Textos de orientação

O Punctum nº 2 convida a todos a acessarem a rubrica Textos de Orientação que está abrigada na aba Encontro em nosso site. Inauguramos este espaço com uma série de escritos norteadores que apontam importantes vias de acesso, trilhamentos possíveis em direção ao Analista: presente! Os dois textos gentilmente cedidos por Jacques-Alain Miller: O Inconsciente real, texto de 2006 e Os Trumains, de 2007, funcionam como mapas que permitem localizar o que está em jogo no último ensino de Lacan. O que vem a seguir está intimamente articulado ao campo que esse ensino permite ampliar. A poética na fenda entre dois, de Fernanda Otoni Brisset, desdobra o tema da presença do analista nos diferentes rumos que são tomados por cada um dos três eixos de pesquisa que orientam os trabalhos. Declinações do despertar na experiência analítica, de Lucíola Freitas de Macêdo, detalha o tema da política do despertar em uma estreita articulação com o último ensino, e ainda o Relatório do Comitê de Ação: A psicanálise virtual, apresentado por Ana Lydia Santiago na Grande conversação da Escola Una, traz a público o importante trabalho de investigação em torno das consequências do uso do virtual na experiência da análise. São textos que alinhados assim em ordem cronológica poderiam sugerir uma orientação linear, tipo via régia. O interessante, porém, é que sejam tomados juntamente com os próximos textos como bússolas mais complexas, tal como Miller propõe sobre o último ensino: ali a direção é o giro em círculos. Entrar nos textos e nos atravessamentos entre eles, e nos deixar aturdir.

 

Andréa Reis Santos
Pela comissão de Site e Boletim do XXIV EBCF


Bibliografia e ressonâncias

Trabalho no impossível de dizer. Dizer é outra coisa do que falar. O analisante fala, faz poesia. Ele escreve poesia quando chega — é raro, mas é arte. Corta porque não quero dizer “já é tarde”. O analista, ele, tranche. O que ele diz é corte, ou seja, ele participa da escrita, justamente nisso: que para ele equivoca sobre a ortografia. Escreve diferentemente de modo que, pela graça da ortografia, por um outro modo de escrever, sonha outra coisa diferente do que é dito, diferente do que é dito com intenção de dizer, é dizer conscientemente, mesmo quando a consciência vai muito longe. Por isso digo que nem no que diz o analisando nem no que diz o analista, há outra coisa que não a escrita. Essa consciência não vai longe, não se sabe o que se diz quando se fala[1].

 

Lacan aproxima o corte, o dizer do analista e a escrita. Com isso, coloca a poesia do lado da fala do paciente, e não do lado da interpretação analítica. Seria esta uma indicação que anula aquela do seminário anterior, em que a interpretação encontra sua referência na escrita poética chinesa? Uma ultrapassagem? Uma mudança de rumo? Da poesia em fluxo migratório da interpretação para a fala do paciente? E ainda mais sob o abatimento exaltado da tagarelice?

Lacan, nesse momento, é um crítico contundente da fala. Ao colocar a fala e a poesia juntas, acena para o fato de que o destino disso é o sono, o adormecimento. É preciso cortar o enunciado que se pretende poético, para que um esbarrão do significante com o real possa criar a oportunidade de o sujeito sonhar com outra coisa, ou seja, de se deparar com algo que não atenda ao formalismo da consciência, posto que ele não sabe o que diz quando fala. Ele não sabe sobre sua enunciação quando formula um enunciado, pois a fala é inadequada para a enunciação. Por isso, ela só pode produzir a coisa na fantasia, em um estado em que se confunde sonho com realidade, em que não se sabe se é o sonhador que sonha ser uma borboleta, ou se é a borboleta a sonhar que é o sonhador, que sonha ser uma borboleta.

Não se sabe o que se diz quando se fala, porque não há como saber do dizer pela fala, e isso porque a enunciação tem uma relação muito maior com a escrita do que com a própria fala. Seja no que diz o analisante, seja no que diz o analista, não há outra coisa que nos interessa mais senão a escrita. O dizer numa análise é, portanto, da ordem de uma escrita, mesmo que o dito seja uma fala.

O enunciado que faz poesia pode recair para uma tagarelice, porém a enunciação poética tem um destino diferente. O modelo do corte para a resposta do analista parece com o silêncio que corresponda à dimensão do desejo do analista, que faz emergir uma enunciação. Portanto, o corte se apresenta como um dizer, este, sim, poético.

 

Cleyton Andrade
(EBP/AMP)

[1] LACAN, J. Momento de concluir. lição de 20 de dezembro de 1977. Inédito.


Um corpo é submetido a afetos e paixões, tanto o corpo político quanto o individual. Novas paixões políticas surgem como novos acontecimentos de corpo políticos, depois se transformam.[1]

 

Freud, como sabemos, tomará o sintoma histérico como referência para pensar a constituição de um sintoma na neurose. Porém, esse sintoma primeiro em Freud, o sintoma como formação do inconsciente e retorno do recalcado, fundado na identificação ao pai, passa no último ensino de Lacan a ser um sintoma no segundo grau, nos diz Miller[2].

Essa nova definição do sintoma em Lacan colocará, como primeiro, a surpresa da incidência da língua no corpo que faz emergir um gozo que traumatiza aquele corpo que o experimenta. Traumatiza, pois não há palavras que possa traduzir essa experiência.

Portanto, daí abre-se a questão: se o sintoma como acontecimento de corpo implica a experiência de um gozo que não diz nada a ninguém, como forjar, a partir de um encontro com um analista, a construção de um laço social que salvaguarde a singularidade desse gozo?

Essa questão vem sublinhar o fato de que o sintoma como acontecimento de corpo não restringe a nenhum solipsismo, mas reforça a noção de transindividualidade do sujeito para a psicanálise, pois advém num corpo tomado pela linguagem.

Portanto, como nos propõe Éric Laurent, essa nova perspectiva do sintoma que não exclui a dimensão do laço social, esboçaria uma nova psicologia das massas, agora não mais fundada na identificação, mas no que do caldo político-cultural se alastra no corpo produzindo nesse corpo paixões e gozos.

