A psicanálise presente no mundo!
EBP- 25/11/22
Agradeço às instâncias da EBP por terem me convidado para seu Encontro, cujo tema é de uma atualidade e acuidade clínica, teórica e política.
Agradeço também a Angelina Harari por ter tido a ideia de fazer a junção de minha intervenção com o lançamento de Lacan Redivivus em português, o que é uma notícia maravilhosa!
O ano de 2021 marcou uma importante escansão por ocasião do aniversário dos cento e vinte anos do nascimento de Lacan e dos quarenta anos de sua morte. A Organisation Archives Lacan, a publicação dos volumes Lacan Redivivus e Lacan Hispano realizaram um conceito novo de mídia elevado à altura da Escola Una. De fato, essas novas publicações foram propulsadas no coração da AMP. Elas se mostram, a posteriori, necessárias por inaugurarem novas maneiras de trabalhar no Campo freudiano, a fim de manter vivo e atual o ensino de Lacan. Tal é o desejo de J.-A. Miller, que presidiu ao nascimento desses dois volumes: « não somente expor e explorar o ensino de Lacan, mas também pôr a trabalho o seu ensino sobre outros temas, como o fazemos com o casos clínicos [1] ».
À distância de estudos acadêmicos que incidiriam sobre o ensino de Lacan, trata-se de produções com Lacan, nas quais nos servimos do ensino de Lacan e cujas ressonâncias contemporâneas são mostradas.
Havia uma urgência em marcar um aniversário, o dos 40 anos da morte de Lacan, celebrando o homem Lacan mais do que o psicanalista de renome internacional. Uma urgência de dizer quem era Lacan, o que ele era para aqueles que o frequentaram. E, desde o início, o que nos parecia evidente é que seria um aniversário sem nostalgia, sem pathos. Que faria passar ao público um Lacan íntimo. Íntimo, aqui, rima com a política da psicanálise. Porque Lacan redivivus quer dizer que nossa relação com Lacan não consiste em remoer o passado de um homem, ou um pensamento passado, mas em considerar um Lacan que olha o atual, um Lacan vivo que nos olha e nos desperta.
Com efeito, este volume se abre com o caderninho de sonhos de Lacan. Foi um momento muito intenso. No início, tivemos, por repetidas vezes, hesitações quanto à transcrição: já que o relato de um sonho não tem a coerência de um texto comum. Em seguida, porque, quando o descobrimos, nós nos perguntamos sobre ao que visaria uma tal publicação. Esses sonhos que são narrados por Lacan indicam não somente a maneira como ele estava na tarefa de analisá-los, mas também elementos da vida privada, em um momento de engajamento crucial, de escolhas amorosas, de dilemas amorosos. O homem de desejo, mas também o universo fantasmático que, em cada um, não é compartilhável, expõe-se aqui, sem impudor, por ser justamente essa parte sombria e insólita de gozo contida em cada um. Transcrevê-la, para si, é reconhecê-la como parte de si. A esse respeito, a dificuldade de decifração deve-se também, em parte, ao carácter íntimo desse escrito: ele não é, literalmente, para ser lido, razão pela qual certas palavras são cortadas, apresentam pontos de suspensão, são apenas esboçadas, como se codificadas apenas para si, ao passo que outras apresentam uma grafia que contrasta muito com os manuscritos teóricos de Lacan, muito mais fáceis de ler.
Qual a necessidade de tornar público um texto tão íntimo? Por certo, isso não é sem evocar o fato de que Freud deu a conhecer, divulgou ao público sua descoberta, avançou em seu século, comunicando a análise dos seus próprios sonhos, mas foi naquele tempo da invenção da psicanálise. Aqui, é muito diferente, trata-se de Lacan em análise, analisante e, portanto, ao decidir publicar este caderninho, JAM impulsiona o que é a prática da psicanálise no campo da opinião, no campo social: e o que está em jogo concerne, portanto, à difusão e à transmissão da psicanálise, uma prática que pode levar alguém a ir muito longe na abordagem de seu ser, desprendendo-se dos ideais, do belo, das significações recebidas.
