o desejo inconsciente é sua interpretação”.

No citado texto, pelo contrário, temos de colocar uma dupla barra indicando o corte, a desconexão entre o significante do lapso e o significante da interpretação.

Significante do lapso // significante da interpretação

Alcançamos, aqui, em sua junção, o elo entre o famoso S1 e o famoso S2, que são de nossa dicência – significante primeiro, significante segundo –, o mínimo inscritível da cadeia significante acarretando, quando S1 se engancha em S2, que o significante 1 venha a representar o sujeito para o outro significante, o S2. Ora, nessa frase pode ficar imperceptível, por ser colocado na abertura – na abertura desse texto, mas no fechamento do Seminário sobre Joyce -, o fato de ela admitir, se a lermos tal como o faço aqui, que S1 não representa nada, ele não é um significante representativo. Isso ataca o que consideramos como o próprio princípio da operação psicanalítica, uma vez que a psicanálise tem seu ponto de partida no estabelecimento mínimo S1-S2 da transferência.

 

Uma transferência-causa

Aqui, S1-S2 tem uma outra escrita, homóloga, introduzida por Lacan em sua “Proposição sobre o psicanalista da Escola”[17]. Para que não nos enganemos, S1 é o significante da transferência em seu laço com S2, um significante qualquer. A fim de fixá-lo, Lacan o escrevia com um q. Isso implica traduzir em termos de significante a relação que se estabelece, que condiciona a operação analítica.

Desse laço se produz, em posição de significado, sob a barra colocada abaixo do significante da transferência, o famoso sujeito suposto saber.

S………..Sq
___________________
s (S1 , S2 , … Sn )

Disso resulta um sujeito. O sujeito resulta do estabelecimento dessa conexão. Sobre esse modo de significado, dizia eu, doravante estará “presente” o saber suposto, o conjunto informando sobre “os significantes no inconsciente”[18]. A engrenagem de um significante com o outro deve ser estabelecida para daí resultar um efeito de sentido especial que, desta feita, diga alguma coisa para todo mundo, mesmo sem ser uma expressão especializada. De um jeito ou de outro, todos chegam a lhe dar um sentido sem passar pela dicência lacaniana. E assim são então mobilizados, como dizemos, os significantes no inconsciente.

Ao longo da análise, o inconsciente toma seu status dessa posição suposta. Sabe-se que Freud conservou para o inconsciente, até o fim, o status de uma hipótese, de todo modo não verificável pelos meios aos quais ele cogitava apelar, a saber, as ciências da natureza. A partir daí, reconhecemos o status do inconsciente como sendo transferencial. Aliás, foi o que me levou a falar, previamente, de inconsciente transferencial[19]. A transferência, então, longe de ser efeito do inconsciente, tem, pelo contrário, em tudo o que de Lacan passou para a dicência, muito mais um lugar de causa. É pela transferência que tornamos presente, mobilizamos e lemos o inconsciente. Quando Lacan articula a transferência a partir do sujeito suposto saber, ele a liga estreitamente ao inconsciente, nós o observamos quando o vemos escrever, em “Televisão” : «a relação com o sujeito suposto saber é uma manifestação sintomática do inconsciente ”[20]. Conforme essa ótica, podemos dizer que o inconsciente freudiano é o inconsciente transferencial e supõe a ligação entre S1 e S2. Disso decorre a distinção a ser feita, a fim de sabermos onde estamos, entre o sujeito que consiste no saber dos significantes e o sujeito a quem esse saber é suposto. No estado de consistência tem-se, para retomar um termo sartreano, um em-si (en soi), e se poderia imaginar, pelo fato de esse sujeito vir a ser a quem esse saber é suposto, que ele teria o status de para-si (pour soi).

 

Saber do si/consigo (soi) sozinho

Encontraremos novamente esse si/consigo (soi) precisamente porque esta pequena frase do início nega o inconsciente transferencial: temos certeza de estar no inconsciente quando o espaço de um lapso não tem mais nenhum impacto de sentido ou de interpretação. Isso quer dizer: tem-se certeza de estar no inconsciente quando não opera a conexão transferencial. E, assim, Lacan acrescenta à sua abertura – o que é muito pouco lacaniano! Mas ele pode se permitir isso, embora precise ainda de um forçamento para conseguir incluí-lo – um pedaço de frase que incide sobre o “tem-se certeza”: “ sabe-se, consigo (on le sait, soi)”[21].

Quem é este si/consigo (soi), este si que sabe que isso não tem nem pé, nem cabeça, nem sentido, nem interpretação? Temos aqui um se (on) que não é, como Lacan pôde articulá-lo, o do inconsciente, mas um se (on) que é si/consigo (soi).

Cabe ressaltar que nesses pedacinhos de frases de Lacan se trata de um saber do si/consigo (soi) sozinho. Isso não acontece no famoso registro da intersubjetividade, nem mesmo no da inter-significância entre S1-S2, mas instala, desde o início, esse estranho ser cortado, sozinho. É o que se pode verificar na seqüência do texto, permitindo apreender o que Lacan formula, à sua maneira, nas entrelinhas: “ Mas basta prestar atenção para que se saia disso”[22]

Não temos aqui o eu (Je ) ou o eu (moi) como sujeitos do verbo. Temos um: “prestar atenção”, que se preste atenção para se sair disso, do inconsciente. A atenção, que nos parece uma propriedade psicológica, toma aqui um valor oposto ao do inconsciente no qual se tem certeza de estar. O que se sabe (ce qu’on sait), consigo (soi), sozinho.

 

Verdade mentirosa

O que é essa atenção incidindo sobre o lapso, para além do saber imediato de que isso não tem sentido nem interpretação? Eu só vejo uma forma de apreender o que é essa atenção, A atenção condiciona a associação. Associamos, eventualmente, à injunção do analista. Mas, aqui, onde ele está? Não o encontramos. Só o encontramos quando nos pomos a prestar atenção. E, de fato, nesse momento, há sentido e há interpretação.

O que se tentou apreender no espaço de um lapso já lá estava antes que a máquina da atenção, cujo funcionamento tem como pivô o sujeito suposto saber, se pusesse a funcionar. “Restaria, acrescenta Lacan, o fato de eu dizer uma verdade. Não é o caso: eu falho”[23]. Esta palavra, falha (ratage), que realcei numa outra ocasião[24], designa aqui o que se obtém pela associação e até mesmo pela famosa intervenção interpretativa do analista. Mas tudo isso falha! Passa ao lado do que havia surgido, o espaço de um lapso.

Para marcar claramente como é tênue aquilo em que ele se apega – a tenuidade absoluta, o fugidio, o evasivo -, Lacan trunca a expressão “o espaço de um lapso” dizendo: “o esp de um laps”, uma assonância e uma forma de truncar só possíveis em francês, para dizer que ali se tem certeza de estar no inconsciente. E acrescenta algo que ali está como uma repetição para fixar as coisas, uma afirmação valendo como tese: “Não há verdade que, ao passar pela atenção, não minta”[25].

Se vocês seguirem o fio que desenrolo a partir desses pequenos fragmentos, ver-se-á estigmatizada ou interrogada a verdade mentirosa da associação livre. Aqui, estamos numa perspectiva em que a associação livre, longe de ser a chave da verdade, libera uma verdade filha da atenção e, desse modo, uma verdade falhada.

Aqui, considera-se o Um-sozinho como pivô. Nesse texto, há pelo menos duas alusões de Lacan ordenadas a partir desse sozinho. Diz ele: “Não há amizade que esse inconsciente suporte”[26]. Não há amizade que seja o suporte do inconsciente.

O que a palavra amizade vem fazer aqui? Ela é a expressão genérica com a qual designamos o laço entre um e outro. Afinal, escandir o espaço de um lapso, solicitar a atenção, poderia passar por um movimento amical, de ajuda à associação livre.

Nesse texto, porém, a amizade é rechaçada por Lacan. O mesmo acontece, um pouco mais adiante, quando vocês verão Lacan se divertir, como bem o conhecemos – aqui, porém, isso toma um outro valor -, a respeito do amor ao próximo, uma outra figura do laço de um ao outro.

 

Do solitário ao par

Essas duas indicações de Lacan mostram que, aqui, devemos convocar a ficção do Um-sozinho. Dizemos ficção porque estamos na dicência lacaniana ou psicanalítica. Todavia, a situação analítica não nos parece fictícia. De modo especialmente ousado, ao mesmo tempo em que velado pela anedota, Lacan busca a palavra solitário para qualificar a operação freudiana. “Notemos que a psicanálise, desde que ela ex-siste, mudou”[27]. Isso é bem conhecido. Acompanhamos os remanejamentos de Freud no que concerne à sua teoria, a primeira e a segunda tópicas, e sabemos que, com Lacan, os remanejamentos foram constantes – mas não é disso que se trata -, e a própria pressão da profissão, seu nome, sua inscrição social, mudaram a análise. O que aqui se visa – é preciso ter o topete de escrevê-lo – é a psicanálise “inventada por um solitário”[28].

Todo mundo sabe, hoje, que Freud tudo fez por sua transferência com Fliess. A perspectiva trazida aqui por Lacan apaga o bom Fliess[29].

É por essa razão que ele o chama o “teorizador incontestável do inconsciente”[30]. Esta é uma perspectiva, é claro. Freud prestava atenção – e como! – em seus pequenos espaços de lapso. Mas isso deve ser evocado num outro momento. Precisamos primeiro ser cativados por essa nova figura de Freud, a de um Freud sozinho. Aliás, em seguida, Lacan afasta seus discípulos, que só o eram “pelo fato de ele não ter sabido o que fazia”[31]. Inconsciente, se quisermos. Portanto, mesmo os discípulos são afastados para deixar apenas o solitário em sua relação com o inconsciente, do qual temos certeza quando não há sentido.

Desse mesmo modo, Lacan pôde dizer que o real talvez fosse sua resposta sintomática à descoberta de Freud[32]. Isso vale para ele sozinho, a tal ponto que ele não tinha certeza de conseguir comunicá-lo. Embora o tivesse inserido durante muitos anos em seus Seminários, distribuídos agora em forma de livros, ele não tinha certeza de seu desdobramento.

Que a “psicanálise inventada por um solitário […] seja agora praticada aos pares” é uma inovação[33]. Eis o que desordena, faz sair do que há de engrenado na prática, pois nos pormos a operar em dois aparece como um fato número 2. Nesse sentido, Lacan marca sua posição dizendo: “Sejamos exatos, o solitário nos deu o exemplo”[34].

Eis as mudanças: da relação solitária e desatenta com o inconsciente à psicanálise aos pares, operando a partir do sujeito suposto saber, assim como a que se refere à conexão mínima significante aqui desfeita. Não nos esqueçamos: é a isso que Lacan se dedica no final de seu trabalhoso Seminário: o sinthoma. O que valoriza a escolha, entre parênteses, feita por ele, quando fala de Freud como o teorizador incontestável do inconsciente: “(que só é o que se crê – digo: que o inconsciente seja real – caso se acredite em mim)”[35]. Eis o que pode nos servir de pequena abertura sobre a presente questão. O inconsciente aqui delineado em filigrana é o inconsciente como real e não o inconsciente como transferencial. O que imanta Lacan no final de seu Seminário é um outro modo, uma outra perspectiva sobre o inconsciente que faz dele real. De algum modo, é o inconsciente como exterior ao sujeito suposto saber, exterior à máquina significante produzindo sentido aos borbotões, por pouco que a deixemos funcionar, conforme acreditamos que somos obrigados a fazê-lo.

Esse inconsciente como real é análogo, homólogo ao que evocamos inicialmente do traumatismo. De todo modo, é certamente um inconsciente não transferencial, formulado como um limite. No entanto, Lacan considera esse real como o que mais lhe é próprio na acolhida que reserva à descoberta de Freud.

Se quisermos recosturar os pedaços aqui dispersados por mim, em sua “Proposição sobre o psicanalista da Escola”[36] na qual é introduzido o pivô do sujeito suposto saber como condição da psicanálise, Lacan tem o cuidado de notar que o sujeito suposto saber não é real. Aqui, podemos então fazer um jogo entre o inconsciente como real e a operação que o tritura e também o dilui, ou seja, a do sujeito suposto saber.