Laurent proporá chamar essas paixões políticas que afetam os corpos dos indivíduos de acontecimentos de corpo políticos.

Chama a atenção ainda o fato que, nessa dimensão política, os acontecimentos apareçam no plural em contraponto ao acontecimento no singular utilizado por Lacan para definir o sintoma. Essa escrita diferenciada nos forneceria elementos para pensar o entrelaçamento da dimensão coletiva em jogo no discurso político e nas diversas formas de laço social com o que há de singular na demanda que chega ao consultório de um analista?

 

Helenice Saldanha de Castro
(EBP/AMP)

 

[1] LAURENT, É. “Paixões religiosas do falasser”. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 75/76. São Paulo: 2017, p. 39.

[2] MILLER, J.-A. “O inconsciente e o corpo falante”. Scilicet: O corpo falante: sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p. 26.


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O analista presente no espaço de um lapso?

Suponhamos (…) um analista que não tenha passado pela desapropriação do pensamento e que mantivesse com a teoria psicanalítica relações de proprietário, (…) de possuidor, comparáveis àquelas do avaro e seu cofrinho. Tal analista, em sua relação com a teoria, naturalmente, só pode ver o ganho da operação. (…) O que ele não vê é o que ele perde na operação. E, o que é que ele perde? (…) Perde a dimensão da topologia que existe nele, (…) a dimensão do lugar de enunciação, a dimensão da presença que nele pode responder presente, responder ao que ele enuncia[1].

 

O analista presente no espaço de um lapso? Essa frase que designa o tema do Eixo I do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano nos surgiu, primeiramente, como uma afirmação. Mas, no decorrer de nossas discussões percebemos que não era uma afirmação evidente, simples de se sustentar. Ela comporta um paradoxo que resolvemos explicitar, pontuando essa frase com uma interrogação. Esse paradoxo diz respeito ao lugar, ao modo de presença do analista quando se trata do inconsciente real, isto é, quando, em uma análise, o espaço de um lapso, como nos diz Lacan, já não tem nenhum impacto de sentido ou interpretação, único momento em que se pode ter certeza de se estar no inconsciente[2]. Trata-se de um espaço tênue que não suporta nenhuma amizade, nenhum laço, nenhuma transferência. Dizendo de outra maneira, estamos seguros de estarmos no inconsciente somente quando, paradoxalmente, não há conexão transferencial e, portanto, podemos nos perguntar: no espaço do inconsciente real, se a transferência está ausente, onde está o analista, como localizar sua presença? Ou, para retomarmos a citação de Lacan que serve de epígrafe a este texto, de que lugar um analista pode responder “presente”?

 

O inconsciente

No Seminário 11[3], Lacan nos apresenta o inconsciente tomado no registro do simbólico, como discurso do Outro, ou seja, o que se realiza apenas do lado de fora. Nesse contexto, quando Lacan diz que o conceito de inconsciente não pode ser separado da presença do analista, é porque, na dimensão do inconsciente simbólico, o analista ocupa o lugar do Outro como destinatário do discurso do analisante. No entanto, também nesse mesmo Seminário, podemos seguir Lacan em seu esforço para situar a presença do analista relacionada a um real que irrompe no âmbito do inconsciente simbólico. A presença do analista é, então, obstáculo à rememoração, meio pelo qual se interrompe a associação livre e a comunicação: presentificação do fechamento do inconsciente. Dessa perspectiva, vemos que a presença do analista é convocada no instante da tiquê, da falha que se repete no momento preciso do bom encontro. Trata-se do real como traumatismo, da repetição de algo inassimilável, inabsorvível pela cadeia significante, e que o analista é chamado a encarnar. Entretanto, se por um lado, podemos dizer que Lacan localiza nesse momento de seu ensino a incidência de um real que emerge nos movimentos de abertura e fechamento do inconsciente, por outro, podemos tomar como uma hipótese a ser discutida, que o impacto desse real, no que concerne à presença do analista, é amortecido pela existência do Outro como lugar do inconsciente. Assim, os impasses que essa formulação apresenta serão atravessados somente anos mais tarde quando Lacan, em seu último escrito[4], nomeia o inconsciente como real e o separa do inconsciente simbólico ou, como foi nomeado por Miller[5], do inconsciente transferencial. Por isso, não é sem razão que encontramos esse escrito como uma introdução a uma edição do Seminário 11, a edição inglesa.

Nesse texto, Lacan nos apresenta uma apreensão do ato de falar completamente distinta do que ele havia proposto até então: fala-se sozinho, para si mesmo, e não para o Outro. Essa formulação não deixa de evocar o Seminário 20: fala-se para gozar e não para se comunicar[6]. Surge, então, outra forma de apresentação do inconsciente na qual o dizer se fecha sobre si mesmo, tornando precária a transição ao Outro. Nesse registro, a fala passa a presentificar o inconsciente não como discurso do Outro, mas como satisfação do Um sozinho, “que não quer dizer nada a ninguém”[7]. Quanto à experiência analítica, isso conduz a um impasse relativo à transferência, colocando um problema com relação ao modo de presença do analista e suas possibilidades de intervenção, pois o analista, diferentemente do que propunha Lacan no Seminário 11, deixa de ser situado como fazendo parte do inconsciente, isto é, como destinatário do discurso do analisante. Assim, o problema não é mais situado entre o sujeito e o Outro, mas entre o falasser e seu próprio gozo. Não se trata mais de uma falha no simbólico, mas de um furo no real, ou seja, de um limite que recai sobre o gozo. Nesse contexto, se o analista pode ser considerado, ainda, como uma manifestação do inconsciente, é porque sua presença é passível de dar corpo ao inconsciente real, ao que está fora da transferência, ao que na fala do paciente se apresenta como obstáculo, ao que não chega a se satisfazer, ao que se equivoca: trata-se do inconsciente sem o Outro.

