É preciso avançar no campo social, no campo institucional e nos preparar para a mutação da forma da psicanálise. Sua verdade eterna, seu real trans-histórico não serão modificados por essa mutação. Ao contrário, eles serão salvos se apreendermos a lógica dos tempos modernos[1].

 

Tomo apoio em Coisas de fineza em psicanálise, já na primeira lição, para conversar com a citação de Miller, em Le neveu de Lacan, afirmando que a psicanálise é um acontecimento e não um fenômeno da civilização. Se é como acontecimento que ela instaura a cada vez, desde Freud, um novo regime de saber, é assim também que coloca no mundo um fazer sempre inédito. Como um modo de operar, que incide na clínica e fora dela, remando contra a maré do movimento do mundo – que em muitos momentos arrasta os psicanalistas –, a psicanálise insiste.

Como remar contra a maré e avançar no campo social ao mesmo tempo? Ao psicanalista cabe tomar posição para que uma análise seja possível, mas sua presença não se faz menos importante fora do espaço de uma análise, ainda que se faça apenas sob transferência, já que não há psicanalista fora dela. Pode-se recolher algo desses efeitos de presença no intenso trabalho que se articula em torno dos laboratórios do CIEN.

Judith Miller, na criação do Boletim Eletrônico do CIEN no Brasil, retoma a lição de Freud que situa a psicanálise em um lugar distinto de uma visão de mundo, uma Weltanshaung, “seja ela progressista ou humanista, baseada na ilusão de deter um saber que dá as soluções dos problemas”[2]. É na inter-disciplinaridade, com hífen, encarnando o signo da invenção, como propôs Philippe Lacadée à Judith Miller, que vem grafado o lugar vazio onde um saber singular pode vir a se alojar: “um laboratório opera uma modificação, uma mutação, uma perspectiva de subjetivação”[3].

Seguindo um pouco mais a citação, Miller afirma que avançar no campo social implica em “uma mutação da psicanálise em sua forma, sem modificar sua verdade eterna, seu real trans-histórico”. Se o CIEN é uma demonstração de que é remando contra a maré que se torna possível avançar no campo social, isso só se faz a partir da posição analisante, como aquela capaz de sustentar a presença do analista no mundo, aquela que se extrai do “real trans-histórico”. Mais uma vez, é no escrito que se aloja a marca do próprio acontecimento, fora de qualquer referência a contextos. Parece-me que é desde esta posição que podemos nos fazer ancoradouro para que acontecimento e sentido se enlacem, num imbricado atar e desatar, a partir do gozo, na remada de cada um.

 

Andréa Vilanova (EBP/AMP)

 

 

 

Posto que dar essa satisfação é a urgência que a análise preside, interroguemos como pode alguém se dedicar a satisfazer esses casos de urgência[4].

 

Nesse escrito de 1976, Lacan se coloca parceiro nos casos de urgência, na medida em que não os desconhece e fica a par da condição de urgência que se apresenta na experiência humana. Não por amor ao próximo, mas pelo lugar que um analista pode ocupar diante das urgências de satisfação, a ser levado em conta no tratamento.

Se nos anos 70 ele interrogava a posição do analista frente às urgências – o que o fez não tirar o corpo fora, levando-o, inclusive, a escrever – o que dizermos hoje se o nosso tempo é o de uma eclosão frenética onde a urgência dá o tom da demanda?

Que condições precisam ser manejadas para promover o acontecimento analista em condições tão pouco favoráveis, onde o tempo de compreender é suprimido diante da estupefação frente ao real do gozo opaco e sem lei?

“Persiste a questão do que pode levar alguém, sobretudo depois de uma análise, a se historisterizar ( hystoriser) de si mesmo”[5].

Nessa reunião entre história e histeria, autorizar-se de si mesmo – não sem os outros – e estabelecer-se enquanto analista após uma experiência que encontra o seu limite na satisfação que marca o fim da análise, desloca a questão. É com essa verdade mentirosa que se pode sustentar o “status de uma profissão recém – surgida”[6] promovendo, no espaço de um lapso, o inconsciente.

Os casos de urgência que sempre atrapalham o analista tornam-se, mais do que nunca, um desafio para a psicanálise do século XXI. No manejo de uma temporalidade que não é a da urgência, mas, a de um ato que estabelece pelo corte a reafirmação do analista como par. À maneira de um poema que se escreve e que nos possibilita dizer: analista, presente!

 

Cassandra Dias Farias (EBP/AMP)

 

[1] MILLER, J.-A. Le neveu de Lacan. Paris: Verdier, 2003, p. 124.

[2] MILLER, J. “Por que um Boletim Eletrônico do CIEN no Brasil?. Em: https://ciendigital.com.br/index.php/textos-de-referencia/

[3] Ibid

[4] LACAN, J. “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 569.

[5] Ibid. p. 568.

[6] Ibid.


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