 

3. Urgência

O final do texto, tão curto, não é um final qualquer, pois chama a atenção para uma palavra de peso cotidiano, aqui, porém, tendo um peso teórico: a urgência. “Assinalo que, como sempre, os casos de urgência me atrapalhavam enquanto eu escrevia isso”[37]. O que vale como um testemunho, se quisermos.

Do que se trata senão de um ponto de partida anterior ao estabelecimento do significante da transferência em sua relação com o significante qualquer? Lacan chama urgência a modalidade temporal que responde à ocorrência ou à inserção de um traumatismo. Ele descarta a situação analítica como sendo feita de um encontro e designa o que chamamos demanda do analisante em potencial como requerimento de uma urgência. A palavra urgência é, para Lacan, o nome do que aparece, do que põe em movimento o requerimento do analisante em potencial.

Essa palavra urgência aparece também quando Lacan evoca a questão da formação analítica, no texto “Do sujeito enfim em questão”[38], em termos anteriores aos de sua “Proposição”. Não consideremos mero acaso o fato de ainda encontrarmos, no final desse texto dedicado à noção de psicanálise didática como condição da formação – Lacan operando remanejamentos sobre sua concepção -, a evocação da urgência. “Agora, pelo menos, podemos nos contentar com a idéia de que, enquanto perdurar um vestígio do que instauramos”- é o momento em que ele está concluindo seus Escritos – “haverá psicanalistas para responder a certas urgências subjetivas, ainda que qualificá-los com o artigo definido fosse dizer demais, ou, mais ainda, desejar demais”[39]. Deixo de lado esse ponto em que ele não diz os psicanalistas, mas sim psicanalistas, a fim de enfatizar que a palavra urgência, urgências subjetivas, no caso, é posta como o colofão desse texto para validar que se trata, de fato, da função psicanalítica essencialmente relacionada, antes do começo da análise, com a urgência, ou seja, com a emergência do que faz furo como traumatismo.

Essa urgência foi também celebrada por Lacan em seu “Relatório de Roma”, no qual a importância desse termo para ele se evidencia, importância que devemos manter. E nós não deixaremos que ela se perca por termos criado, hoje, ainda que minimamente, dispositivos bastante inseridos na sociedade visando tratar a urgência. Esses Centros de urgência devem ser tratados com a dignidade dada por Lacan a esse termo[40]. Em seu “Relatório de Roma”, ele o ressaltou: “Nada há de criado que não apareça na urgência, e nada na urgência que não gere sua superação na fala”[41] . Temos aqui a ilustração disso, pois essa urgência com a qual devemos fazer par é precisamente o que solicita, no requerente, naquele que faz o requerimento, nele e para ele, a ultrapassagem da fala que é também, na perspectiva desenvolvida aqui, a falha da verdade mentirosa.

Há ainda um pequeno acréscimo feito por Lacan: “Mas nada há, tampouco, que não se torne contingente nela”[42]. Eis um termo mais técnico que deveremos articular um pouco na seqüência de nossos encontros. Isso já implica em marcar, tal como Lacan se dedicou a fazê-lo de maneira lógica, o que há de não eliminável na função da pressa, a urgência sendo de algum modo a versão terapêutica da pressa. Em tudo aquilo que tem a ver com a verdade há sempre uma precipitação lógica. E basta acrescentar que nos pusemos atentos também à precipitação na mentira, possível de ser veiculada pela verdade. Isso por certo requer uma estratégia da verdade que é, como evoca Lacan em De um Outro ao outro, “a essência da terapêutica”[43] e, do ponto aonde Lacan nos conduz, cabe apenas acrescentar que essa estratégia da verdade deve dar um lugar à mentira que ela comporta.

A fim de agitar um pouco a coisa, para mostrá-la palpitante, eu os lançarei na relação que gostaria de estabelecer e os remeterei ao comentário de Lacan sobre a alucinação do Homem dos lobos, tal como ele a situa no início de seu ensino, em conexão com o que delineei, a partir de uma leitura minuciosa, do lugar do real. Com freqüência se lê esse texto relacionando-o com “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”[44], texto incidindo sobre aquilo Opção Lacaniana OnLine 10 O inconsciente real que, uma vez cortado de toda manifestação simbólica, reaparece, diz cuidadosamente Lacan, “erraticamente”[45].

Essas manifestações erráticas do que é cortado da simbolização e que serão, em “O espaço de um lapso”[46] – texto que vem no final do Seminário sobre Joyce -, valorizadas na psicose, já figuram o que Lacan chamou ‘real sem lei’, ou seja, um real disjunto do simbólico e que o supera.

Essas considerações desembocam, tal como explicitado nesse último texto de Lacan, no deslocamento ao qual ele submeteu a prova crucial a que chamou passe. Há um mal-estar no passe e nas instituições que primeiro quiseram pôr em marcha essa prova. Desde O sinthoma, de Lacan, é a partir do real que esse malestar no passe pode ser a um só tempo situado e superado.

Tradução: Vera Avellar Ribeiro

 

Texto publicado originalmente em Opção Lacaniana online.Série 1, n. 4. Publicamos este texto com a amável autorização de Jacques-Alain Miller, a quem agradecemos.

 

 

[1] Jacques-Alain Miller é psicanalista, Diretor do Departamento de Psicanálise (Paris VIII).

[2] NT: a palavra “dicência”, sozinha, não existe em português. A fim de mantermos uma proximidade homofônica com o termo disance, optamos por decompor e substantivar o termo “dicência” que entra na composição de alguns vocábulos referentes ao dizer ou à maneira de dizer.

[3] Texto e notas da primeira lição da Orientação lacaniana III, 9 (2006-07)

[4] J-A Miller alude aqui ao fato de não ter dado aula, por três vezes, nos meses de novembro e dezembro de 2005. No entanto, ele veio ao encontro marcado na sala Paul Painlevé, no CNAM, explicando então que preferia calar-se, não queria contornar “essa falha”, essa “dificuldade de falar lacaniano”, preferindo muito mais confrontar-se com ela; não lhe faltava material, mas sim, acrescentou ele, “sua escansão” e o “o ponto de basta” que o tornaria legível.

[5] Damourette, Jacques & Pichon, Édouard, Des mots à la pensée. Essai de grammaire de la langue française (1911-1940), Paris, Edition d’Arthey, 1968, T.I, p. 45-55.

[6] Pichon É., “La famille devant M. Lacan” (1939), Revue française de Psychanalyse, 11, n. 1-2, Paris, 1939, p. 107-135.

[7] Damourette, J. & Pichon, É., Essai de grammaire de la langue française, op.cit., p. 45.

[8] Ibid., p. 46.

[9] Cf., Miller, J-A, “Introdução à leitura do Seminário: De um Outro ao outro” (2005-06), La Cause freudienne n. 64, Paris, Seuil/Navarin, 2006, pp. 137-169, e n/s. 65 & 66, a serem publicados em 2007.

[10] Lacan, J., Le Séminaire, livre XXIII, Le Sinthome (1975-76), Paris, Seuil, 2005, p.132.

[11] Ibid.

[12] Cf. Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI” (1972), Outros escritos, Rio de Janeiro, J. Zahar ed., 2003, p. 567.

[13] Cf. Lacan, J., Le Séminaire Le sinthome, op.cit., p 130-131

[14] Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI”, op.cit, p. 567

[15] Ibid., p. 567

[16] Ibid., p. 568

[17] Lacan, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” (1967), Autres écrits, p.cit., p. 248.

[18] Ibid.

[19] Miller, J-A, “Notre sujet suppose savoir. Présentation du theme des Journées d’études 2007”(2006), La lettre mensuelle n. 254, janeiro de 2007

[20] Lacan, J., “Televisão”, Autres écrits, op.cit., p. 543

[21] Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI”, op.cit., p. 567

[22] Ibid.

[23] Ibid.

[24] Cf. Miller, J-A., Orientação lacaniana III, I (1998-99).

[25] Ibid.

[26] Ibid.

[27] Ibid.

[28] Ibid.

[29] Aqui, J-A Miller remete à recente publicação em francês das Cartas a Wilhem Fliess (edição completa), de S Freud, Paris, PUF, 2006; ele especifica que “a evocação feita por Lacan de Freud como solitário vem bem a calhar”.

[30] Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI”, Rio de Janeiro, J. Zahar ed., 2003, p. 567.

[31] Ibid.

[32] Cf. Lacan, J., Le Séminaire, livre XXIII, Le sinthome. Paris, Seuil, 2005, p. 132

[33] Ibid.

[34] Ibid

[35] Ibid.

[36] Cf. Lacan, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, op. cit.

[37] Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI”, op. cit.

[38] Laca, J., “Do sujeito enfim em questão” (1966), Escritos, Rio de Janeiro, J. Zahar ed., 1998, p. 229

[39] Ibid, p 237

[40] J-A Miller fala dos CPCT criados pela Escola da Causa freudiana e por outras Escolas da Associação Mundial de psicanálise.

[41] Lacan, J., “Função e campo da fala e da linguagem”(1953), Escritos, op.cit., p 242.

[42] Ibid.

[43] Lacan, J., De um Outro ao outro, op.cit., p 19

[44] Lacan, J., “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1958), Escritos, Rio de Janeiro, J. Zahar ed., 1998, p. 537.

[45] Cf. Lacan, J., “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung de Freud” (1956), Escritos, Rio de janeiro, J. Zahar ed., 1998, p. 386 e seguintes.

[46] J-A Miller chamará o “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI” , agora e na seqüência do primeiro trimestre de seu curso 2006-07, como: “O espaço de um lapso” ou “O esp de um laps”.


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Os trumains

por Jacques-Alain Miller

 

Durante o mês em que não os vi, acredito ter terminado de redigir o que eu chamei de O ultimíssimo ensino de Lacan*. Devo dizer que isso me tira um peso. Eu estava, para utilizar um termo desse ultimíssimo ensino, enredado com isso.

 

Giro em círculos

Agora, estou inteiramente aturdido com isso. Não estou aturdido com as voltas e reviravoltas desses ditos. De todo modo, não o estou mais justamente por ter seguido essas voltas e reviravoltas, esses meandros, até chegar a fazer deles – pelo menos é com isso que sonho às vezes – uma via romana (via (voie) e não voz (voix), a voz que eu emito para conseguir me fazer ouvir). A via romana é a metáfora com a qual Lacan ornava o Nome-do-Pai em seu terceiro Seminário, essa via transcendente em relação aos divertículos, aos departamentais, aos atalhos. Eu exagero, é claro, ao dizer que cheguei à via romana. Contudo, ontem à noite, procurando – afinal, levei algumas horas – qual título dar à primeira, assim como à última das lições do último Seminário de Lacan, tive a sensação fugidia de que eu reconstituía a via romana desse ultimíssimo ensino, uma via romana por entre esses meandros.

Ademais, a metáfora da via romana não convém de modo algum aos nós borromeanos, tampouco ao que se chama de o toro (a câmara de ar), os dois objetos matemáticos que Lacan associa em seu ultimíssimo ensino. Essas bússolas das quais ele se serve não indicam exatamente os pontos cardeais, estes pontos em cruz que possibilitam orientar-nos a partir de sua posição.

As bússolas se tornaram mais complexas e mais precisas com o desenvolvimento que lhes foi propiciado pelo GPS, são instrumentos para nos orientar quanto à direção a ser tomada. Deve-se acreditar que essa metáfora sempre me foi cara, uma vez que intitulei este curso, desde o seu começo, como « A orientação lacaniana ».

Todavia, no ultimíssimo ensino de Lacan a direção é o giro em círculos, e até mesmo o repisar. É um registro de metáforas completamente diferente. No entanto, esse TDE (Tout Dernier Enseignement – Ultimíssimo Ensino) explora o que o giro em círculos tem de estrutura (para empregar o termo que, aqui, é cuidadosamente evitado, por razões que recomponho e que especificarei mais adiante). O giro em círculos tem uma estrutura. Nós a vemos no nó borromeano, que associa muitos giros em círculos, segundo uma disposição à primeira vista surpreendente, pois mostra que o giro em círculos é suscetível de uma complexidade insuspeitada. Quanto ao toro, ele associa giro em círculos e furo. Aliás, podemos, ocasionalmente, servir-nos dos aros de barbante como toros. Os toros, por exemplo, são suscetíveis de se associarem à maneira borromeana.