Nessa dimensão do inconsciente, não encontramos o apoio do discurso do Outro para significar o lapso. Como sublinha Lacan no Seminário 24, a relação com o Outro está rompida[8], trata-se da experiência de que o Outro não responde, é o que Lacan designa com a notação S(Ⱥ). Então, se existe uma resposta, uma presença, ela não vem do Outro. Como apreendê-la? Nesse mesmo Seminário, Lacan utiliza uma expressão curiosa para se referir à fala nesse espaço da ausência do Outro e da concomitante prevalência do gozo: ele nos diz que o “Um dialoga sozinho”[9]. Portanto, podemos pensar que, em seu cerne, a experiência analítica é um diálogo sem Outro, ou melhor dizendo, um diálogo com o Outro que não existe. “Existe o Um, mas não existe nada do Outro”[10].

No entanto, mesmo se considerarmos a provocação feita por Miller quando nos diz que em seu último escrito “Lacan começa a sonhar com uma análise sem analista”[11], não podemos descartar o fato de que a psicanálise continua sendo praticada aos pares. Por conseguinte, somos levados a atestar que, se a prática psicanalítica pode prescindir do Outro, ela não pode prescindir do analista, ou seja, nesse diálogo, é preciso um analista para presentificar o que existe de positivo, de inegável no que diz respeito ao gozo, mas também, o limite dessa existência, dessa satisfação, ou seja, o que faz furo. Podemos dizer, então, com Lacan[12], que, na dimensão do inconsciente real, a presença do analista é o que faz esse furo existir de verdade, existir como esse sens-blanc, que, no Seminário 24, aparece escrito de um modo que podemos traduzir como “sentido branco”, como “sem sentido”. Logo, diante da inexistência do Outro, a presença do analista não se apaga. Ela se torna, ao contrário, decisiva e, podemos ligá-la às condições pelas quais, segundo Lacan, um analista é digno de confiança[13], ou seja, ele é digno de confiança, na medida em que sustenta a barra da inexistência do Outro[14], desta forma, diz Lacan, “a barra é levada a um ponto de extrema incandescência”[15], transformando esse furo, essa inexistência, em uma incandescente presença. Portanto, é essa parte não simbolizada do gozo, que convoca a presença do analista, mas para torná-la presente será preciso dar-lhe vida, encarná-la, será preciso que o analista compareça com seu corpo, em carne e osso.

 

O corpo

Quando se trata do inconsciente real, somos confrontados com “um princípio de identidade totalmente distinto: o corpo”[16]. É o corpo que surge no lugar do Outro que não existe. Não o corpo do Outro, mas o corpo próprio como Outro, como estrangeiro e que vem dar consistência ao real de um gozo que está fora de qualquer significação. Como nos esclarece Miller,

 

trata-se de um corpo que se tem e não de um corpo que se é o que implica que tenhamos uma relação de estranheza com ele. Tudo que estava investido no Outro é aqui retomado sobre a função originária da relação com o próprio corpo como uma ideia de si mesmo e que Lacan situa com a velha palavra ego. Lacan sublinha cuidadosamente que a definição do que se é como ego não tem nada a ver com a definição do sujeito que passa pela representação significante. O ego se estabelece a partir da relação com um-corpo (un-corp)[17].

 

O ego, então, conjuga gozo e imagem. “Não há aí identificação, há pertencimento, propriedade”[18]. Assim, se o inconsciente simbólico é separado do corpo[19], o inconsciente real, ao contrário, pressupõe o corpo, convoca a presença do corpo vivo como encarnação do gozo. O Um do gozo só se sustenta com o corpo, é este que lhe dá consistência.

A partir daí, podemos entender por que Miller afirma que “o corpo é o que o ser humano tem que trazer para a análise”[20]. Essa afirmação serve para o analisante, mas também para o analista, conferindo à experiência analítica uma dimensão topológica, na qual o analista se faz presente para o analisante, ao “condensar um gozo fora do corpo para outro corpo diferente do seu”[21]. É desse lugar que, retornando à epígrafe de Lacan, um analista pode responder “presente”, responder ao que ele enuncia.

Constatamos, então, que certamente a presença do analista não se reduz à simples presença do corpo do analista, mas será que tal presença, a do analista, é possível de se realizar sem o corpo? É possível tocar o real sem o corpo? Essa questão tem sua importância renovada em nossos dias com os atendimentos online que se intensificaram durante a pandemia. O relatório do Comitê de Ação da Escola Una, redigido por Ana Lydia Santiago, ressalta esse problema nos seguintes termos: “sem a presença em carne e osso para perturbar o fascínio da boa forma, é possível tocar o arrebatamento do gozo[22]”?

Um aspecto dessa discussão nos pareceu relevante. Embora o corpo não se evapore, a consistência do corpo, como esclarece Lacan, é mental e não física. O que pode ser constatado no fato de que um esquizofrênico pode ter a experiência de um corpo despedaçado, mesmo que seu corpo esteja em perfeitas condições físicas. Sendo assim, por que o corpo em carne e osso seria fundamental, indispensável, para que uma análise aconteça? É que, para existir, o gozo precisa de um corpo vivo. A experiência analítica não é feita para os anjos, ou seja, para os que não têm um corpo, ela não é uma abstração, não se trata de simples jogos de palavras. O real em jogo em uma análise não é algo ao qual se chega por uma dedução lógica, uma análise implica um trajeto do corpo. Só existe uma maneira de fazer existir o furo: passando por ele, com o próprio corpo, ou seja, é preciso experimentá-lo.

Miller, durante a Grande Conversação, reconhece os efeitos terapêuticos e o bom uso que se pode fazer dos atendimentos online, quando os corpos estão impossibilitados de se deslocarem. Constata-se, segundo ele, certa modalidade de presença pela palavra e pela imagem, todavia, falta o real que necessita do corpo vivo. Sendo assim, a sustentação da presença do analista, do seu dizer, não está do lado da lógica articulada: para fazer frente ao silêncio do real, é preciso a presença perturbadora do corpo.