O endereçamento é um ângulo fundamental da publicação, um endereçamento não reservado a especialistas.
É assim que as publicações, nossas Jornadas, nossos fóruns, todas as intervenções que levam ao público questões de ordem clínica podem ter uma incidência na civilização, no campo social.
Com Lacan, trata-se, portanto, de pensar as questões clínicas atuais, como o corpo, a sexuação, o imaginário para, a um só tempo, elucidar, esclarecer os novos sintomas ou os debates da sociedade, se quisermos manter a oferta da psicanálise estando à altura da época, a oferta de uma psicanálise que não esteja com os pés acima do chão. Os psicanalistas sabem até que ponto as formas assumidas pelos sofrimentos de hoje dependem dos discursos que dominam nossa civilização. E a presença dos psicanalistas no debate público pode ser qualificada de política, não para adotar posições partidárias, nem para entrar na política, mas, sim, a cada vez que uma questão de ordem clínica está em jogo ou então que as condições do exercício da psicanálise são ameaçadas. E eu sei que o próprio título do Encontro de vocês é uma evocação de um contexto político agudo, candente, em seu país.
E como qualificar o momento presente? Como caracterizar a subjetividade da época? Eu diria que é um momento em que cada um está voltado para o seu mais-de-gozar falso, cada um voltado para o objeto a ser adquirido no modelo do mercado, em outras palavras, um mundo onde o fazer e o ter prevaleceram sobre o ser. E onde o elemento qualificado como « humus », como diz Lacan, é ele mesmo considerado como equivalente a um objeto qualquer, produto de nossa indústria. É um modo de fazer sentir o espírito do tempo, que quer indivíduos autônomos, isolados, cortados do outro, do Outro. Cada um autodeterminado. Este imperativo de autodeterminação acaba de alcançar, pelo menos na na Europa, as margens da infância, já que se trata de considerar a criança como um cidadão de pleno direito: considero, de minha parte, que isso é um atentado à democracia.
Em um tal contexto, os sujeitos se veem amputados de uma parcela de interioridade, de uma espessura de ser, de onde se poderia enunciar a falta, o mal-estar, o equívoco, por meio dos quais podemos endereçar-nos ao outro, abertura possível para uma transferência possível. Isso é o que muda a distribuição das cartas na maneira como os sujeitos se apresentam à psicanálise.
Precisamos considerar esse dado do discurso moderno, pois ele se infiltra nos tratamentos. O discurso moderno recusa o sintoma e impele à adicção. Precisamos opor à agitação, ao acting, uma outra ação: o ato de fala que permitirá a abertura para uma outra cena, a da conformação de um sintoma com seu núcleo pulsional. Educar, dar o gosto do inconsciente, « comover o inconsciente », como diz Lacan a propósito de Joyce, ou então estreitar o gozo opaco sem passar pelo afeto, segundo a estrutura clínica concernida.
Hoje, no tempo da comunicação generalizada, a linguagem se reduz. O significante é reconduzido ao signo que se crê ler sobre o corpo, e se precipita, se cristaliza uma identificação, ao mesmo tempo em que se reduz o sujeito a seu corpo, a suas roupas, à sua cor de pele, ao seu sexo… Em matéria de sexuação, a tendência é impor uma identidade de gênero que fixe uma resposta antes mesmo que a questão seja desdobrada pelo sujeito, com o tempo lógico necessário para compreender, o tempo necessário para se acostumar com seu ser sexuado. O próprio corpo é reduzido à roupa e introduz-se um forçamento no sentido da identidade sexuada.
É em nome dessa redução do sujeito ao seu corpo que todos são reconduzidos, os racismos que se pretende combater. A psicanálise é uma via que explora um trajeto completamente diferente, onde, ao contrário, aproxima-se um pouco o real do sexo que jaz no coração de seu ser, não sem o imaginário. Nós o aproximamos, mas não sem o outro, pois, como dizia Lacan, « existir não é ser, é depender do outro ».