Reconstituir e simplificar o conjunto dos desenhos de Lacan apresenta, por certo, algumas dificuldades. Mas, contrariamente ao que se pensa, essa não é a principal dificuldade, que é a de redigir o que resta das falas. Se nos deixarmos levar pelo giro em círculos, sem dúvida ficaremos aturdidos. Em contrapartida, a estrutura é o que permite sair do aturdimento. Creio, então, que o consegui. Cocoricó ! No entanto, o que me aturde hoje, esta manhã, neste momento, é sair desse diálogo com Lacan que me aspirou e no qual me fechei, bem à vontade – e isso, a ponto de eu me esquecer de vocês -, sair desse confinamento para relatá-lo a vocês. Então, o que tenho a dizer no relato ?

Já posso informá-los de que tenho quatro Seminários de Lacan concluídos, o editor os publicará em seu ritmo. A fim de me encorajar, acrescento que chegarei a seis no próximo mês de setembro, assim o espero. E, se eu precisar tranquilizar aqueles que se inquietavam quanto ao término dessa tarefa antes do meu desaparecimento e que me achavam já um tanto adoentado, direi que, em seguida, terei ainda seis deles para redigir, antes de passar para outra coisa.

ultimíssimo ensino de Lacan é constituído de dois Seminários : o 24, que segue o do Sinthoma, e o 25. Eu os farei publicar em um só volume : quando o conjunto estiver disponível, ele será composto de 25 Seminários em 24 volumes. Depois disso, Lacan não se calou, ele continuou a tomar a palavra. Enviou-me dossiês e o que ele disse em 1980 foi publicado na época. Informo-os, porém, que não se trata mais do Seminário de Jacques Lacan.

Considero que Lacan fixou os limites do seu Seminário propriamente dito ao intitular o Seminário 25, de 1977-78, « O momento de concluir ». Tudo demonstra que isso deve ser tomado ao pé da letra. Esse título é evidentemente uma referência à sua lógica temporal, desenvolvida, publicada no final da Segunda Guerra Mundial, sob o título « Tempo lógico… ». Da exploração desse momento de concluir, podemos esperar algumas luzes sobre o que precedeu. Aliás, esse « Momento de concluir » não será publicado no final do Seminário de Jacques Lacan, mas ao longo de seu curso.

O tempo era certamente uma preocupação de Lacan quanto ao momento de parar, mas não só isso. No passado, em seu escrito « Radiofonia », ele já havia destacado o princípio segundo o qual é preciso o tempo para análise. Enfatizemos que, em seguida, Lacan quis falar sob o título de « Atopologia e o tempo » o que, aliás, figura de modo errôneo como título nas orelhas das capas dos Seminários. Não fui eu que fiz escrever isso, mas alguém das Éditions du Seuil que insistia muito em garantir que tudo seria publicado por eles, acrescentando então um título a cada ano. Deixei isso como estava, mas não haverá os livros 26, nem 27, nem 28 do Seminário. Enfim, essa é uma indicação de que Lacan se preocupava com a relação entre a topologia e o tempo. Essa preocupação é apontada desde o Seminário sobre o sinthoma. Não se trata do tempo linear, do tempo necessário para ir de A até B, em outras palavras, da via romana, o tempo da trajetória quando se espera que, depois, haverá outra coisa. O tempo associado à topologia é, em primeiro lugar, um tempo circular. É o tempo do giro em círculos, que não é a ausência de tempo.

 

Condenado ao sonho

A ausência de tempo é a eternidade, da qual Lacan diz, precisamente em « O momento de concluir », que ela é uma coisa com a qual sonhamos. Ser uma coisa com a qual sonhamos não é, aliás, específica da eternidade. No ultimíssimo ensino, vemos desfilar muitas coisas com as quais acreditávamos não sonhar e das quais descobrimos que há ao menos um que pensou tratar-se de sonhos ou – o que é ligeiramente diferente – de fantasias.

sonho da eternidade (censurado por Lacan já no seu Seminário do sinthomaconsiste em imaginar que despertamos, diz ele. Em conformidade com o que aparece no escrito que põe um ponto no Seminário do sinthoma, de acordo com o « esp d’um laps », o ultimíssimo ensino de Lacan se estende em um espaço em que não há despertar, onde o despertar, eu o cito, é impensável, onde o próprio despertar é um sonho. Reconheçamos que isso é realista, realista no sentido do real. Alguma vez se viu o passe constituir um despertar para alguém?

O fato de não haver despertar quer dizer que não saímos do sonho. Talvez seja precisamente isso o que se presta ao riso, essa é a nova ênfase de Lacan sobre isso: a vida é cômica. Ah! Ele já havia dito que, na verdade, a comédia triunfa sobre a tragédia. E ele o disse em nome do falo, em nome do valor sexual sempre escondido, inclusive no fundo da lamentação escondida no impasse, na hiância da relação com o Outro. Mas a comédia está ligada aos vãos giros em círculos. E o próprio sinthoma recebe o valor de ser, digamos, o inconsciente, uma vez que não saímos dele.

Por essa razão, eventualmente, nem sempre, Lacan formula, no seu ultimíssimo ensino, que não há liberação, não há dissolução do sinthoma. Em outros momentos, ele pode falar de desfazer o sinthoma. Aqui, porém, ele visa apenas, creio eu, aos divertículos do sinthoma e não ao sinthoma como via romana, ou seja, o sinthoma como esta nova via romana que é o girar em círculos. Nada de liberação do sinthoma, trata-se somente, diz ele, de que se saiba por que se está enredado nele.

Essa proposição problemática estabelece uma ligação entre a análise e o saber, muito duvidosa, suspeita – adjetivo utilizado por Lacan em seu utimíssimo ensino e que abala as fantasias. Pode-se falar de uma ligação da análise com o saber, na qual imaginamos progredir ao esclarecer o que é a análise por meio do que se crê ser o saber, por aquilo que cremos saber. Esta é, de fato, a questão aberta no ultimíssimo ensino de Lacan : o que é o saber? No nível do ultimíssimo ensino, pode-se pelo menos dizer que o saber não é um despertar e que, se fosse preciso escolher, ele seria, antes, um sonho. É nessa orientação que Lacan trilha seu giro em círculos. O ser humano (l’être humain, les êtres humains), o que na época ele escreve como les trumains, o ser humano está condenado ao sonho.

Os trumains

Ah ! Há algo a dizer sobre les trumains, em relação ao que Lacan chamava de falasser (parlêtre).

O falasser

A primeira diferença é a de ter privilegiado o plural. Para mim, o que se destaca na leitura e na redação é a ênfase dada por Lacan sobre o fato de que o humano é, por essência, social. A topologia, tão aparente nos seus fastos borromeanos e tóricos, é incessantemente duplicada de uma sociologia. Lacan reencontra seus amores da juventude : precisamente, ele havia abordado o tema da família mobilizando as referências à sociologia e à etnologia, que continuaram a lhe fazer cortejo. A sociologia de Lacan colabora, eventualmente, com o despoletar (dégoupillage), com a suspeita incidindo sobre a fantasia onipresente.

Vejam, por exemplo, esta observação, que se poderia desconsiderar, na penúltima lição do Seminário de Lacan: Por que o desejo passa ao amor? Os fatos não permitem dizê-lo. Notemos sua referência ao factual, ligada ao fato de que é preciso falar, distinguir os níveis. Lacan não erra ao opor os fatos à fantasia. Certamente, num outro nível, a atribuição aos fatos pode, é claro, também ser suspeita.

Sim, ele diz os fatos da mesma maneira que, nesse último ensino, o que é falado utiliza, na maior parte do tempo, os vocábulos mais correntes da língua. O despojamento da língua é devido, precisamente, à evisceração das fantasias. Ao redigir, é preciso que eu suprima as aspas, sem o que isso não seria mais legível, mas deixo o suficiente para que se perceba que os termos técnicos, em particular os da psicanálise, sejam todos apreendidos cuidadosamente, postos à distância. Há um contraste constante entre o uso da língua mais familiar e o hipertecnicismo aparente, bem evidente, das figuras topológicas.

Por que o desejo passa ao amor? Os fatos não permitem dizê-lo. Há, sem dúvida, efeitos de prestígio. Dificilmente se pode ir mais longe na degradação discreta da vida amorosa. Ao incluir assim a operação do semblante no amor, Lacan verte essa noção no registro da sociologia. Em minha opinião, o mesmo ocorre quando ele ousa dizer que a interpretação, nossa santa interpretação, a interpretação que é tudo o que temos para operar, em nossa tradição lexical, pelos menos semântica, depende do peso do analista. Aqui também, efeito de prestígio. Ocasionalmente, esse movimento chega a rebater a interpretação sobre a sugestão, horresco referens.

 

Com um murmúrio

O ultimíssimo ensino de Lacan é o jogo do massacre. Eis a razão, contrariamente às aparências, pela qual é tão divertido, muitíssimo superior a todos os Livro negro da psicanálise. O jogo do massacre prossegue até chegar a dizer que a análise é uma magia – mas claro! Com os meios de bordo – e a bordo tem-se apenas essencialmente a fala apoiada nos efeitos de prestígio – esforçamo-nos para comover uma coisa velada e imaginamos consegui-lo. Quando somos dois a imaginá-lo, a coisa já melhora, mas isso não é dar provas contra a redução da psicanálise à magia. Acrescentemos aqui a proposição, à qual um Pierre Bourdieu não faria objeção. Cito Lacan: a análise é um fato social. Não se deve acreditar que isso significaria: a análise é um fato social entre outros. Ao contrário, é uma definição de essência.

Essas evocações são suficientes para escorar a seguinte tese: ao mesmo tempo em que Lacan se esforça pela psicanálise até quase o seu último suspiro, testemunhando assim ser uma espécie de mártir da psicanálise, pois bem, o ultimíssimo ensino de Lacan constitui uma deflação da análise. Trata-se de saber se esse movimento é salutar. Uma deflação da análise e, é obvio, dos psicanalistas, mas, a esse respeito, Lacan iniciara, bem mais cedo, uma deflação, um esvaziamento, digamos.

Posso dizer-lhes qual foi o verso que me veio à cabeça ao redigir esse « Momento de concluir », quando eu lhe dava um último retoque. Foi um verso de T.S. Eliot, que era uma leitura de Lacan encontrada ao longo do Seminário. Foi também valendo-se de T.S. Eliot que Lacan escolheu concluir seu discurso de Roma, « Função e campo da fala e da linguagem… », com uma passagem sobre o que dizia a trovoada – bang, bang! Essa referência provinha dos Upanixades – Da-da-dá!, diz a trovoada -, é uma passagem do grande poema de T.S. Eliot intitulado The Waste Land – (A Terra devastada). Quanto ao verso que me veio à cabeça, é talvez o verso de Eliot mais citado no domínio anglo-americano, é o último verso do poema intitulado The hollow men (Os homens ocos), expressão propícia a muitas interpretações que combinam com o homem tórico, que também é oco, proposto por Lacan. Em T.S. Eliot, há várias teses sobre a procedência da expressão hollow men. Ele pretendeu tomar emprestado hollow de um lugar e men, de outro. Todavia, a expressão foi encontrada em Julio César, de Shakespeare, na boca do conspirador Cassius. Em T.S. Eliot, a expressão tem, sem dúvida, um valor mais pascaliano: o coração do homem é oco e pleno de infâmias. O início do poema pulula de ressonâncias quanto à descrição do ser humano, dos últimos homens, da última das civilizações. Eu o leio em francês, para que vocês me acompanhem na tradução de Pierre Leyris. Não foi este o verso que me veio à cabeça, que é o último, mas ele dá o clima.

« Somos os homens ocos
Os homens empalhados

Uns nos outros amparados…
Cachola cheia de crina [Headpiece filled with straw]. Que pena!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos
São surdas, inexpressivas [Are quiet and meaningless]
Como o sopro do vento na relva seca
Ou o trotar dos ratos sobre os cacos quebrados [Or rats’ feet over broken glass]
Em nossa cave seca

Silhueta sem forma [esta éuma linda tradução para Shape without form, shade without colour], Sombra desbotada,
Gesto sem vigor, força paralisada [Paralysed force, gesture without motion] ».

Pois bem, esse poema termina com dois versos, o primeiro é repetido três vezes.