 

Uma presença que perturba a defesa

O percurso que fizemos até agora nos leva a afirmar que, quando abordamos a presença do analista a partir da perspectiva do inconsciente real, nos deparamos com o esforço de explorar outra dimensão da psicanálise, situável para além daquela que transcorre no âmbito do recalcado e de sua interpretação. Trata-se, conforme esclarece Miller, de “explorar a defesa contra o real sem lei e fora do sentido[23]”. Trata-se de perturbar a defesa contra o real, o que redefiniria o desejo do analista como “um desejo de alcançar o real, de reduzir o Outro ao seu real e liberá-lo do sentido”[24].

Mas o que quer dizer perturbar a defesa? Perturbar a defesa é diferente de interpretar a defesa. A interpretação conserva uma ligação com os efeitos de sentido e com os efeitos de verdade que não convém à defesa. A defesa, de acordo com Lacan[25] qualifica a relação inaugural do sujeito com o real. Desde Freud[26], a defesa é uma maneira eletiva de lidar com o quantum de energia, com o afeto que escapa à representação e se apresenta como um elemento incompatível com o eu. De acordo com Freud, trata-se de um ato voluntário. Em termos lacanianos, podemos dizer que o sujeito elege, por meio da defesa, uma forma de lidar com o real, com o gozo traumático que escapa à representação e que, portanto, não é incluído no eu.

Esse gozo incompatível, inconveniente, por não convir à relação sexual, é expulso do eu e resta isolado, sozinho, sem ligação, como um elemento estranho, isto é, um sintoma. Logo, defendemo-nos do real criando um sintoma. O sintoma é, portanto, essa disfunção, esse elemento estranho, que nos concerne, mas no qual não nos reconhecemos.

Aqui, o corpo está implicado no assunto, é o que leva Lacan, ao final de seu ensino, a definir o sintoma como um acontecimento de corpo. O sintoma está estreitamente relacionado ao fato de se ter um corpo. Portanto, se a interpretação tem a ver com o recalcado e recai sobre a representação, a defesa, por sua vez, tem a ver com o gozo e, perturbá-la significa, do lado do analista, que ele faça aparecer o real que esse gozo implica e, do lado do analisante, que este consinta com o nãotodo desse gozo, com o furo, com o não sentido que o sintoma comporta. O gozo não é, então, algo que pode ser interpretado, e, assim, para o analisante, “não existe meio de fazer de outro jeito do que receber de um psicanalista o que abala sua defesa”[27].

Mas, para que isso aconteça, é preciso mais do que palavras. É preciso que o analista opere com o próprio corpo como agente do trauma[28], fazendo de seu corpo um instrumento que perturbe a defesa, presentificando com o próprio corpo o gozo excluído. Só assim, através do corpo, a materialidade do gozo torna-se consistente ou “corps-sistant[29], como escreve Lacan, tornando possível ao falasser, por meio da experiência analítica, conhecer seu sintoma, relacionar-se com ele, tal como faz com sua imagem e, assim, poder manipulá-lo, e com ele se virar.

Na orientação lacaniana, encontramos algumas formas por meio das quais um analista se faz presente, perturbando a defesa: como “sinthoma[30], como “intruso”[31], como “uma ajuda contra”[32], ou ainda, respondendo do “lugar de mais ninguém”[33].

Aguardamos de vocês, na forma de recortes clínicos, as contribuições da prática da psicanálise lacaniana sobre como o analista se faz presente nas situações em que ele próprio se torna a manifestação do inconsciente, formulado como um limite à transferência. É a partir dessas contribuições que esperamos esclarecer, um pouco mais, essa paradoxal presença do analista no espaço de um lapso.

 

Cartel: Andrea Reis, Carla Serles, Cristina Maia, Glória Maron, Ludmilla Féres Faria, Nohemí Ibañez Brown, Niraldo de Oliveira Santos, Simone Souto (relatora), Sônia Vicente, Tânia Martins.

 

 

 

[1] LACAN, J. Le séminaire, livre XXIV: L’insu que sait de l’une-bévues’aile à mourre (1976-77). Lição de 8 de fevereiro de 1977. Inédito.

[2] _________ “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 567.

[3] _________ O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 119.

[4] _________ 2003, p. 567.

[5] MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2014, p. 13.

[6] LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 148.

[7] MILLER, J.-A. Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2012, p.106.

[8] LACAN, J. 1976-77, lição de 10 de maio de 1977.

[9] _______ ibid., lição de 11 de janeiro de 1977.

[10] __________. ibid., lição de 10 de maio de 1977.

[11] MILLER, J.-A. op. Cit., 2014, p. 92.

[12] LACAN, J. op. Cit., 1976-77, lição de 10 de maio de 1977.

[13] _________ ibid., lição de 18 de janeiro de 1977.

[14] _________ ibid., lição de 18 de janeiro de 1977.

[15] _________ ibid., lição de 08 de fevereiro de 1977.

[16] MILLER, J.-A. op. cit., 2014, p. 107.

[17] ____________ ibid., p. 108.

[18] ____________ ibid.

[19] ____________ ibid., p. 81.

[20] ____________ ibid., p. 108.

[21] LAURENT, É. O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2018, p. 65.

[22] SANTIAGO, A. L. Relatório do Comitê de Ação da Escola Una, 2022. Disponível AQUI

[23] MILLER, J.-A. “O real no século XXI”. Revista Opção Lacaniana, n° 63. São Paulo, 2012, p. 11-20.

[24] ____________ ibid., p. 17.

[25] LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 43.

[26] FREUD, S. “As neuropsicoses de defesa”. Obras completas, v. III. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1894/2006.

[27] LACAN, J. 1976-77, lição de 11 de janeiro de 1977.

[28] LAURENT, É. “A ordem simbólica no século XXI. Consequências para o tratamento”. Opção Lacaniana, n° 62. São Paulo, 2011, p. 88.

[29] LACAN, J. op. Cit., 1976-77, lição de 14 de dezembro de 1976.

[30] _________ O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 131.

[31] MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 41.

[32] LACAN, J. op. cit.,2007, p. 131.

[33] _________ “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: “Psicanálise e estrutura da personalidade”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 674.