O mal-estar correlacionado ao sintoma já deu lugar, hoje, à rejeição ou à negação do inconsciente, à medida que o simbólico perde em potência. A utopia não é mais o recurso ao pai, mas a docilidade generalizada, muitas vezes docilidade à burocracia sanitária. Por essa razão, enfatizo voluntariamente este movimento a favor de uma psicanálise presente no mundo: « Em direção ao inconsciente »: em direção ao que JAM havia utilizado a propósito da adolescência: em direção à adolescência. Em direção a para visar a distância necessária, a fim de alojar o lugar do inconsciente: nem ser, nem não ser, mas o não realizado, justo à espera de existir.
Christiane Alberti
Tradução: Vera Avellar Ribeiro
[1] Miller J.-A., in Miller J.-A. & alii, « Conversation entre Buenos Aires et Paris autour de Lacan hispano », La Cause du désir, no 110, março de 2022, p. 13.
Bibliografia e ressonâncias
“’O inconsciente é a política’ provém do que liga e opõe ‘os homens’ – entre aspas – entre eles, ou seja, o inconsciente provém do laço (…) O inconsciente provém do laço social – introduzamos essa glosa – justamente porque a relação sexual não existe”[1].
Miller, em 2002, fez de improviso uma intervenção no seminário “Os psicanalistas na cidade”[2], em Milão, retomando dias depois em seu curso intitulando-a “Intuições Milanesas”. Retoma Lacan em “A lógica da fantasia”, quando afirma: “não digo a política é o inconsciente, mas simplesmente o inconsciente é a política”. Existe nessa afirmação algo incisivo, que não vale a pena amortecer[3]. Lacan não definiu a política, mas o inconsciente, em uma frase lampeira, trazendo em si um agalma.
No desdobramento da frase, Miller[4] chama atenção para a denegação pronunciada por Lacan, visto que ele diz: – “Eu não digo”, adentrando o “império da denegação”, no qual é possível dizer “tudo, dizendo que não diz”[5]. Para Miller, trata-se de uma dificuldade lacaniana de transformar sua proposição em uma tese, observando que se essa tese tivesse um pai, seria Freud, que remete a política ao inconsciente em textos célebres.
Enquanto na formulação lacaniana “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, a linguagem é definida por Saussure e Jakobson, a definição de política está ausente na tese “o inconsciente é a política”. Por isso, é necessário perguntar pela definição de política presente na frase[6].
A definição do inconsciente pela política tem raízes profundas no ensino de Lacan, “O inconsciente é a política” é um desdobramento de “O inconsciente é o discurso do Outro”. A relação com o Outro, intrínseca ao inconsciente, anima desde o início o ensino de Lacan. “O inconsciente é a política” radicaliza a definição do Witz, do chiste freudiano “como processo social que tem seu reconhecimento e sua satisfação no Outro”[7], que o momento de rir atesta. A formalização que Lacan faz do chiste freudiano, permite articular o sujeito do inconsciente a um Outro, “e qualificar o inconsciente como transindividual”, afirma Miller[8], demostrando que foi possível passar de “o inconsciente é transindividual” para “o inconsciente é político”.
Brousse[9] situa essa questão apontando que a dialética do desejo não é individual, portanto, “na perspectiva analítica a oposição individual/coletivo não é válida, e o desejo que o sujeito visa decifrar é sempre o desejo do Outro”, manobra que passa pelos desfiladeiros do significante.
O inconsciente provém do laço social. Miller[10] comenta que Lacan teria realizado um deslocamento da frase freudiana “a anatomia é o destino” para “o inconsciente é a política”. Lacan[11] explica que a ligação entre os homens e o que os opõe é motivado pela lógica da fantasia. Portanto, “o inconsciente é a política” decorre do que liga e opõe os homens entre eles, ou seja, do laço social, concepção que Lacan matemizará com os discursos.
Contudo, há no ensino de Lacan um ponto de virada, ou de avanço: “o inconsciente provém do laço social justamente porque a relação sexual não existe”, esclarece Miller[12]. Após teorizar que o inconsciente se produz na relação do sujeito com o Outro, Lacan demonstra que o inconsciente se produz na relação com o Outro sexo, encontrando precisamente nesse caminho a ausência da relação sexual e a interposição do objeto a.