E assim acaba o mundo [This is the way the world ends]
This is the way the world ends
This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper. [Não com um Bang, mas com um murmúrio] »

Esse é o verso que me veio imediatamente à memória: Assim acaba o mundo, não com um Bang, não com um Buum, diz P. Leyris, não acaba com um trovão, tal como o discurso de Roma, mas com umwhimper(murmúrio). P. Leyris traduz « com um murmúrio ». Um murmúrio é também um gemido e, para mim, é o barulho da câmara-de-ar se esvaziando. A meu ver, Lacan escolheu concluir seu Seminário não com alguma coisa que falasse do trovão – isso é o auge da fantasia – que remete à voz humana, ele o termina com o desinflar do toropsicanalítico. Termina com passinhos miúdos, com o trotar dos ratos.

Mesmo assim, isso diz muito. As referências a esse verso são inúmeras, tal como pude verificar, graças ao Google: há grupos de rap que se chamam assim, há filmes, artigos científicos que o têm como título ou em exergo, ele figura por toda parte na cultura anglo-americana. Isso me parece traduzir o valor a ser dado à deflação da psicanálise, à qual Lacan escolheu proceder.

Sua « sociologia », como eu a chamei – observem que eu também sou forçado a me valer do estilo « pinçar as palavras com muito cuidado » –, a sociologia de Lacan, tanto no Seminário 24, quanto no Seminário 25, está ligada à aprendizagem da língua.

Percebemos a distância tomada por Lacan em relação à fantasia da estrutura. A fantasia da estrutura implica, explicitamente, que a linguagem já esteja lá muito antes da ênfase posta na aprendizagem. Aqui, ao contrário, a ênfase é posta na tecedura do aprendiz, se assim posso dizer. Isso deve ser entendido da maneira mais simples do mundo, aprendemos a falar, diz Lacan, isso deixa traços, tem consequências, são essas consequências que chamamos de sinthoma. Aprendemos a falar e isso nos vem dos pais, dos próximos, essa é a face do grande Outro na aprendizagem da língua.

Essa é a sociologia imediata do falasser, razão pela qual o falasser, são os trumains. Estou conseguindo justificá-lo para vocês! Disse a mim mesmo que precisaria fazê-lo: não deixar escamotear ostrumains. Os trumains, isso é aparafusado, a sociologia de Lacan se aparafusa neles. Por essa razão, Lacan pode formular, a um só tempo, que não há relação sexual, que o conjunto do que poderia ser relação sexual é um conjunto vazio e que há relação sexual entre os pais e os filhos,ou que há relação sexual entre três gerações, o que se deve entender, sem dúvida, como aqueles que nos ensinaram a língua, aqueles a partir dos quais aprendemos a língua, mais o supereu que eles assim nos veicularam, o depósito cultural, o caldo de cultura que nos fizeram beber. Com efeito, de um lado, não há relação sexual, mas, do outro, há, no entanto, o Édipo, ou seja, um objeto – a mãe – com o qual há relação sexual, embora alguém, alguma coisa o obstaculize.

 

Ler de outra maneira

Eu perguntava: qual seria o saber profundamente associado à psicanálise? A resposta que pode ser mantida do que diz Lacan em « O momento de concluir » é a definição segundo a qual o saber consiste no legível. E isso, seja qual for a suspeita lançada por ele sobre A interpretação dos sonhos, da qual ele diz que é impossível compreender o que Freud quis dizer –, apontando, assim, tratar-se de um delírio. Por que ele se privaria de dizê-lo, já que ele próprio acusou-se de ter delirado em seu Seminário?

Contudo, podemos admitir que o sonho, o lapso, o chiste, isso se lê. O que chamamos de interpretar, é ler de outra maneira. Quando, uma vez mais, ele se perguntou sujeito suposto saber o que?, ele pôde dar esta resposta: o sujeito suposto saber ler de outra maneira, com a condição de ligar a outra maneira à sigla S(Ⱥ).

S(Ⱥ)

Ler de outra maneira significa dizer que não podemos descartar essa responsabilidade para ninguém. Ler de outra maneira não é ler o Grande Livro da Criação, a criação do inconsciente, por exemplo. Isso implica alguma coisa de arbitrário. Não é « científico », empregando a palavra entre aspas, já que perdemos a confiança também nesse saber. Ler de outra maneira não é automático. Tampouco é a verdade, mesmo que possamos adorná-lo com esse nome, fazer acreditar nele por prestígio. Isso tem alguma coisa de aleatório. Digamos simplesmente que a interpretação como ler de outra maneira demanda o apoio da escrita, ou seja, a referência de modo que os sons emitidos possam ser escritos de outra maneira que não aquela que se queria. Lacan o diz de um modo que marca o caractere esboçado: há certamente a escrita no inconsciente. Sim, a outra leitura de que se trata se apoia na intenção de dizer alguma coisa. A outra leitura, que é a da análise, se apoia na intenção do analisante de dizer alguma coisa. É essa intenção que atribuímos à consciência, ao eu, é até mesmo dessa intenção que definimos a consciência, disso decorre o valor concedido por Lacan à equivocação (bévue), quando as palavras não servem à nossa intenção.

Em suma, o que Lacan chama de simbólico se revela essencialmente inadequado. O ultimíssimo ensino de Lacan luta contra a inadequação do simbólico. Sem isso, ele não teria razão de ser. O simbólico é um fator de confusão. É o significante que faz com que não nos achemos nele. O significante é responsável pela não-relação sexual no ser humano. Não-relação sexual, já é dizer muito. O que se extrai de « Momento de concluir » é uma relação sexual confusa.

O amor é confusão. Sabemos muito bem que ele é feito de bricabraque, de peças e de pedaços que são… Enfim, há um momento em que se produz a passagem do desejo ao amor. O amor é confusão, nele entra prestígio, semblante, erro de pessoa…. No ultimíssimo ensino de Lacan, é preciso acostumar-se com a degradação do simbólico. Esse não era o caso antes, é claro, não era assim no momento em que Lacan se estigmatiza dizendo: eu delirei com a linguística.

Em que ele delirou com a linguística? Seu delírio com a linguística foi precisamente enfatizar a primazia da palavra sobre a coisa, atribuir às palavras o poder de fazer as coisas. Assim, ele deu conta da Coisa freudiana dizendo que ela significava a moldagem das coisas sobre as palavras. A psicanálise, então, incluía o fato de que, em todos os casos, a estrutura linguística prevalece. A palavra estrutura estava em seu lugar e posta em primeiro plano.

Em todo seu ultimíssimo ensino, sem dizer a palavra, opera uma definição de estrutura completamente diferente. Leio, assim, a primeira frase da sua última lição do dia 8 de maio de 1978: As coisas podem legitimamente ser ditas saber se comportar. O advérbio legitimamente é engraçado, ele vem no lugar de veridicamente. Não estamos no verdadeiro, temos o direito. O legítimo já é um termo que decorre, se assim eu posso dizer, da sociologia.

As coisas podem ser ditas saber se comportar – se, no caso, há estrutura, não se trata de estrutura linguística, mas, se assim posso dizer, de estrutura coisística. Isso supõe um sabersecomportar, saber se comportar melhor do que nós mesmos podemos sabê-lo, como demonstram as surpresas produzidas pelos objetos matemáticos, as coisas que Lacan manuseia. Retiro as matemáticas, visto que ele faz delas, eventualmente, objetos manipuláveis com as mãos, por preensão. As coisas que sabem se comportar, precisamente pela diferença em relação aos trumains que não sabem como se comportar, « em razão », entre aspas, da estrutura simbólica, da escola de confusão, da escola de perdição constituída pela língua. Justamente porque os trumains não sabem como se comportar, inventou-se, para benefício deles, técnicas para ensiná-los.

A emergência e a floração de nossas TCC [Terapias Cognitivo-Comportementais] se assentam sobre a confusão do simbólico, ao passo que as coisas prescindem dele e há a análise para tentar fazer passar para um trumain o como se comportar com o sinthoma.

 

Imaginar o real

Em outras palavras, o problema que não podia ser formulado no delírio linguístico lacaniano é a inadequação das palavras às coisas, o que quer dizer, por abstração, a inadequação do simbólico ao real. Se bem me lembro, vê-se Lacan figurar, em sua última lição, o que seria a adequação por meio do enlace de dois aros, o do simbólico e o do real. Esse enlace queria dizer: taí, isso se mantém junto, e o imaginário está em outro lugar. Não está distante do que Lacan formulava, no começo de seu escrito sobre A carta roubada. Em contrapartida, isso é o que o ultimíssimo ensino de Lacan recusa, afirmando que a adequação do simbólico ao real só faz as coisas fantasmaticamente. Fantasia de acreditar que a palavra faça a coisa, fantasia de acreditar que o simbólico seja adequado ao real. Por fantasia, que é uma palavra-chave de « Momento de concluir », Lacan não entende exatamente um sonho, a fantasia se distingue de uma aspiração, uma sugestão do imaginário pelo simbólico, diz ele.

Eis o que põe em questão a definição da análise pelo saber. Por que? É que o saber é apenas fantasia, aspiração do simbólico sugerindo o imaginário. Desde a primeira lição de « Momento de concluir », Lacan formula que a geometria euclidiana tem todas as características da fantasia. Em particular, a ideia da linha reta, da qual ele já fizera a crítica ressaltada por ele em seu Seminário do Sinthoma, como assinalei.

Percebemos que, com a topologia, Lacan tenta sair da fantasia geométrica. Só encontrei uma melhor pontuação dessa tentativa pescando, na última lição de « Momento de concluir »,a expressão que figura, de passagem, em uma frase – não há nada mais difícil do que imaginar o real. Pois bem, no fim das contas, isso se tornou, para mim, o título da última lição de Lacan e a palavra de ordem deste « Momento de concluir », deste esforço que, na sua época, deixou perplexos todos os que não eram os trabalhadores ajudando Lacan nessa tarefa.

A tentativa é imaginar o real, precisamente porque o simbólico não é adequado ao real, porque o simbólico só se associa ao real por meio da fantasia como sugestão do imaginário. Tentemos associar o real ao imaginário, imaginar o real. Essa, me parece, é a chave de todas as manipulações de Lacan no seu ultimíssimo ensino. Imaginar o real passa pela estranha materialização constituída por essas figuras que são figuras de objetos. Essa materialização, especifica Lacan, é uma materialização do fio do pensamento. Eu relaciono esse enunciado com o que ele formula em outro lugar: a análise é um fato social que se fundamenta no pensamento. Parece-me que, aqui, Lacan tenta uma materialização do pensamento. É também imaginar o saber das coisas com, como ele o diz, precauções oratórias, isto é, faladas. Esse é o ritmo desse Seminário – o que nele é dito é da ordem da precaução oratória, a fim de mostrar que há coisas que sabem se comportar e que estamos interessados nelas, na maneira como elas se voltam, se invertem, se enodam, etc.

Essa materialização é perceptível sobretudo quando procedemos ao que constitui o ato maior no último ensino de Lacan, a saber, o ato de cortar, que torna perceptível o fato de que temos de lidar com o estofo, com o tecido. Isso remete, afirma ele, ao que uma psicanálise tem de estofo (étoffe).

Começar seu Seminário « Momento de concluir »dizendo que a análise é uma prática de tagarelice, constitui uma degradação da fala, mas é precisamente por ser uma prática de tagarelice que tudo se assenta nisto: será que o analista sabe como se comportar? Nessa tagarelice, uma oposição é ressaltada: o analisante fala, Lacan diz – cabe surpreender-se com isto – que ele faz poesia, em outras palavras, em « Momento de concluir », não é a interpretação que decorre da poesia. Esse é um passo à frente em relação ao que evoquei anteriormente.

 

Cirurgia

O analisante fala, ao passo que o analista corta. Os ensaios topológicos de Lacan multiplicam as figurações do fato de o analista cortar, são figurações pelo corte, porquanto este tem o poder de mudar a estrutura das coisas.

Não é mais a palavra que faz a coisa, mas o corte que muda a estrutura dos objetos representados. Com uma dificuldade maior – se o simbólico é inadequado ao real, nem por isso deixa de haver o que Lacan chama de uma hiância entre o imaginário e o real, uma hiância onde se aloja nossa inibição para imaginar como se comportam as coisas de que se trata –, Lacan dá o exemplo do repisar necessário visando a superar essa inibição.

Isso não diminui de modo algum a seriedade da psicanálise. O fato de as palavras não terem o poder que se acreditava quando delirávamos não impede que elas tenham consequências. Trata-se de dar-se conta dessas consequências, de avaliá-las. Trata-se, diz Lacan, de o analista dar-se conta da importância das palavras para seu analisante.