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A interpretação: da escuta ao escrito

A escuta serve para tudo. Por exemplo, para constituir amálgamas entre terapias autoritárias centradas na reeducação dos comportamentos e a psicanálise, que se apoia no sujeito do inconsciente. A tentativa de substituição de uma pelas outras passa pela constituição de uma categoria confusa e inconsistente, a das práticas da escuta. Como se fosse o caso, sobretudo, de escutar a queixa dos sujeitos que pedem ajuda, ao passo que se trata de fazer disso alguma coisa.

O comportamentalista escuta, no que lhe é dito, o agenciamento de uma soma de comportamentos elementares que ele pretende, em seguida, reeducar. Ele responde ao que ouviu por meio de uma objetivação dos comportamentos e uma série de prescrições. A crença do comportamentalizado repousa na fé na reeducação.

O analista, em primeiro lugar presente como escuta, introduz, com seu silêncio, uma demanda de fala por parte do analisando. A resposta do analista jogará nesse registro da demanda para responder ao lado da demanda, a fim de poder fazer ouvir naquilo que é dito o que ultrapassa a intenção daquele que sustenta seu dizer. O analista assume a responsabilidade da escuta para fazer surgir a presença de um sentido diferente do senso comum, de uma parte do discurso que sempre escapa. A isso se acrescenta a crença do analisando de que o analista tem em seu poder o saber no lugar do objeto demandado. Qualquer demanda implica a escuta, o silêncio da escuta como lugar reservado ao que, naquilo que se diz, excede a intenção. Essa escuta silenciosa vem marcar o lugar do desejo que, no discurso, se ignora.

O lugar do desejo assim isolado também testemunha a fixação do gozo que está em jogo na queixa. A efração constituída pelo gozo na homeostase do corpo é o fundamento da repetição do Um: “Nos casos aos quais se tem acesso pela psicanálise, seu modo de entrada [o do gozo] é sempre pela efração. A efração, ou seja, não a dedução, a intenção ou a evolução, mas a ruptura, a disrupção em relação a uma ordem prévia, em relação à rotina do discurso pelo qual as significações se sustentam, ou em relação à rotina que se imagina do corpo animal”[1].

A escuta não tem, portanto, vocação para ficar paralisada em seu silêncio. Ela deve ajudar a manifestar a dimensão do desejo para além da intenção e de uma pulsão acéfala. Esta é a função da interpretação. O desejo não é a interpretação metalinguageira de uma pulsão prévia confusa. O desejo é sua interpretação. As duas coisas estão no mesmo nível. Uma outra proposição deve ser acrescentada: “os psicanalistas fazem parte do conceito de inconsciente, posto que constituem seu destinatário”[2]. O psicanalista só consegue acertar o alvo se ele estiver à altura da interpretação operada pelo inconsciente, já estruturado como uma linguagem. Ainda é preciso não reduzir essa linguagem à concepção que a linguística pode ter dela, de uma ligação entre o significante e o significado. É preciso dar todo o seu lugar à barra que separa as duas dimensões e permite a topologia da poética. A função poética revela que a linguagem não é significação, mas ressonância, e evidencia a matéria que, no som, excede o sentido.

 

Da interpretação tradução à interpretação corte

É no laço entre a interpretação tradução, que ainda joga com o sentido, e a interpretação corte, que joga com a matéria sonora equívoca, que se situa, no ensino de Lacan, a passagem entre a interpretação que dá sentido e seu avesso. Jacques-Alain Miller definiu essa problemática em um retumbante artigo opondo a interpretação tradução à interpretação assemântica, que remete apenas à opacidade do gozo. O lugar vazio não está mais “de reserva”, está em primeiro plano. “A questão não é saber se a sessão é longa ou curta, silenciosa ou falante. Ou a sessão é uma unidade semântica, aquela em que S2 vem pontuar a elaboração – delírio a serviço do Nome-do-Pai –, muitas sessões são assim, ou então a sessão analítica é uma unidade a-semântica, reconduzindo o sujeito à opacidade de seu gozo. Isso supõe que, antes de ser concluída, ela seja cortada”[3]. A polaridade fundamental não é mais entre o sentido e a verdade como furo, mas entre as duas faces do gozo: o que é um lugar vazio no discurso e o perfura, mas que se impõe em sua plenitude de opacidade.

Essa nova polaridade só é apreendida em seu pleno desenvolvimento rompendo com as ilusões não apenas da intersubjetividade, mas também do diálogo. Jacques-Alain Miller o ressalta em sua invenção do conceito de aparola (apparole), reconfigurando os avanços do último ensino de Lacan. “A aparola é um monólogo. O tema do monólogo obceca o Lacan dos anos 70 – o lembrete de que a fala é, sobretudo, monólogo. Proponho aqui a aparola como o conceito que corresponde ao que surge no Seminário Mais, ainda, quando Lacan interroga de maneira retórica: lalíngua, será que ela serve primeiro para o diálogo? Nada é menos certo”[4].

Enquanto a interpretação semântica queria fazer um relance, a interpretação que confronta o gozo visa, ao contrário, a um não-relance. “É preciso que haja um limite ao monólogo autista do gozo. E acho muito esclarecedor dizer que – A interpretação analítica faz limite. A interpretação [em geral], ao contrário, tem uma potencialidade infinita”[5]. A potencialidade infinita do discurso livre coloca como único limite ao gozo aquele do princípio do prazer. O limite da interpretação se propõe diferente. “Dizer qualquer coisa conduz sempre ao princípio do prazer, ao Lustprinzip […] Particularmente porque, ao colocarmos entre parênteses os interditos, as inibições, os preconceitos, etc., quando isso se põe verdadeiramente a girar nesse nível há uma satisfação da aparola”[6]. É também com isso que a escuta pode se encantar. Permanecemos, assim, no princípio do prazer, mesmo que ele seja comportamentalizado. Trata-se, portanto, de dar uma nova visada à interpretação. Em vez de recorrer ao princípio do prazer e suas possibilidades indefinidas, trata-se de introduzir como limite a modalidade do impossível. “Isso indica qual poderia ser o lugar da interpretação analítica, na medida em que ela interviria na contramão do princípio do prazer […] a interpretação analítica introduz o impossível”[7].