Laurent em seu texto “’O Inconsciente é a política’, hoje”[13], adverte que algo ainda mais consistente em relação à nossa atualidade surge quando Lacan, nas lições de maio de 1967, afirma que “o Outro é o corpo”. Assim, ensina que o corpo é feito para inscrever a marca, “o corpo é feito para ser marcado”, o gesto de amor “é sempre, um pouco mais ou menos esse gesto”, o de marcar o corpo[14].
O estatuto do corpo como Outro encontra seu pleno desenvolvimento no ultimíssimo ensino de Lacan. Miller extrai desse estatuto consequências de formação, sinalizando uma orientação, a do desejo de Lacan de substituir o termo inconsciente por falasser. A abordagem do falasser permite, então, reler a formulação “O inconsciente é a política”, na dimensão da inscrição no corpo, a partir do acontecimento de corpo[15].
É preciso demarcar que o acontecimento de corpo não afeta o corpo somente como organismo de um indivíduo, mas o corpo de linguagem. “O corpo falante vem sempre se opor ao corpo do indivíduo. Ele fala e testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever no corpo”[16]. Corpo, portanto, mobilizado também nas relações estabelecidas na biopolitica do Estado.
A definição “o inconsciente é a política” inscreve o inconsciente na cidade, não homogênea, com crateras de gozo. O Inconsciente passa a depender da história, crava-se aí as marcas do tempo e, sobretudo, “da discórdia do discurso universal a cada momento da série que nela se cumpre”[17].
“O inconsciente não conhece o tempo, mas a psicanálise sim”[18]. Lacan teve o papel de atualizar Freud, mas, sobretudo, de preparar a psicanálise para os tempos do império do gozo. Miller[19] afirma que “a psicanálise está na política”, ou mesmo faz dessa afirmação uma convocação, a cada momento que eclodem situações de guerra contra a psicanálise. O analista e a presença de um desejo de obter a diferença absoluta, implica na política da psicanálise frente a respostas totalitárias que impedem o falasser de existir em radical singularidade, de se analisar, de dispor de ferramentas e leituras sobre acontecimentos políticos que forjam situações para banir os corpos, matar, silenciar, violentar.
Cristiane Barreto (EBP/AMP)
“O que quer dizer “dizer”? “Dizer” tem algo a ver com o tempo. A ausência de tempo é algo que se sonha, é o que se chama de eternidade, e esse sonho consiste em imaginar que se desperta”[20].
A torção feita por Lacan entre os fios do dizer e do tempo me levou ao tema da urgência subjetiva. Na urgência, a qualidade desse enlaçamento entre dizer e tempo é, a meu ver, mais sensível e daí podemos extrair alguma leitura sobre a presença do analista.
Partamos de uma premissa: a urgência subjetiva é uma urgência no dizer. O subjetivo da urgência é o do efeito sujeito que se produz quando, ao falar para alguém sob transferência, algo além do que é dito também acontece e pode ser lido.
O sujeito da urgência é, portanto, produto de um dizer que se faz presente na experiência de remeter sua fala ao praticante. A ruptura da cadeia significante que produz um corte no tempo, tal como definida por Ricardo Seldes[21], é ruptura que se lê em um dizer e isto não vai sem um certo abalo na experiência do próprio corpo.
A urgência no dizer acontece quando quem fala experimenta a própria palavra de uma maneira que o surpreende ou perturba ou mesmo que gera estranheza. Poderia dizer: é quando ao falar, encontro com um certo desamparo com as próprias palavras.
Por vezes isso é tão sutil quanto uma pausa, uma escanção e nem sempre virá recoberta por um sentido. Por vezes, estes pontos sutis, constituem as oportunidades para o praticante fazer presença, isto é, presentificando com um ato que ali há algo que ressoa um real. Não seria essa uma perspectiva para conjecturar sobre a presença do analista? A presença do analista como presença do dizer.
Estamos falando de uma presença como índice de que ali, onde a urgência indica uma mínima falência dos suportes simbólicos e imaginários do Outro, há uma resposta possível pela via de um novo arranjo com o real que não se fará sem a passagem pelo analista como caixa de ressonância.