O modelo do ato analítico no ultimíssimo ensino de Lacan e em toda a sua última prática é o corte. Agir por intermédio do pensamento confina à debilidade mental, diz ele. Por isso mesmo, ele tenta elaborar um ato que não fosse débil, um ato que não seja débil mental, segundo seus termos. Esse ato, tal como ele aparece no que nos resta do « Momento de concluir », ato que não seria débil mental e que não passaria pelo pensamento, é o corte.

Por essa razão, levo a sério essa aspiração testemunhada por Lacan em uma forma que merece ser mantida – elevar a psicanálise à dignidade da cirurgia. Vocês terão observado a forma sintática que retoma aquela utilizada por ele a respeito da sublimação – elevar o objeto à dignidade da Coisa. Essa é a fantasia de Lacan expressada nessa aspiração, tratar-se-ia de sublimação. Elevar a debilidade psicanalítica à segurança soberana do gesto cirúrgico de cortar, essa seria a salvaguarda da psicanálise.

 

Os trumains

Giro em círculos
Condenado ao sonho
Com um murmúrio
Ler de outra maneira
Imaginar o real
Cirurgia

 

Tradução: Vera Avellar Ribeiro

 

Texto publicado originalmente no site do XII Congresso da AMP. “O sonho. Sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano“. Publicamos este texto com a amável autorização de Jacques-Alain Miller, a quem agradecemos.

 

* Lição de 2 de maio de 2007 do curso de J.-A. Miller « A orientação lacaniana. O ultimíssimo Lacan » (2006-2007), ensino pronunciado no âmbito do Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII. Versão estabelecida por Pascale Fari. Texto não relido pelo autor e publicado com sua amável autorização.


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Textos de orientação

O Punctum nº 2 convida a todos a acessarem a rubrica Textos de Orientação que está abrigada na aba Encontro em nosso site. Inauguramos este espaço com uma série de escritos norteadores que apontam importantes vias de acesso, trilhamentos possíveis em direção ao Analista: presente! Os dois textos gentilmente cedidos por Jacques-Alain Miller: O Inconsciente real, texto de 2006 e Os Trumains, de 2007, funcionam como mapas que permitem localizar o que está em jogo no último ensino de Lacan. O que vem a seguir está intimamente articulado ao campo que esse ensino permite ampliar. A poética na fenda entre dois, de Fernanda Otoni Brisset, desdobra o tema da presença do analista nos diferentes rumos que são tomados por cada um dos três eixos de pesquisa que orientam os trabalhos. Declinações do despertar na experiência analítica, de Lucíola Freitas de Macêdo, detalha o tema da política do despertar em uma estreita articulação com o último ensino, e ainda o Relatório do Comitê de Ação: A psicanálise virtual, apresentado por Ana Lydia Santiago na Grande conversação da Escola Una, traz a público o importante trabalho de investigação em torno das consequências do uso do virtual na experiência da análise. São textos que alinhados assim em ordem cronológica poderiam sugerir uma orientação linear, tipo via régia. O interessante, porém, é que sejam tomados juntamente com os próximos textos como bússolas mais complexas, tal como Miller propõe sobre o último ensino: ali a direção é o giro em círculos. Entrar nos textos e nos atravessamentos entre eles, e nos deixar aturdir.

 

Andréa Reis Santos
Pela comissão de Site e Boletim do XXIV EBCF


Bibliografia e ressonâncias

Trabalho no impossível de dizer. Dizer é outra coisa do que falar. O analisante fala, faz poesia. Ele escreve poesia quando chega — é raro, mas é arte. Corta porque não quero dizer “já é tarde”. O analista, ele, tranche. O que ele diz é corte, ou seja, ele participa da escrita, justamente nisso: que para ele equivoca sobre a ortografia. Escreve diferentemente de modo que, pela graça da ortografia, por um outro modo de escrever, sonha outra coisa diferente do que é dito, diferente do que é dito com intenção de dizer, é dizer conscientemente, mesmo quando a consciência vai muito longe. Por isso digo que nem no que diz o analisando nem no que diz o analista, há outra coisa que não a escrita. Essa consciência não vai longe, não se sabe o que se diz quando se fala[1].

 

Lacan aproxima o corte, o dizer do analista e a escrita. Com isso, coloca a poesia do lado da fala do paciente, e não do lado da interpretação analítica. Seria esta uma indicação que anula aquela do seminário anterior, em que a interpretação encontra sua referência na escrita poética chinesa? Uma ultrapassagem? Uma mudança de rumo? Da poesia em fluxo migratório da interpretação para a fala do paciente? E ainda mais sob o abatimento exaltado da tagarelice?

Lacan, nesse momento, é um crítico contundente da fala. Ao colocar a fala e a poesia juntas, acena para o fato de que o destino disso é o sono, o adormecimento. É preciso cortar o enunciado que se pretende poético, para que um esbarrão do significante com o real possa criar a oportunidade de o sujeito sonhar com outra coisa, ou seja, de se deparar com algo que não atenda ao formalismo da consciência, posto que ele não sabe o que diz quando fala. Ele não sabe sobre sua enunciação quando formula um enunciado, pois a fala é inadequada para a enunciação. Por isso, ela só pode produzir a coisa na fantasia, em um estado em que se confunde sonho com realidade, em que não se sabe se é o sonhador que sonha ser uma borboleta, ou se é a borboleta a sonhar que é o sonhador, que sonha ser uma borboleta.

Não se sabe o que se diz quando se fala, porque não há como saber do dizer pela fala, e isso porque a enunciação tem uma relação muito maior com a escrita do que com a própria fala. Seja no que diz o analisante, seja no que diz o analista, não há outra coisa que nos interessa mais senão a escrita. O dizer numa análise é, portanto, da ordem de uma escrita, mesmo que o dito seja uma fala.

O enunciado que faz poesia pode recair para uma tagarelice, porém a enunciação poética tem um destino diferente. O modelo do corte para a resposta do analista parece com o silêncio que corresponda à dimensão do desejo do analista, que faz emergir uma enunciação. Portanto, o corte se apresenta como um dizer, este, sim, poético.

 

Cleyton Andrade
(EBP/AMP)

[1] LACAN, J. Momento de concluir. lição de 20 de dezembro de 1977. Inédito.


Um corpo é submetido a afetos e paixões, tanto o corpo político quanto o individual. Novas paixões políticas surgem como novos acontecimentos de corpo políticos, depois se transformam.[1]

 

Freud, como sabemos, tomará o sintoma histérico como referência para pensar a constituição de um sintoma na neurose. Porém, esse sintoma primeiro em Freud, o sintoma como formação do inconsciente e retorno do recalcado, fundado na identificação ao pai, passa no último ensino de Lacan a ser um sintoma no segundo grau, nos diz Miller[2].

Essa nova definição do sintoma em Lacan colocará, como primeiro, a surpresa da incidência da língua no corpo que faz emergir um gozo que traumatiza aquele corpo que o experimenta. Traumatiza, pois não há palavras que possa traduzir essa experiência.

Portanto, daí abre-se a questão: se o sintoma como acontecimento de corpo implica a experiência de um gozo que não diz nada a ninguém, como forjar, a partir de um encontro com um analista, a construção de um laço social que salvaguarde a singularidade desse gozo?

Essa questão vem sublinhar o fato de que o sintoma como acontecimento de corpo não restringe a nenhum solipsismo, mas reforça a noção de transindividualidade do sujeito para a psicanálise, pois advém num corpo tomado pela linguagem.

Portanto, como nos propõe Éric Laurent, essa nova perspectiva do sintoma que não exclui a dimensão do laço social, esboçaria uma nova psicologia das massas, agora não mais fundada na identificação, mas no que do caldo político-cultural se alastra no corpo produzindo nesse corpo paixões e gozos.

Laurent proporá chamar essas paixões políticas que afetam os corpos dos indivíduos de acontecimentos de corpo políticos.

Chama a atenção ainda o fato que, nessa dimensão política, os acontecimentos apareçam no plural em contraponto ao acontecimento no singular utilizado por Lacan para definir o sintoma. Essa escrita diferenciada nos forneceria elementos para pensar o entrelaçamento da dimensão coletiva em jogo no discurso político e nas diversas formas de laço social com o que há de singular na demanda que chega ao consultório de um analista?

 

Helenice Saldanha de Castro
(EBP/AMP)

 

[1] LAURENT, É. “Paixões religiosas do falasser”. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 75/76. São Paulo: 2017, p. 39.

[2] MILLER, J.-A. “O inconsciente e o corpo falante”. Scilicet: O corpo falante: sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p. 26.


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O analista presente no espaço de um lapso?

Suponhamos (…) um analista que não tenha passado pela desapropriação do pensamento e que mantivesse com a teoria psicanalítica relações de proprietário, (…) de possuidor, comparáveis àquelas do avaro e seu cofrinho. Tal analista, em sua relação com a teoria, naturalmente, só pode ver o ganho da operação. (…) O que ele não vê é o que ele perde na operação. E, o que é que ele perde? (…) Perde a dimensão da topologia que existe nele, (…) a dimensão do lugar de enunciação, a dimensão da presença que nele pode responder presente, responder ao que ele enuncia[1].

 

O analista presente no espaço de um lapso? Essa frase que designa o tema do Eixo I do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano nos surgiu, primeiramente, como uma afirmação. Mas, no decorrer de nossas discussões percebemos que não era uma afirmação evidente, simples de se sustentar. Ela comporta um paradoxo que resolvemos explicitar, pontuando essa frase com uma interrogação. Esse paradoxo diz respeito ao lugar, ao modo de presença do analista quando se trata do inconsciente real, isto é, quando, em uma análise, o espaço de um lapso, como nos diz Lacan, já não tem nenhum impacto de sentido ou interpretação, único momento em que se pode ter certeza de se estar no inconsciente[2]. Trata-se de um espaço tênue que não suporta nenhuma amizade, nenhum laço, nenhuma transferência. Dizendo de outra maneira, estamos seguros de estarmos no inconsciente somente quando, paradoxalmente, não há conexão transferencial e, portanto, podemos nos perguntar: no espaço do inconsciente real, se a transferência está ausente, onde está o analista, como localizar sua presença? Ou, para retomarmos a citação de Lacan que serve de epígrafe a este texto, de que lugar um analista pode responder “presente”?

 

O inconsciente

No Seminário 11[3], Lacan nos apresenta o inconsciente tomado no registro do simbólico, como discurso do Outro, ou seja, o que se realiza apenas do lado de fora. Nesse contexto, quando Lacan diz que o conceito de inconsciente não pode ser separado da presença do analista, é porque, na dimensão do inconsciente simbólico, o analista ocupa o lugar do Outro como destinatário do discurso do analisante. No entanto, também nesse mesmo Seminário, podemos seguir Lacan em seu esforço para situar a presença do analista relacionada a um real que irrompe no âmbito do inconsciente simbólico. A presença do analista é, então, obstáculo à rememoração, meio pelo qual se interrompe a associação livre e a comunicação: presentificação do fechamento do inconsciente. Dessa perspectiva, vemos que a presença do analista é convocada no instante da tiquê, da falha que se repete no momento preciso do bom encontro. Trata-se do real como traumatismo, da repetição de algo inassimilável, inabsorvível pela cadeia significante, e que o analista é chamado a encarnar. Entretanto, se por um lado, podemos dizer que Lacan localiza nesse momento de seu ensino a incidência de um real que emerge nos movimentos de abertura e fechamento do inconsciente, por outro, podemos tomar como uma hipótese a ser discutida, que o impacto desse real, no que concerne à presença do analista, é amortecido pela existência do Outro como lugar do inconsciente. Assim, os impasses que essa formulação apresenta serão atravessados somente anos mais tarde quando Lacan, em seu último escrito[4], nomeia o inconsciente como real e o separa do inconsciente simbólico ou, como foi nomeado por Miller[5], do inconsciente transferencial. Por isso, não é sem razão que encontramos esse escrito como uma introdução a uma edição do Seminário 11, a edição inglesa.