Ao introduzir essa modalidade que rompe com a associação livre da fala, ao estabelecer um certo isto não quer dizer nada, a interpretação que passa pela fala passa para o lado da escrita, única capaz de se encarregar do furo do sentido e do impossível. “A exemplo da formalização, a interpretação […] está mais do lado do escrito do que do lado da fala. De todo modo, ela deve ser feita desafiando o escrito, na medida em que a formalização supõe o escrito”[8].

A problemática da interpretação assemântica introduz uma dimensão híbrida entre o significante e a letra, ao passo que toda uma parte do ensino de Lacan os opõe. Ela dá conta do fato de que Lacan vem a opor a interpretação e a fala. “A interpretação analítica […] incide de uma forma que vai muito mais longe do que a fala. A fala é um objeto de elaboração para o analisando, mas há nela efeitos do que o analista diz – porque ele diz. Não é trivial formular que a transferência desempenha nisso um papel, mas isso não esclarece nada. Tratar-se-ia de explicar como a interpretação incide e que ela não implica necessariamente uma enunciação”[9].

 

A interpretação assemântica e o escrito

No primeiro ensino de Lacan, a interpretação tinha como efeito dar acesso aos capítulos apagados da minha história, ao que ali estava escrito. No segundo, Lacan se livra dessa referência à história para manter apenas a referência ao “estava escrito”. O efeito de suposto saber, sua generalização, deve ser mantido a partir do poder do “estava escrito”. Uma nova concepção de interpretação decorre disso: “A interpretação, cuja essência é o jogo de palavras homofônico, é o reenvio da fala à escrita, ou seja, o reenvio de cada enunciado presente em sua inscrição”[10].

A interpretação como homofonia é apreendida na generalização do equívoco, que supõe um reenvio ao está escrito. Ela convoca a relação muito complexa entre fala e escrita. No Seminário 23, Lacan desenvolve a escrita como apoio da fala, recusando-se a seguir Jacques Derrida em sua ideia de escrita como impressão, trama, traço. Ele constrói uma literalidade, uma relação com a instância da letra a partir da experiência. “Uma interpretação sempre quer dizer ‘você leu mal o que estava escrito’. Nesse sentido, a interpretação é uma retificação da leitura do suposto saber. A interpretação supõe que a própria fala seja uma leitura, que ela reconduza a fala ao ‘texto original’”[11].

Esse reenvio também pode ser formulado como um engancho para significantes no nó R.S.I. Eles vêm se apoiar nessa escrita. Fazemos jogar essa escrita como apoio, cada vez que fazemos o sujeito ouvir um equívoco que desfaz o afastamento entre a fala e a escrita. Não se trata mais apenas do S1 e do S2 , do apoio do S2  para dar sentido ao S1 . Trata-se também dessa escrita-apoio que valoriza os registros extremamente diversos do equívoco, que ampliam o campo das interpretações possíveis e o sentido de nossa ação. O dizer do analista não é mais S2  produtor de cadeias associativas. O nó borromeano obstaculiza isso produzindo outros tipos de cadeias. “O que formulamos com o nó borromeano já vai contra a imagem da concatenação. O discurso do qual se trata não faz uma cadeia […] A partir de então, a questão é saber se o efeito de sentido em seu real se deve ao emprego das palavras”[12]. O efeito de sentido real dispensa o imaginário da significação. “O efeito de sentido exigível do discurso analítico não é imaginário. Ele tampouco é simbólico. É preciso que ele seja real. Este ano, estou me ocupando em pensar qual pode ser o real de um efeito de sentido”[13]. Esse real notifica a nova visada do aperto do nó em torno do acontecimento de corpo e da inscrição que pode ser notada (a) em um uso renovado.

 

Ler com seus ouvidos

É o que nos propõe Lacan no terceiro capítulo de Mais, ainda. Este começa com uma série de paradoxos que, numa provocação barroca, visam a desfazer a ligação aparentemente evidente da leitura com o que se escreve. “A letra, lê-se, como uma carta. Parece mesmo feita no prolongamento da palavra. Lê-se, e literalmente. Mas não é justamente a mesma coisa ler uma letra ou bem ler. É evidente que, no discurso analítico, só se trata disto, do que se lê, e tomando como o que se lê para além do que vocês incitaram o sujeito a dizer”[14].

Lacan começa, então, questionando a evidência do laço entre a leitura e a letra e propõe uma concepção original de leitura. Ler um dizer, ou uma fala, “para além do que vocês incitaram o sujeito a dizer” pela regra fundamental, reformulada, simplificada, como “diga qualquer coisa”, mas diga! E essa leitura do dizer define o inconsciente, como o escreve Miller em seu intertítulo: o inconsciente é o que se lê.

Não basta que o significante e o significado sejam distinguidos. Há uma barra que os separa, e Lacan lhe dá um alcance radical. “O significado não tem a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve de significante”[15]. Lacan nos comunica sua reflexão sobre a barra como notação da negação, ou melhor, dos modos de negação no plural. Lacan ainda não tornou pública sua tabela da sexuação, que virá dois meses depois como sua “carta de almor (âmour)”. Ele anuncia o uso que fará da barra nos quantificadores. “A negação da existência […] não é de todo a mesma coisa que a negação da totalidade”[16] – é exatamente isso que ele usará como recurso diferenciado nas fórmulas da sexuação.

A barra, ele nos diz, não é para ser compreendida, mas para ser explicada a fim de interrogar um limite da linguística. Esta tem dificuldades em dar conta do efeito de sentido produzido pela incidência do significante sobre o significado. Este é um tema já abordado de forma diferente por Lacan em “Lituraterra”. A diz-mensão da letra, segundo Lacan, implica uma certa instância, uma certa insistência, um certo forçamento para se incluir na trama das significações. A instância, realçada no texto “A instância da letra”[17], designa, na letra, “aquilo que, a ter que insistir, só existe nela de pleno direito quando, por força da razão, isso se destaca”[18]. A referência à razão é, por certo, uma referência ao título do artigo de 1957: “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”.