Ao fim, me parece que a urgência levada à dignidade do dizer sob transferência, se não tem efeito de despertar como diz Lacan na citação, ao menos é uma chance de fazer ressoar algo que não seja o eterno desejo de dormir.
Luiz Felipe Monteiro (EBP/AMP)
[1] MILLER, J. – A. “Intuições Milanesas II”. Opção Lacaniana online nova série Ano 2, número 6, novembro 2011.
[2] Em uma conferência em Milão, por ocasião da Fundação da Escola Lacaniana do Campo Freudiano da Itália.
[3] MILLER, J-A. “Intuições Milanesas”. In: Opção Lacaniana online, nova série, ano 2, no 5, jul. 2011. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intuições_milanesas.pdf. Acesso em: fev. 2022.
[4] Ibid. p. 3.
[5] Ibid.
[6] Ibid.
[7] Ibid. p. 6.
[8] Ibid. p. 7.
[9] BROUSSE, M-H. O Inconsciente é a política. Escola Brasileira de Psicanálise. São Paulo, 2003. P. 17.
[10] MILLER, J. – A. “Intuições Milanesas II”. Op. Cit. P. 4.
[11] Ibid. (apud).
[12] MILLER, J-A. “Intuições Milanesas II”. In: Opção Lacaniana online nova série, ano 2, no 6, nov. 2011. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_6/Intuicoes_Milanesas_II.pdf . Acesso em: fev. 2022. P. 5.
[13] LAURENT, É. “O Inconsciente é a política, hoje”. In: Correio Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, no 79. São Paulo: set. 2016. P. 87.
[14] Ibid.
[15] Ibid.
[16] LAURENT, É. “O Inconsciente é a política, hoje”. In: Correio Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, no 79. São Paulo: set. 2016. P. 89.
[17] MILLER, J-A. “Intuições Milanesas”. Op. Cit. P. 7.
[18] MILLER, J-A. “Enguia”. In: Correio Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, no 79. São Paulo: set. 2016. P. 19.
[19] MILLER, J-A. “Intuições Milanesas”. Op. Cit. P. 3.
[20] LACAN, J. Seminário 25, momento de concluir. Aula de 15/11/1977. Inédito
[21] SELDES, R. La urgência dicha. Buenos Aires: Colección Diva, 2019.
Voz e moldura
A presença do analista como uma presença pressentida me pareceu uma frase muito interessante, pois não se trata de uma presença pressentida no sentido comum do termo, de uma presença sentida como antecipação, algo que se pressente, um pressentimento, mas uma presença um pouco mais sutil; uma presença que se faz presente, se pressente, está aí, não só no silêncio, mas também pelo dizer que se insinua. Inclusive pelo ritmo e intensidade, são interessantes estas duas figuras. Essa seria uma forma de pensar a presença que traz uma nuance ao que se tinha colocado como da ordem do que irrompe.
Vejamos um fragmento de caso que ensina sobre certa presença do som e da voz.
Trata-se de uma criança muito pequena, com sérias dificuldades de laço, e nas sessões tudo acontecia em silêncio, ela nem percebia minha presença. O silêncio não marcava minha presença; em algumas ocasiões, eu dizia frases tentando nomear o que ela fazia para introduzir a palavra, mas ela não se interessava pelo que eu dizia, ela só se interessou pelos sons que eu emitia em algum momento como: “uhum”, “ok”, “Uhum, “Ahh”, que eram um pouco entre frases. Foi por esta via que o laço se fez possível com esta criança; ela os recortava e repetia depois fazendo variações, brincando com eles.
O tratamento com esta criança foi longo e teve vários momentos, mas este ponto me pareceu muito interessante e até hoje fica como um caso que me ensinou sobre algo da ordem da voz que não é fala, sentido, significação.
Então podemos pensar a voz como um objeto áfono que do dizer pode fazer falar. Colocar a voz como núcleo do que do dizer faz fala é isolar a voz como um objeto, como um resto. Como diz Lacan no Seminário 16, “do calar-se isola-se a voz, núcleo do que do dizer faz a fala”[ii]. Nesta frase, coloca-se a voz como o núcleo do que do dizer faz falar, mas para localizá-la como núcleo é necessário isolá-la.