Nesse texto, Lacan nos apresenta uma apreensão do ato de falar completamente distinta do que ele havia proposto até então: fala-se sozinho, para si mesmo, e não para o Outro. Essa formulação não deixa de evocar o Seminário 20: fala-se para gozar e não para se comunicar[6]. Surge, então, outra forma de apresentação do inconsciente na qual o dizer se fecha sobre si mesmo, tornando precária a transição ao Outro. Nesse registro, a fala passa a presentificar o inconsciente não como discurso do Outro, mas como satisfação do Um sozinho, “que não quer dizer nada a ninguém”[7]. Quanto à experiência analítica, isso conduz a um impasse relativo à transferência, colocando um problema com relação ao modo de presença do analista e suas possibilidades de intervenção, pois o analista, diferentemente do que propunha Lacan no Seminário 11, deixa de ser situado como fazendo parte do inconsciente, isto é, como destinatário do discurso do analisante. Assim, o problema não é mais situado entre o sujeito e o Outro, mas entre o falasser e seu próprio gozo. Não se trata mais de uma falha no simbólico, mas de um furo no real, ou seja, de um limite que recai sobre o gozo. Nesse contexto, se o analista pode ser considerado, ainda, como uma manifestação do inconsciente, é porque sua presença é passível de dar corpo ao inconsciente real, ao que está fora da transferência, ao que na fala do paciente se apresenta como obstáculo, ao que não chega a se satisfazer, ao que se equivoca: trata-se do inconsciente sem o Outro.

Nessa dimensão do inconsciente, não encontramos o apoio do discurso do Outro para significar o lapso. Como sublinha Lacan no Seminário 24, a relação com o Outro está rompida[8], trata-se da experiência de que o Outro não responde, é o que Lacan designa com a notação S(Ⱥ). Então, se existe uma resposta, uma presença, ela não vem do Outro. Como apreendê-la? Nesse mesmo Seminário, Lacan utiliza uma expressão curiosa para se referir à fala nesse espaço da ausência do Outro e da concomitante prevalência do gozo: ele nos diz que o “Um dialoga sozinho”[9]. Portanto, podemos pensar que, em seu cerne, a experiência analítica é um diálogo sem Outro, ou melhor dizendo, um diálogo com o Outro que não existe. “Existe o Um, mas não existe nada do Outro”[10].

No entanto, mesmo se considerarmos a provocação feita por Miller quando nos diz que em seu último escrito “Lacan começa a sonhar com uma análise sem analista”[11], não podemos descartar o fato de que a psicanálise continua sendo praticada aos pares. Por conseguinte, somos levados a atestar que, se a prática psicanalítica pode prescindir do Outro, ela não pode prescindir do analista, ou seja, nesse diálogo, é preciso um analista para presentificar o que existe de positivo, de inegável no que diz respeito ao gozo, mas também, o limite dessa existência, dessa satisfação, ou seja, o que faz furo. Podemos dizer, então, com Lacan[12], que, na dimensão do inconsciente real, a presença do analista é o que faz esse furo existir de verdade, existir como esse sens-blanc, que, no Seminário 24, aparece escrito de um modo que podemos traduzir como “sentido branco”, como “sem sentido”. Logo, diante da inexistência do Outro, a presença do analista não se apaga. Ela se torna, ao contrário, decisiva e, podemos ligá-la às condições pelas quais, segundo Lacan, um analista é digno de confiança[13], ou seja, ele é digno de confiança, na medida em que sustenta a barra da inexistência do Outro[14], desta forma, diz Lacan, “a barra é levada a um ponto de extrema incandescência”[15], transformando esse furo, essa inexistência, em uma incandescente presença. Portanto, é essa parte não simbolizada do gozo, que convoca a presença do analista, mas para torná-la presente será preciso dar-lhe vida, encarná-la, será preciso que o analista compareça com seu corpo, em carne e osso.

 

O corpo

Quando se trata do inconsciente real, somos confrontados com “um princípio de identidade totalmente distinto: o corpo”[16]. É o corpo que surge no lugar do Outro que não existe. Não o corpo do Outro, mas o corpo próprio como Outro, como estrangeiro e que vem dar consistência ao real de um gozo que está fora de qualquer significação. Como nos esclarece Miller,

 

trata-se de um corpo que se tem e não de um corpo que se é o que implica que tenhamos uma relação de estranheza com ele. Tudo que estava investido no Outro é aqui retomado sobre a função originária da relação com o próprio corpo como uma ideia de si mesmo e que Lacan situa com a velha palavra ego. Lacan sublinha cuidadosamente que a definição do que se é como ego não tem nada a ver com a definição do sujeito que passa pela representação significante. O ego se estabelece a partir da relação com um-corpo (un-corp)[17].

 

O ego, então, conjuga gozo e imagem. “Não há aí identificação, há pertencimento, propriedade”[18]. Assim, se o inconsciente simbólico é separado do corpo[19], o inconsciente real, ao contrário, pressupõe o corpo, convoca a presença do corpo vivo como encarnação do gozo. O Um do gozo só se sustenta com o corpo, é este que lhe dá consistência.

A partir daí, podemos entender por que Miller afirma que “o corpo é o que o ser humano tem que trazer para a análise”[20]. Essa afirmação serve para o analisante, mas também para o analista, conferindo à experiência analítica uma dimensão topológica, na qual o analista se faz presente para o analisante, ao “condensar um gozo fora do corpo para outro corpo diferente do seu”[21]. É desse lugar que, retornando à epígrafe de Lacan, um analista pode responder “presente”, responder ao que ele enuncia.

Constatamos, então, que certamente a presença do analista não se reduz à simples presença do corpo do analista, mas será que tal presença, a do analista, é possível de se realizar sem o corpo? É possível tocar o real sem o corpo? Essa questão tem sua importância renovada em nossos dias com os atendimentos online que se intensificaram durante a pandemia. O relatório do Comitê de Ação da Escola Una, redigido por Ana Lydia Santiago, ressalta esse problema nos seguintes termos: “sem a presença em carne e osso para perturbar o fascínio da boa forma, é possível tocar o arrebatamento do gozo[22]”?

Um aspecto dessa discussão nos pareceu relevante. Embora o corpo não se evapore, a consistência do corpo, como esclarece Lacan, é mental e não física. O que pode ser constatado no fato de que um esquizofrênico pode ter a experiência de um corpo despedaçado, mesmo que seu corpo esteja em perfeitas condições físicas. Sendo assim, por que o corpo em carne e osso seria fundamental, indispensável, para que uma análise aconteça? É que, para existir, o gozo precisa de um corpo vivo. A experiência analítica não é feita para os anjos, ou seja, para os que não têm um corpo, ela não é uma abstração, não se trata de simples jogos de palavras. O real em jogo em uma análise não é algo ao qual se chega por uma dedução lógica, uma análise implica um trajeto do corpo. Só existe uma maneira de fazer existir o furo: passando por ele, com o próprio corpo, ou seja, é preciso experimentá-lo.

Miller, durante a Grande Conversação, reconhece os efeitos terapêuticos e o bom uso que se pode fazer dos atendimentos online, quando os corpos estão impossibilitados de se deslocarem. Constata-se, segundo ele, certa modalidade de presença pela palavra e pela imagem, todavia, falta o real que necessita do corpo vivo. Sendo assim, a sustentação da presença do analista, do seu dizer, não está do lado da lógica articulada: para fazer frente ao silêncio do real, é preciso a presença perturbadora do corpo.

 

Uma presença que perturba a defesa

O percurso que fizemos até agora nos leva a afirmar que, quando abordamos a presença do analista a partir da perspectiva do inconsciente real, nos deparamos com o esforço de explorar outra dimensão da psicanálise, situável para além daquela que transcorre no âmbito do recalcado e de sua interpretação. Trata-se, conforme esclarece Miller, de “explorar a defesa contra o real sem lei e fora do sentido[23]”. Trata-se de perturbar a defesa contra o real, o que redefiniria o desejo do analista como “um desejo de alcançar o real, de reduzir o Outro ao seu real e liberá-lo do sentido”[24].

Mas o que quer dizer perturbar a defesa? Perturbar a defesa é diferente de interpretar a defesa. A interpretação conserva uma ligação com os efeitos de sentido e com os efeitos de verdade que não convém à defesa. A defesa, de acordo com Lacan[25] qualifica a relação inaugural do sujeito com o real. Desde Freud[26], a defesa é uma maneira eletiva de lidar com o quantum de energia, com o afeto que escapa à representação e se apresenta como um elemento incompatível com o eu. De acordo com Freud, trata-se de um ato voluntário. Em termos lacanianos, podemos dizer que o sujeito elege, por meio da defesa, uma forma de lidar com o real, com o gozo traumático que escapa à representação e que, portanto, não é incluído no eu.

Esse gozo incompatível, inconveniente, por não convir à relação sexual, é expulso do eu e resta isolado, sozinho, sem ligação, como um elemento estranho, isto é, um sintoma. Logo, defendemo-nos do real criando um sintoma. O sintoma é, portanto, essa disfunção, esse elemento estranho, que nos concerne, mas no qual não nos reconhecemos.

Aqui, o corpo está implicado no assunto, é o que leva Lacan, ao final de seu ensino, a definir o sintoma como um acontecimento de corpo. O sintoma está estreitamente relacionado ao fato de se ter um corpo. Portanto, se a interpretação tem a ver com o recalcado e recai sobre a representação, a defesa, por sua vez, tem a ver com o gozo e, perturbá-la significa, do lado do analista, que ele faça aparecer o real que esse gozo implica e, do lado do analisante, que este consinta com o nãotodo desse gozo, com o furo, com o não sentido que o sintoma comporta. O gozo não é, então, algo que pode ser interpretado, e, assim, para o analisante, “não existe meio de fazer de outro jeito do que receber de um psicanalista o que abala sua defesa”[27].

Mas, para que isso aconteça, é preciso mais do que palavras. É preciso que o analista opere com o próprio corpo como agente do trauma[28], fazendo de seu corpo um instrumento que perturbe a defesa, presentificando com o próprio corpo o gozo excluído. Só assim, através do corpo, a materialidade do gozo torna-se consistente ou “corps-sistant[29], como escreve Lacan, tornando possível ao falasser, por meio da experiência analítica, conhecer seu sintoma, relacionar-se com ele, tal como faz com sua imagem e, assim, poder manipulá-lo, e com ele se virar.

Na orientação lacaniana, encontramos algumas formas por meio das quais um analista se faz presente, perturbando a defesa: como “sinthoma[30], como “intruso”[31], como “uma ajuda contra”[32], ou ainda, respondendo do “lugar de mais ninguém”[33].

Aguardamos de vocês, na forma de recortes clínicos, as contribuições da prática da psicanálise lacaniana sobre como o analista se faz presente nas situações em que ele próprio se torna a manifestação do inconsciente, formulado como um limite à transferência. É a partir dessas contribuições que esperamos esclarecer, um pouco mais, essa paradoxal presença do analista no espaço de um lapso.

 

Cartel: Andrea Reis, Carla Serles, Cristina Maia, Glória Maron, Ludmilla Féres Faria, Nohemí Ibañez Brown, Niraldo de Oliveira Santos, Simone Souto (relatora), Sônia Vicente, Tânia Martins.

 

 

 

[1] LACAN, J. Le séminaire, livre XXIV: L’insu que sait de l’une-bévues’aile à mourre (1976-77). Lição de 8 de fevereiro de 1977. Inédito.

[2] _________ “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 567.

[3] _________ O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 119.

[4] _________ 2003, p. 567.

[5] MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2014, p. 13.

[6] LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 148.

[7] MILLER, J.-A. Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2012, p.106.

[8] LACAN, J. 1976-77, lição de 10 de maio de 1977.

[9] _______ ibid., lição de 11 de janeiro de 1977.

[10] __________. ibid., lição de 10 de maio de 1977.

[11] MILLER, J.-A. op. Cit., 2014, p. 92.

[12] LACAN, J. op. Cit., 1976-77, lição de 10 de maio de 1977.

[13] _________ ibid., lição de 18 de janeiro de 1977.

[14] _________ ibid., lição de 18 de janeiro de 1977.

[15] _________ ibid., lição de 08 de fevereiro de 1977.

[16] MILLER, J.-A. op. cit., 2014, p. 107.

[17] ____________ ibid., p. 108.

[18] ____________ ibid.

[19] ____________ ibid., p. 81.

[20] ____________ ibid., p. 108.

[21] LAURENT, É. O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2018, p. 65.