Para ouvir o que Lacan chama de injeção do significante no significado, temos o exemplo de uma troca epistolar entre Ponge e Lacan, que data de um ano após a publicação de “Lituraterra”. Lacan retransmite uma pergunta de Jakobson a Ponge. “Existe algum exemplo de poesia em francês onde se denote uma insistência na violação do acordo gramatical, na disfunção do singular e do plural, do gênero, da posposição da ‘preposição’, etc.?”[19]. Ao transmitir a questão, Lacan a formula em termos, ele evoca a “insistência” da carta poética em infringir as regularidades sintáticas. Lacan não recua diante da agressão e da violência feitas à sintaxe pela letra ao falar de “insistência na violação”. O que interessa a Lacan é a escrita poética como ilha de efração, de irregularidade. A referência à obra do poeta americano de vanguarda E.E. Cummings põe em destaque essa vontade.

Em Mais, ainda, Lacan nos dá um exemplo do forçamento da letra na leitura do discurso atual operada pelo discurso psicanalítico. Trata-se da leitura da expressão “Não há relação sexual”. No discurso comum, o enunciado pode ser escrito como xRy, homem R mulher. Mas os termos significantes do uso comum não têm relação com a articulação desses significantes com as funções lógicas liberadas pelo discurso psicanalítico. No nível da relação sexual, no nível da questão fálica, a mulher que não existe só pode ser apreendida como mãe, no lugar da mãe. O que é uma leitura lógica do complexo de Édipo. Da mesma forma, a leitura lógica da relação mãe-filho transforma o que Freud situava do lado do ideal. A mãe torna-se suplência do não-toda sobre o qual “repousa o gozo da mulher”. O filho faz tampão dessa ausência, encarnando o (a) como letra que vem marcar o lugar da ausência. Quanto ao homem, ele é articulado ao que se nota como gozo fálico e tomado como todo nesse gozo.

 

A interpretação como forçamento poético

Se o significante é causa do gozo, devemos nos perguntar como esse gozo pode escapar do autoerotismo do corpo e ainda responder à jaculação interpretativa. “Logo, é necessário sustentar a questão de saber se a psicanálise não é um autismo a dois. Existe uma coisa que permite forçar esse autismo – é que lalíngua é uma tarefa comum”[20]. O gozo é autoerótico, mas a língua não é um assunto privado. Ela é comum. E Lacan explora os recursos do que pode permitir ao analista fazer ressoar outra coisa que não o sentido, algo que evoque o gozo na língua comum. Primeiro, há a poesia. “O forçamento é por onde um psicanalista pode fazer soar outra coisa que não o sentido. O sentido ressoa com o auxílio do significante. Mas, com o auxílio do que chamamos de escrita poética, vocês podem ter a dimensão daquilo que poderia ser a interpretação analítica”[21].

Levar em conta as diferentes diz-mansões no novo uso do significante possibilitado pela interpretação permite a Lacan romper com a concepção saussuriana do signo e da linguística que dela se deduz. “A linguística é uma ciência muito mal orientada. Ela não se sustenta senão à medida em que um Roman Jakobson aborda, francamente, as questões da poética. A metáfora, a metonímia, não têm capacidade para a interpretar, a não ser quando elas são capazes de exercer a função de outra coisa com a qual se unem estritamente o som e o sentido”[22].

O uso que o psicanalista faz da metáfora e da metonímia não tem, porém, a mesma visada que o poeta, que visa o efeito estético, libera um mais-de-gozar que lhe é próprio. O psicanalista, como no chiste, deve visar a ética, ou seja, o gozo. “É mesmo nisso que consiste o chiste. Consiste em se servir de uma palavra para outro uso que não aquele para o qual ela é feita; dobramo-la, um pouco, e é nessa dobradura que reside seu efeito operatório”[23]. A nova poética que Lacan traz à luz por meio da interpretação não está ligada ao belo, mas toca o gozo como o chiste, que desencadeia um mais-de-gozar particular. “Não temos nada a dizer do belo. Ele se ocupa de um equívoco ou, como diz Freud, de uma economia”[24].

Essa ressonância permite elevar o dizer à altura de um acontecimento, como o sintoma. “Observem que eu não disse a fala, eu disse o dizer, toda fala não é um dizer, sem o que toda fala seria um acontecimento, o que não é o caso, sem isso não se falaria de falas vãs. Um dizer é da ordem do acontecimento”[25].

 

Ler-se como uma andorinha

O terceiro capítulo do Seminário Mais, ainda termina com um belíssimo apólogo, que situa o ponto em que desemboca a leitura do inconsciente em uma psicanálise. A psicanálise não apenas ensina a ler, mas ensina a “se ler”, com o mesmo efeito reflexivo da pulsão[26]. A pulsão é acéfala. Ela consiste em se fazer ver, cagar, papar, ouvir. Quando atingimos esse ponto, essa ausência do eu (moi) onde se realiza um novo saber, Lacan sustenta que “estamos no registro do discurso analítico”[27]. Nesse discurso, não há mais oposição entre o leitor e o texto, os dois se interpenetram. Mais de mim (moi) para encarregar-me da leitura. Isso se lê.

O apólogo final retoma a exigência do início do capítulo: no discurso analítico, situar a função da escrita, mas deslocando-a. No início do capítulo, diz-se: “É bastante óbvio que, no discurso analítico, trata-se apenas daquilo, do que se lê, do que se lê além do que você incitou o sujeito a ser dito”[28]. E no final do capítulo, no apólogo, passamos da leitura para “se ler”. Lacan interroga não apenas o inconsciente, mas o sujeito do inconsciente, o laço que ele mantém com o Outro do discurso psicanalítico.