Nesse sentido, a presença do analista está no calar-se. Não há descontinuidade entre o que se vê e não se vê. No plano sonoro, fica mais complicado o entre o que se ouve e não se ouve.
A criança vai construindo sua moldura nos jogos que faz. Quando ela recorta a voz e a repete, vai fazendo uma moldura. O importante da moldura é que ela se oferece como configuração imaginária que, de certa forma, prevê ou faz barreira à irrupção do real. É o que estamos chamando de objeto, de unheimliche e, no final das contas, da função ou do efeito do analista como ruptura da moldura. Quando falei, da outra vez, da ironia surrealista, se tratava exatamente disso: nada indica que exista alguma coisa por trás do quadro de Magritte. Pode ser mentira, não tem árvore nenhuma, não tem quintal nenhum, não tem nada. O que tem é um quadro pintado, mas você nunca vai saber.
Não podemos pensar se a moldura sonora não seria a reverberação que essa criança faz quando ela recorta? É uma moldura sonora em que ela brinca com esses sons. Essa reverberação tem a função de moldura, de dizer que não há voz do analista e sim o recorte que ela faz e o jogo que ela faz de reverberação.
Colagens
Por um lado, extrair essa voz em sua estranheza, mas para fazer dela trabalho. É ali que fica a questão com a presença do analista: nesta dimensão pressentida de ritmo e intensidade que permita circunscrever esta estranheza.
Isso não estaria na linha do que Lacan coloca no Seminário 16 como “a captura do próprio analista na exploração do objeto a é exatamente o que constitui o ininterpretável. O ininterpretável na análise é a presença do analista”?[iii]
Parece interessante essa colocação por fazer pensar numa presença que se insinua enquanto sustenta o ininterpretável.
Esse ponto de ininterpretável remete ao ato do analista. Como se produz o “entre” que abre a voz à sua dimensão de estranheza? O silêncio neste fundo de continuidade pode ser uma via, mas o importante é a ideia de uma presença pressentida. A presença entre o audível e o inaudível, que não é exatamente uma voz ouvida ou dita, mas pressentida. Do dizer com isso que se insinua nos restos dos dizeres abandonados e no ruído do que se diz. Se separar da presença vocal do outro dos restos dos dizeres que marcaram uma vida.
Diante da pergunta: o que se faz com o que sobra da voz numa análise? Colagens de dizeres ou gambiarras? Colagem e gambiarra seriam da mesma ordem? Colagem vem de colar, da ideia de composição, é um termo que nas artes plásticas dá a ideia de composição elaborada a partir de texturas variadas ou não, superpostas ou não. David Delruelle, artista plástico belga que faz trabalhos muito interessantes, é bem posterior ao surrealismo, mas segue a ideia de colagens. É um artista que anda nas ruas, mercados, livrarias de segunda mão, à procura de livros e revistas antigos para montar suas colagens. Vale a pena vê-las, pois, apesar de terem elementos discordantes, têm uma certa coerência, o humor, às vezes ironia inclusive nos títulos. Dão uma ideia de que colagem não é só colar arbitrariamente, mas compor não sem algo da ordem do humor, o que faz destes restos outra coisa. A gambiarra não remeteria mais ao valor de uso, daí a pertinência em diferenciá-las?
[i] Trechos da minha participação no segundo encontro do Seminário Clínico da EBP-RJ (2019) sobre a presença do analista, coordenado por Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros.
[ii] Lacan, J. Seminário, livro 16: Do Outro ao outro, cap. “Paradoxos do Ato Analítico”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2008, p. 338.
[iii] Idem.
Consentir com a interpretação
Intitulei minha intervenção de hoje, sobre a interpretação em psicanálise, de “Consentir com a interpretação”[1]. De fato, proporei que a interpretação em psicanálise só é possível, aceitável, se houver um consentimento do sujeito com a interpretação. Esse consentimento supõe uma forma de despojamento de si, sob o efeito da transferência. O consentimento com a interpretação é, no fundo, o consentimento em soltar as amarras da fala e em ser ouvido para além daquilo que digo.