[22] SANTIAGO, A. L. Relatório do Comitê de Ação da Escola Una, 2022. Disponível AQUI

[23] MILLER, J.-A. “O real no século XXI”. Revista Opção Lacaniana, n° 63. São Paulo, 2012, p. 11-20.

[24] ____________ ibid., p. 17.

[25] LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 43.

[26] FREUD, S. “As neuropsicoses de defesa”. Obras completas, v. III. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1894/2006.

[27] LACAN, J. 1976-77, lição de 11 de janeiro de 1977.

[28] LAURENT, É. “A ordem simbólica no século XXI. Consequências para o tratamento”. Opção Lacaniana, n° 62. São Paulo, 2011, p. 88.

[29] LACAN, J. op. Cit., 1976-77, lição de 14 de dezembro de 1976.

[30] _________ O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 131.

[31] MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 41.

[32] LACAN, J. op. cit.,2007, p. 131.

[33] _________ “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: “Psicanálise e estrutura da personalidade”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 674.


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A interpretação: da escuta ao escrito

A escuta serve para tudo. Por exemplo, para constituir amálgamas entre terapias autoritárias centradas na reeducação dos comportamentos e a psicanálise, que se apoia no sujeito do inconsciente. A tentativa de substituição de uma pelas outras passa pela constituição de uma categoria confusa e inconsistente, a das práticas da escuta. Como se fosse o caso, sobretudo, de escutar a queixa dos sujeitos que pedem ajuda, ao passo que se trata de fazer disso alguma coisa.

O comportamentalista escuta, no que lhe é dito, o agenciamento de uma soma de comportamentos elementares que ele pretende, em seguida, reeducar. Ele responde ao que ouviu por meio de uma objetivação dos comportamentos e uma série de prescrições. A crença do comportamentalizado repousa na fé na reeducação.

O analista, em primeiro lugar presente como escuta, introduz, com seu silêncio, uma demanda de fala por parte do analisando. A resposta do analista jogará nesse registro da demanda para responder ao lado da demanda, a fim de poder fazer ouvir naquilo que é dito o que ultrapassa a intenção daquele que sustenta seu dizer. O analista assume a responsabilidade da escuta para fazer surgir a presença de um sentido diferente do senso comum, de uma parte do discurso que sempre escapa. A isso se acrescenta a crença do analisando de que o analista tem em seu poder o saber no lugar do objeto demandado. Qualquer demanda implica a escuta, o silêncio da escuta como lugar reservado ao que, naquilo que se diz, excede a intenção. Essa escuta silenciosa vem marcar o lugar do desejo que, no discurso, se ignora.

O lugar do desejo assim isolado também testemunha a fixação do gozo que está em jogo na queixa. A efração constituída pelo gozo na homeostase do corpo é o fundamento da repetição do Um: “Nos casos aos quais se tem acesso pela psicanálise, seu modo de entrada [o do gozo] é sempre pela efração. A efração, ou seja, não a dedução, a intenção ou a evolução, mas a ruptura, a disrupção em relação a uma ordem prévia, em relação à rotina do discurso pelo qual as significações se sustentam, ou em relação à rotina que se imagina do corpo animal”[1].

A escuta não tem, portanto, vocação para ficar paralisada em seu silêncio. Ela deve ajudar a manifestar a dimensão do desejo para além da intenção e de uma pulsão acéfala. Esta é a função da interpretação. O desejo não é a interpretação metalinguageira de uma pulsão prévia confusa. O desejo é sua interpretação. As duas coisas estão no mesmo nível. Uma outra proposição deve ser acrescentada: “os psicanalistas fazem parte do conceito de inconsciente, posto que constituem seu destinatário”[2]. O psicanalista só consegue acertar o alvo se ele estiver à altura da interpretação operada pelo inconsciente, já estruturado como uma linguagem. Ainda é preciso não reduzir essa linguagem à concepção que a linguística pode ter dela, de uma ligação entre o significante e o significado. É preciso dar todo o seu lugar à barra que separa as duas dimensões e permite a topologia da poética. A função poética revela que a linguagem não é significação, mas ressonância, e evidencia a matéria que, no som, excede o sentido.

 

Da interpretação tradução à interpretação corte

É no laço entre a interpretação tradução, que ainda joga com o sentido, e a interpretação corte, que joga com a matéria sonora equívoca, que se situa, no ensino de Lacan, a passagem entre a interpretação que dá sentido e seu avesso. Jacques-Alain Miller definiu essa problemática em um retumbante artigo opondo a interpretação tradução à interpretação assemântica, que remete apenas à opacidade do gozo. O lugar vazio não está mais “de reserva”, está em primeiro plano. “A questão não é saber se a sessão é longa ou curta, silenciosa ou falante. Ou a sessão é uma unidade semântica, aquela em que S2 vem pontuar a elaboração – delírio a serviço do Nome-do-Pai –, muitas sessões são assim, ou então a sessão analítica é uma unidade a-semântica, reconduzindo o sujeito à opacidade de seu gozo. Isso supõe que, antes de ser concluída, ela seja cortada”[3]. A polaridade fundamental não é mais entre o sentido e a verdade como furo, mas entre as duas faces do gozo: o que é um lugar vazio no discurso e o perfura, mas que se impõe em sua plenitude de opacidade.

Essa nova polaridade só é apreendida em seu pleno desenvolvimento rompendo com as ilusões não apenas da intersubjetividade, mas também do diálogo. Jacques-Alain Miller o ressalta em sua invenção do conceito de aparola (apparole), reconfigurando os avanços do último ensino de Lacan. “A aparola é um monólogo. O tema do monólogo obceca o Lacan dos anos 70 – o lembrete de que a fala é, sobretudo, monólogo. Proponho aqui a aparola como o conceito que corresponde ao que surge no Seminário Mais, ainda, quando Lacan interroga de maneira retórica: lalíngua, será que ela serve primeiro para o diálogo? Nada é menos certo”[4].

Enquanto a interpretação semântica queria fazer um relance, a interpretação que confronta o gozo visa, ao contrário, a um não-relance. “É preciso que haja um limite ao monólogo autista do gozo. E acho muito esclarecedor dizer que – A interpretação analítica faz limite. A interpretação [em geral], ao contrário, tem uma potencialidade infinita”[5]. A potencialidade infinita do discurso livre coloca como único limite ao gozo aquele do princípio do prazer. O limite da interpretação se propõe diferente. “Dizer qualquer coisa conduz sempre ao princípio do prazer, ao Lustprinzip […] Particularmente porque, ao colocarmos entre parênteses os interditos, as inibições, os preconceitos, etc., quando isso se põe verdadeiramente a girar nesse nível há uma satisfação da aparola”[6]. É também com isso que a escuta pode se encantar. Permanecemos, assim, no princípio do prazer, mesmo que ele seja comportamentalizado. Trata-se, portanto, de dar uma nova visada à interpretação. Em vez de recorrer ao princípio do prazer e suas possibilidades indefinidas, trata-se de introduzir como limite a modalidade do impossível. “Isso indica qual poderia ser o lugar da interpretação analítica, na medida em que ela interviria na contramão do princípio do prazer […] a interpretação analítica introduz o impossível”[7].

Ao introduzir essa modalidade que rompe com a associação livre da fala, ao estabelecer um certo isto não quer dizer nada, a interpretação que passa pela fala passa para o lado da escrita, única capaz de se encarregar do furo do sentido e do impossível. “A exemplo da formalização, a interpretação […] está mais do lado do escrito do que do lado da fala. De todo modo, ela deve ser feita desafiando o escrito, na medida em que a formalização supõe o escrito”[8].

A problemática da interpretação assemântica introduz uma dimensão híbrida entre o significante e a letra, ao passo que toda uma parte do ensino de Lacan os opõe. Ela dá conta do fato de que Lacan vem a opor a interpretação e a fala. “A interpretação analítica […] incide de uma forma que vai muito mais longe do que a fala. A fala é um objeto de elaboração para o analisando, mas há nela efeitos do que o analista diz – porque ele diz. Não é trivial formular que a transferência desempenha nisso um papel, mas isso não esclarece nada. Tratar-se-ia de explicar como a interpretação incide e que ela não implica necessariamente uma enunciação”[9].

 

A interpretação assemântica e o escrito

No primeiro ensino de Lacan, a interpretação tinha como efeito dar acesso aos capítulos apagados da minha história, ao que ali estava escrito. No segundo, Lacan se livra dessa referência à história para manter apenas a referência ao “estava escrito”. O efeito de suposto saber, sua generalização, deve ser mantido a partir do poder do “estava escrito”. Uma nova concepção de interpretação decorre disso: “A interpretação, cuja essência é o jogo de palavras homofônico, é o reenvio da fala à escrita, ou seja, o reenvio de cada enunciado presente em sua inscrição”[10].

A interpretação como homofonia é apreendida na generalização do equívoco, que supõe um reenvio ao está escrito. Ela convoca a relação muito complexa entre fala e escrita. No Seminário 23, Lacan desenvolve a escrita como apoio da fala, recusando-se a seguir Jacques Derrida em sua ideia de escrita como impressão, trama, traço. Ele constrói uma literalidade, uma relação com a instância da letra a partir da experiência. “Uma interpretação sempre quer dizer ‘você leu mal o que estava escrito’. Nesse sentido, a interpretação é uma retificação da leitura do suposto saber. A interpretação supõe que a própria fala seja uma leitura, que ela reconduza a fala ao ‘texto original’”[11].

Esse reenvio também pode ser formulado como um engancho para significantes no nó R.S.I. Eles vêm se apoiar nessa escrita. Fazemos jogar essa escrita como apoio, cada vez que fazemos o sujeito ouvir um equívoco que desfaz o afastamento entre a fala e a escrita. Não se trata mais apenas do S1 e do S2 , do apoio do S2  para dar sentido ao S1 . Trata-se também dessa escrita-apoio que valoriza os registros extremamente diversos do equívoco, que ampliam o campo das interpretações possíveis e o sentido de nossa ação. O dizer do analista não é mais S2  produtor de cadeias associativas. O nó borromeano obstaculiza isso produzindo outros tipos de cadeias. “O que formulamos com o nó borromeano já vai contra a imagem da concatenação. O discurso do qual se trata não faz uma cadeia […] A partir de então, a questão é saber se o efeito de sentido em seu real se deve ao emprego das palavras”[12]. O efeito de sentido real dispensa o imaginário da significação. “O efeito de sentido exigível do discurso analítico não é imaginário. Ele tampouco é simbólico. É preciso que ele seja real. Este ano, estou me ocupando em pensar qual pode ser o real de um efeito de sentido”[13]. Esse real notifica a nova visada do aperto do nó em torno do acontecimento de corpo e da inscrição que pode ser notada (a) em um uso renovado.

 

Ler com seus ouvidos

É o que nos propõe Lacan no terceiro capítulo de Mais, ainda. Este começa com uma série de paradoxos que, numa provocação barroca, visam a desfazer a ligação aparentemente evidente da leitura com o que se escreve. “A letra, lê-se, como uma carta. Parece mesmo feita no prolongamento da palavra. Lê-se, e literalmente. Mas não é justamente a mesma coisa ler uma letra ou bem ler. É evidente que, no discurso analítico, só se trata disto, do que se lê, e tomando como o que se lê para além do que vocês incitaram o sujeito a dizer”[14].

Lacan começa, então, questionando a evidência do laço entre a leitura e a letra e propõe uma concepção original de leitura. Ler um dizer, ou uma fala, “para além do que vocês incitaram o sujeito a dizer” pela regra fundamental, reformulada, simplificada, como “diga qualquer coisa”, mas diga! E essa leitura do dizer define o inconsciente, como o escreve Miller em seu intertítulo: o inconsciente é o que se lê.

Não basta que o significante e o significado sejam distinguidos. Há uma barra que os separa, e Lacan lhe dá um alcance radical. “O significado não tem a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve de significante”[15]. Lacan nos comunica sua reflexão sobre a barra como notação da negação, ou melhor, dos modos de negação no plural. Lacan ainda não tornou pública sua tabela da sexuação, que virá dois meses depois como sua “carta de almor (âmour)”. Ele anuncia o uso que fará da barra nos quantificadores. “A negação da existência […] não é de todo a mesma coisa que a negação da totalidade”[16] – é exatamente isso que ele usará como recurso diferenciado nas fórmulas da sexuação.