Este apólogo se apresenta como uma leitura do “grande livro do mundo”. Lacan vê nele o voo de uma abelha e o voo das andorinhas. A abelha vai de flor em flor, colhe o pólen. Um saber produz uma leitura dessa ação. A abelha transporta em suas patas o pólen de uma flor para outra. Ler o voo das abelhas é saber que elas servem à reprodução das plantas. Mas ela o sabe? Da mesma forma, no voo dos pássaros, pode-se ler que haverá tempestade. Lacan toma o exemplo do voo das andorinhas, animal pelo qual se interessa desde “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”[29]. Mas a pergunta nos é formulada: será que a andorinha lê a tempestade?

Lacan ainda não dispõe da categoria de falasser (parlêtre), mas ele desliza do sujeito do inconsciente para um modo do vivente que, ao contrário da andorinha, é um vivente suposto suposto saber ler. “E não é outra coisa, essa história do inconsciente, de vocês.”[30]. Lacan dá então uma bela e simples definição do percurso de uma análise: “vocês […] supõem que ele sabe ler, como supõem que ele pode aprender a ler”[31]. Então, vem o paradoxo final. “Só que, o que vocês o ensinam a ler, não tem, então, absolutamente nada a ver, em caso algum, com o que vocês possam escrever a respeito”[32].

O procedimento do passe permite dar conta da maneira como um sujeito se lê em uma análise e como ele aprendeu a ler. Em contrapartida, o que se pode escrever a respeito são letras que remetem às funções lógicas reveladas pela experiência da psicanálise. Os equívocos da língua que compõem o inconsciente não têm nenhuma relação com essas letras. De maneira radical, o sujeito do inconsciente é lógico e não psicológico. É uma lógica em que os jogos da escrita e da leitura se entrelaçam, assim como a poesia barroca podia se encantar pelos jogos da beira da praia com a onda. O litoral da letra e do gozo nos encanta com jogos da leitura e da escrita, para chegar ao ponto em que não mais precisemos da ferramenta da fantasia para “se ler”.

 

Éric Laurent

Psicanalista, AME, membro da EBP, ECF, ELP, EOL, NEL, NLS e AMP

 

Tradução: Vera Avellar Ribeiro

Revisão: Fernanda Otoni Brisset

N.E.: Texto publicado anteriormente em Correio, n. 87. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. Abril, 2022. Contamos com a amável autorização do autor para esta publicação.

[1] MILLER, J.-A. «L’Un est lettre». La Cause du désir, Paris, n. 107, p. 35, mar. 2021.

[2] LACAN, J. “Posição do inconsciente”. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 848.

[3] MILLER, J.-A. “L’interprétation à l’envers”. La Cause freudienne, Paris, n. 32, p. 13, jan. 1996.

[4] ____________ “O monólogo da aparola”. Opção Lacaniana online, nova série, São Paulo, ano 3, n. 9, nov. 2012.

[5] ____________ Ibid.

[6] ____________ Ibid.

[7] ____________ Ibid.

[8] ____________ Ibid.

[9] LACAN, J. O seminário, livro 22: R.S.I. Lição de 11 de fevereiro de 1975. Texto estabelecido por J.-A. Miller. Ornicar?, Paris, n. 4, p. 95-96.

[10] MILLER, J.-A. «Introduction à l’érotique du temps». La Cause freudienne, Paris, n. 56, p. 77, mar. 2004.

[11] __________ 2004, op. cit., p. 78.

[12] LACAN, J. O seminário, livro 22: R.S.I. Lição de 11 de fevereiro de 1975, p. 96.

[13] _________ Ibid.

[14] _________ O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008 (novo projeto). p. 32-33.

[15] __________ 2008, op. cit., p. 39.

[16] __________ Ibid.

[17] __________ “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. In: LACAN. Escritos, op. cit., p. 496-536.

[18] __________ “Lituraterra”. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 18.

[19] __________ “Carta a Francis Ponge, 11 de dezembro de 1972”. La Cause du désir, n. 106, p. 14, jun. 2020.

[20] _________ “Rumo a um significante novo”. Texto estabelecido por J.-A. Miller. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Ed. Eolia, n. 22, p. 9, ago. 1998.

[21] _________ Ibid., p. 10.

[22] _________ Ibid., p. 11.

[23] _________ Ibid., p. 13.

[24] _________ Ibid., p. 11.

[25] _________ O seminário, livro 21: Les non-dupes errent. Lição de 18 de dezembro de 1973. Inédito.

[26] _________ O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979.  

[27] _________ 2008, op. cit., p. 42.

[28] _________ Ibid.

[29] Cf. LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. (1953) In: LACAN, 1998, op. cit., p. 273.

[30] _________ 2008, op. cit., p. 43.

[31] _________ Ibid.

[32] _________ Ibid.


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Editorial – PUNCTUM 2

O Boletim Punctum número 2 chega até vocês fazendo furos, perturbando e provocando o trabalho de ler, reler, estudar um pequeno detalhe, uma passagem, uma articulação inédita, uma interrogação…

Éric Laurent em seu texto “A interpretação: da escuta ao escrito” nos leva da interpretação que joga com o sentido (interpretação tradução) à interpretação que joga com a matéria sonora equívoca (interpretação corte). O cartel que tem trabalhado em torno do tema do eixo 1 do Encontro, nos traz o modo de presença do analista na perspectiva do inconsciente real – presença passível de dar corpo ao inconsciente real. Este texto, que tem como relatora Simone Souto, já nos interroga em seu título “O analista presente no espaço de um lapso?”.

Mas, se o Boletim nos convoca ao trabalho, também nos traz referências às quais podemos recorrer. “Bibliografia e ressonâncias” com os textos dos colegas Cleyton Andrade e Helenice Saldanha de Castro. E para nos orientarmos, ainda mais, nestes preciosos detalhes que são colocados em cena temos os “Textos de orientação” que são apresentados por Andréa Reis Santos e que estão disponíveis em nosso site.

Nesta empreitada, podemos ainda nos servir da literatura. Assistam a entrevista com Patrick Gert Bange, doutor em ciência da literatura, que nos fala sobre o punctum na literatura e, em especial, em Madame Bovary.

Bom trabalho a todos com este Punctum.

 

Patricia Badari
Pela Coordenação da Comissão de Site e Boletim


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