“… a fantasia da Amazon é ter certeza de que a falta será saturada por um objeto do mercado global, que estará tão acessível a todo momento, quanto o saber na internet”[1].
I
Talvez a expressão mais usual para definir a função do analista, pelo menos no nosso meio, seja a de objeto, ou de “semblante de objeto”. O analista faz semblante de objeto.
Ou seja, o analista é aquele cuja presença torna possível que surja em cena, ou na cultura, o objeto, mas de certa forma transformado pela vestimenta do semblante. Penso que essa função de semblante atinge, aliás, não somente o objeto, mas também outras funções que se manifestam em uma análise, como de Outro, ou mesmo de sujeito.
Existe, como se pode ver, uma certa tensão na expressão, entre o objeto, – o objeto desnudo, digamos assim, mesmo que seja hipotético -, e seu caráter de semblante. Esta tensão pode, naturalmente, se manifestar com uma coloração afetiva, como nos mostrou nossa colega argentina Silvia Salman há alguns anos, no seu testemunho de passe.
Silvia defrontou-se, já para o final da sua análise, com um objeto, no caso representado pelo analista, que parece corresponder a esse súbito desnudamento: ela lhe deu o nome de “objeto estranho”, denominação oportuna, meio à la E.T.A. Hoffmann, que insere esse objeto na categoria freudiana do Unheimlich, traduzido em português por infamiliar. É um objeto que surge, não de uma acumulação progressiva de experiências, mas de repente, como na situação contada no texto freudiano, do senhor que irrita Freud ao irromper na cabine do trem onde Freud se encontrava, e que, após alguns segundos, é reconhecido como sendo ele próprio, Freud, cuja imagem lhe fora devolvida por um espelho[2].
II
A língua, assim como as experiências científicas, as relações sociais, ou mesmo uma escolha qualquer feita por alguém, têm algo em comum: todas produzem dejetos, entendidos aqui como seus resíduos finais, depois de cumpridos seus processos de produção.
Quando perguntamos, portanto, de onde vem tal vocábulo, e citamos tal termo grego ou latino, talvez tenhamos a impressão de que se trata de um processo direto, ou evidente. Na verdade, as palavras se formam ao longo de uma história tortuosa, cheia de encontros surpreendentes e de mudanças nos seus significados, o que faz com que nunca possamos ter, na prática, uma certeza absoluta de que tal palavra da nossa língua se origina realmente ou completamente de tal vocábulo latino ou grego, por mais que se pareçam formalmente. Ou então, uma palavra antiga, primitiva, pode ter dado origem a um conjunto extenso de outras palavras, que aparentemente não têm nenhuma relação semântica entre elas. Basta pensar no verbo latino fari, que, além de significar falar na nossa língua, deu origem a outras palavras que são distantes do sentido original: infante, nefasto, e tantos outros.
As palavras, assim como a própria língua no seu conjunto, estão sempre em movimento ao longo do tempo, e vão deixando restos que não são aproveitados explicitamente na produção do sentido. Ou até mesmo conduzem para um sentido oposto ao original. Lembro que na primeira leitura que fiz do Unheimlich freudiano, o que mais me impressionou foi o fato de duas palavras opostas, que em princípio deveriam excluir-se, pudessem significar a mesma coisa: heimlich e unheimlich.
O sentido, portanto, não recobre inteiramente a palavra. A rigor, ele é apenas um dos seus aspectos. Se recobrisse, não existiriam, para citar só dois exemplos, estas importantes produções da língua: a poesia e a ironia, que são maneiras de fazer vacilar a estreiteza do sentido. Em consequência, tampouco haveria o diálogo psicanalítico, que se dá em um espaço no qual se confrontam em permanência o sentido e os seus dejetos.
Em seu texto que chamou de A salvação pelos dejetos, Jacques-Alain Miller nos explica:
“…a descoberta freudiana (…) foi, como se sabe, primeiramente, a desses dejetos da vida psíquica, os dejetos do mental que são o sonho, o lapso, o ato falho e mais além, o sintoma”[3].
E, mais para o final do artigo, Miller define o analista de uma forma que me parece definitiva:
“O que os salva (…) é ter tido êxito em fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso”[4].
Esse novo discurso, chamado por Lacan de discurso do analista, é a maneira de tornar possível um laço social que inclua o dejeto.
Se Miller diz que o analista teve êxito nessa operação de “fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso”, é porque outros, sabendo ou não, fracassaram. Quer dizer, em outros momentos da História, ou mesmo agora, houve e há irrupções do objeto como dejeto da fala. O que há de particular – talvez inédito – no trabalho do analista, é ter incluído essa irrupção em um laço social. Esta é a grande novidade trazida pela psicanálise.
Em outras palavras, o dejeto, se por um lado é incompatível com o sentido, passa a ser, por outro, um componente necessário ao discurso.
Romildo do Rêgo Barros (EBP/AMP)
Presidente do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano
[*] Trabalho para a reunião preparatória do Encontro Brasileiro em 13/05/2021, em mesa (online) com Marcus André Vieira.
[1] LAURENT É., “Gozar da internet”. Disponível em: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/gozar-internet#:~:text=%C3%89ric%20Laurent%20%E2%80%93%20A%20internet%20transforma,portanto%20a%20todas%20as%20coisas.
[2] FREUD S., “O estranho”. Obras Completas. Vol. XVII, p. 309, Nota 1.
[3] MILLER J.-A., “A salvação pelo dejetos”. Correio. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. N. 67. Dezembro de 2010. p. 19.
[4] Ibid. p. 23.