A barra, ele nos diz, não é para ser compreendida, mas para ser explicada a fim de interrogar um limite da linguística. Esta tem dificuldades em dar conta do efeito de sentido produzido pela incidência do significante sobre o significado. Este é um tema já abordado de forma diferente por Lacan em “Lituraterra”. A diz-mensão da letra, segundo Lacan, implica uma certa instância, uma certa insistência, um certo forçamento para se incluir na trama das significações. A instância, realçada no texto “A instância da letra”[17], designa, na letra, “aquilo que, a ter que insistir, só existe nela de pleno direito quando, por força da razão, isso se destaca”[18]. A referência à razão é, por certo, uma referência ao título do artigo de 1957: “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”.

Para ouvir o que Lacan chama de injeção do significante no significado, temos o exemplo de uma troca epistolar entre Ponge e Lacan, que data de um ano após a publicação de “Lituraterra”. Lacan retransmite uma pergunta de Jakobson a Ponge. “Existe algum exemplo de poesia em francês onde se denote uma insistência na violação do acordo gramatical, na disfunção do singular e do plural, do gênero, da posposição da ‘preposição’, etc.?”[19]. Ao transmitir a questão, Lacan a formula em termos, ele evoca a “insistência” da carta poética em infringir as regularidades sintáticas. Lacan não recua diante da agressão e da violência feitas à sintaxe pela letra ao falar de “insistência na violação”. O que interessa a Lacan é a escrita poética como ilha de efração, de irregularidade. A referência à obra do poeta americano de vanguarda E.E. Cummings põe em destaque essa vontade.

Em Mais, ainda, Lacan nos dá um exemplo do forçamento da letra na leitura do discurso atual operada pelo discurso psicanalítico. Trata-se da leitura da expressão “Não há relação sexual”. No discurso comum, o enunciado pode ser escrito como xRy, homem R mulher. Mas os termos significantes do uso comum não têm relação com a articulação desses significantes com as funções lógicas liberadas pelo discurso psicanalítico. No nível da relação sexual, no nível da questão fálica, a mulher que não existe só pode ser apreendida como mãe, no lugar da mãe. O que é uma leitura lógica do complexo de Édipo. Da mesma forma, a leitura lógica da relação mãe-filho transforma o que Freud situava do lado do ideal. A mãe torna-se suplência do não-toda sobre o qual “repousa o gozo da mulher”. O filho faz tampão dessa ausência, encarnando o (a) como letra que vem marcar o lugar da ausência. Quanto ao homem, ele é articulado ao que se nota como gozo fálico e tomado como todo nesse gozo.

 

A interpretação como forçamento poético

Se o significante é causa do gozo, devemos nos perguntar como esse gozo pode escapar do autoerotismo do corpo e ainda responder à jaculação interpretativa. “Logo, é necessário sustentar a questão de saber se a psicanálise não é um autismo a dois. Existe uma coisa que permite forçar esse autismo – é que lalíngua é uma tarefa comum”[20]. O gozo é autoerótico, mas a língua não é um assunto privado. Ela é comum. E Lacan explora os recursos do que pode permitir ao analista fazer ressoar outra coisa que não o sentido, algo que evoque o gozo na língua comum. Primeiro, há a poesia. “O forçamento é por onde um psicanalista pode fazer soar outra coisa que não o sentido. O sentido ressoa com o auxílio do significante. Mas, com o auxílio do que chamamos de escrita poética, vocês podem ter a dimensão daquilo que poderia ser a interpretação analítica”[21].

Levar em conta as diferentes diz-mansões no novo uso do significante possibilitado pela interpretação permite a Lacan romper com a concepção saussuriana do signo e da linguística que dela se deduz. “A linguística é uma ciência muito mal orientada. Ela não se sustenta senão à medida em que um Roman Jakobson aborda, francamente, as questões da poética. A metáfora, a metonímia, não têm capacidade para a interpretar, a não ser quando elas são capazes de exercer a função de outra coisa com a qual se unem estritamente o som e o sentido”[22].

O uso que o psicanalista faz da metáfora e da metonímia não tem, porém, a mesma visada que o poeta, que visa o efeito estético, libera um mais-de-gozar que lhe é próprio. O psicanalista, como no chiste, deve visar a ética, ou seja, o gozo. “É mesmo nisso que consiste o chiste. Consiste em se servir de uma palavra para outro uso que não aquele para o qual ela é feita; dobramo-la, um pouco, e é nessa dobradura que reside seu efeito operatório”[23]. A nova poética que Lacan traz à luz por meio da interpretação não está ligada ao belo, mas toca o gozo como o chiste, que desencadeia um mais-de-gozar particular. “Não temos nada a dizer do belo. Ele se ocupa de um equívoco ou, como diz Freud, de uma economia”[24].

Essa ressonância permite elevar o dizer à altura de um acontecimento, como o sintoma. “Observem que eu não disse a fala, eu disse o dizer, toda fala não é um dizer, sem o que toda fala seria um acontecimento, o que não é o caso, sem isso não se falaria de falas vãs. Um dizer é da ordem do acontecimento”[25].

 

Ler-se como uma andorinha

O terceiro capítulo do Seminário Mais, ainda termina com um belíssimo apólogo, que situa o ponto em que desemboca a leitura do inconsciente em uma psicanálise. A psicanálise não apenas ensina a ler, mas ensina a “se ler”, com o mesmo efeito reflexivo da pulsão[26]. A pulsão é acéfala. Ela consiste em se fazer ver, cagar, papar, ouvir. Quando atingimos esse ponto, essa ausência do eu (moi) onde se realiza um novo saber, Lacan sustenta que “estamos no registro do discurso analítico”[27]. Nesse discurso, não há mais oposição entre o leitor e o texto, os dois se interpenetram. Mais de mim (moi) para encarregar-me da leitura. Isso se lê.

O apólogo final retoma a exigência do início do capítulo: no discurso analítico, situar a função da escrita, mas deslocando-a. No início do capítulo, diz-se: “É bastante óbvio que, no discurso analítico, trata-se apenas daquilo, do que se lê, do que se lê além do que você incitou o sujeito a ser dito”[28]. E no final do capítulo, no apólogo, passamos da leitura para “se ler”. Lacan interroga não apenas o inconsciente, mas o sujeito do inconsciente, o laço que ele mantém com o Outro do discurso psicanalítico.

Este apólogo se apresenta como uma leitura do “grande livro do mundo”. Lacan vê nele o voo de uma abelha e o voo das andorinhas. A abelha vai de flor em flor, colhe o pólen. Um saber produz uma leitura dessa ação. A abelha transporta em suas patas o pólen de uma flor para outra. Ler o voo das abelhas é saber que elas servem à reprodução das plantas. Mas ela o sabe? Da mesma forma, no voo dos pássaros, pode-se ler que haverá tempestade. Lacan toma o exemplo do voo das andorinhas, animal pelo qual se interessa desde “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”[29]. Mas a pergunta nos é formulada: será que a andorinha lê a tempestade?

Lacan ainda não dispõe da categoria de falasser (parlêtre), mas ele desliza do sujeito do inconsciente para um modo do vivente que, ao contrário da andorinha, é um vivente suposto suposto saber ler. “E não é outra coisa, essa história do inconsciente, de vocês.”[30]. Lacan dá então uma bela e simples definição do percurso de uma análise: “vocês […] supõem que ele sabe ler, como supõem que ele pode aprender a ler”[31]. Então, vem o paradoxo final. “Só que, o que vocês o ensinam a ler, não tem, então, absolutamente nada a ver, em caso algum, com o que vocês possam escrever a respeito”[32].

O procedimento do passe permite dar conta da maneira como um sujeito se lê em uma análise e como ele aprendeu a ler. Em contrapartida, o que se pode escrever a respeito são letras que remetem às funções lógicas reveladas pela experiência da psicanálise. Os equívocos da língua que compõem o inconsciente não têm nenhuma relação com essas letras. De maneira radical, o sujeito do inconsciente é lógico e não psicológico. É uma lógica em que os jogos da escrita e da leitura se entrelaçam, assim como a poesia barroca podia se encantar pelos jogos da beira da praia com a onda. O litoral da letra e do gozo nos encanta com jogos da leitura e da escrita, para chegar ao ponto em que não mais precisemos da ferramenta da fantasia para “se ler”.

 

Éric Laurent

Psicanalista, AME, membro da EBP, ECF, ELP, EOL, NEL, NLS e AMP

 

Tradução: Vera Avellar Ribeiro

Revisão: Fernanda Otoni Brisset

N.E.: Texto publicado anteriormente em Correio, n. 87. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. Abril, 2022. Contamos com a amável autorização do autor para esta publicação.

[1] MILLER, J.-A. «L’Un est lettre». La Cause du désir, Paris, n. 107, p. 35, mar. 2021.

[2] LACAN, J. “Posição do inconsciente”. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 848.

[3] MILLER, J.-A. “L’interprétation à l’envers”. La Cause freudienne, Paris, n. 32, p. 13, jan. 1996.

[4] ____________ “O monólogo da aparola”. Opção Lacaniana online, nova série, São Paulo, ano 3, n. 9, nov. 2012.

[5] ____________ Ibid.

[6] ____________ Ibid.

[7] ____________ Ibid.

[8] ____________ Ibid.

[9] LACAN, J. O seminário, livro 22: R.S.I. Lição de 11 de fevereiro de 1975. Texto estabelecido por J.-A. Miller. Ornicar?, Paris, n. 4, p. 95-96.

[10] MILLER, J.-A. «Introduction à l’érotique du temps». La Cause freudienne, Paris, n. 56, p. 77, mar. 2004.

[11] __________ 2004, op. cit., p. 78.

[12] LACAN, J. O seminário, livro 22: R.S.I. Lição de 11 de fevereiro de 1975, p. 96.

[13] _________ Ibid.

[14] _________ O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008 (novo projeto). p. 32-33.

[15] __________ 2008, op. cit., p. 39.

[16] __________ Ibid.

[17] __________ “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. In: LACAN. Escritos, op. cit., p. 496-536.

[18] __________ “Lituraterra”. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 18.

[19] __________ “Carta a Francis Ponge, 11 de dezembro de 1972”. La Cause du désir, n. 106, p. 14, jun. 2020.

[20] _________ “Rumo a um significante novo”. Texto estabelecido por J.-A. Miller. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Ed. Eolia, n. 22, p. 9, ago. 1998.

[21] _________ Ibid., p. 10.

[22] _________ Ibid., p. 11.

[23] _________ Ibid., p. 13.

[24] _________ Ibid., p. 11.

[25] _________ O seminário, livro 21: Les non-dupes errent. Lição de 18 de dezembro de 1973. Inédito.

[26] _________ O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979.  

[27] _________ 2008, op. cit., p. 42.

[28] _________ Ibid.

[29] Cf. LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. (1953) In: LACAN, 1998, op. cit., p. 273.

[30] _________ 2008, op. cit., p. 43.

[31] _________ Ibid.

[32] _________ Ibid.


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Editorial – PUNCTUM 2

O Boletim Punctum número 2 chega até vocês fazendo furos, perturbando e provocando o trabalho de ler, reler, estudar um pequeno detalhe, uma passagem, uma articulação inédita, uma interrogação…

Éric Laurent em seu texto “A interpretação: da escuta ao escrito” nos leva da interpretação que joga com o sentido (interpretação tradução) à interpretação que joga com a matéria sonora equívoca (interpretação corte). O cartel que tem trabalhado em torno do tema do eixo 1 do Encontro, nos traz o modo de presença do analista na perspectiva do inconsciente real – presença passível de dar corpo ao inconsciente real. Este texto, que tem como relatora Simone Souto, já nos interroga em seu título “O analista presente no espaço de um lapso?”.

Mas, se o Boletim nos convoca ao trabalho, também nos traz referências às quais podemos recorrer. “Bibliografia e ressonâncias” com os textos dos colegas Cleyton Andrade e Helenice Saldanha de Castro. E para nos orientarmos, ainda mais, nestes preciosos detalhes que são colocados em cena temos os “Textos de orientação” que são apresentados por Andréa Reis Santos e que estão disponíveis em nosso site.

Nesta empreitada, podemos ainda nos servir da literatura. Assistam a entrevista com Patrick Gert Bange, doutor em ciência da literatura, que nos fala sobre o punctum na literatura e, em especial, em Madame Bovary.

Bom trabalho a todos com este Punctum.

 

Patricia Badari
Pela Coordenação da Comissão de Site e Boletim


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