Deixar-se interpretar
Ora, consentir com a interpretação não é evidente, mesmo quando há o encontro com um analista. Um sujeito que vem testemunhar um sofrimento, um traumatismo psíquico e sexual, está necessariamente pronto para se deixar interpretar?
Como analista, pode-se fazer a experiência desse momento do começo da análise em que um sujeito consente em se deixar interpretar, ou melhor, em recolher uma resposta que interpreta suas falas deslocando, fazendo ressoar, interrompendo, enfatizando, repetindo. A interpretação que pode simplesmente tomar a forma de uma citação das formulações do analisante, como disse Lacan no Seminário 17, remete aquele que fala à sua própria fala, constituindo-a como um enigma. “À sua maneira, a citação é também um meio-dizer”[2]. Lacan articula, assim, enigma e enunciação: “A interpretação […] é com frequência estabelecida por um enigma. Enigma colhido, tanto quanto possível, na trama do discurso do psicanalisante”[3]. Citar as formulações do analisante é também passar do discurso do mestre ao discurso do analista. “Se a palavra é tão livremente dada ao psicanalisante […] é porque se reconhece que ele pode falar como um mestre”[4]. Em suma, a citação pode remeter ao analisante um enigma no nível de sua enunciação, ali onde seu enunciado o fazia falar como um mestre.
O consentimento com a interpretação, como entrada na experiência analítica, é um consentimento com o não-saber. Mas isso supõe que esse não-saber, esse ponto de interrogação, não seja percebido como um requestionamento da verdade do sofrimento. Este é o ponto delicado hoje, me parece, em relação à interpretação da vida sexual. A experiência da análise engendra essa possibilidade de interpretar o que acontece com o sujeito do ponto de vista de seu desejo e de seu gozo. Lacan também o diz assim: a experiência analítica remete a fala à “contundência da enunciação do oráculo”[5] e, nesse sentido, “a interpretação desencadeia a verdade”[6]. Ora, esse desencadeamento da verdade também pode produzir uma angústia, e até mesmo um pânico.
O analista do século XXI deve, portanto, proceder com uma grande prudência antes de desencadear a verdade. É uma questão de tato, mas também de temporalidade. Interpretar uma experiência traumática pode ser recebido pelo sujeito como um requestionamento da verdade dessa experiência, até mesmo como uma culpabilização. Não interpretar rápido demais, medir os efeitos de uma intervenção, dar tempo ao sujeito de fazer-se ao ser, como dizia Lacan, ao ser que ele é e não o fazer ver cedo demais ou rápido demais são, portanto, dimensões fundamentais da interpretação, uma vez que ela não se situa apenas no nível da lógica dos significantes.
Rejeição contemporânea da interpretação
Gostaria de retornar à dificuldade que encontramos, em nossa época, no que diz respeito à prática da interpretação. O sinal dos tempos, em matéria de discurso sobre sexo, é bastante hostil à interpretação. Tudo se passa como se a interpretação pudesse ser recebida como uma recusa em reconhecer o real do sofrimento. Tudo se passa como se o sofrimento psíquico também não devesse conter, em si mesmo, algum sentido, ou seja, uma relação com o desejo. A ideia lacaniana segundo a qual isso fala, ali onde menos o esperávamos, ali onde isso sofre, não está em conformidade com os discursos dominantes sobre o sofrimento em relação à vida sexual, pois esta tese supõe que o sofrimento possa ser decifrado. Esta tese supõe também que um sentido próprio possa remeter a um sentido figurado. Pareceria que, em muitos discursos do nosso tempo, não haveria mais lugar para o sentido figurado e que só há legitimidade reconhecida no sentido próprio. Em suma, pareceria ser preciso acreditar em um possível domínio da linguagem, como se houvesse, hoje, uma verdadeira recusa da transcendência da linguagem. “O que o inconsciente demonstra é […] que a fala é obscurantista”[7]. Ou seja, esse obscurantismo implica ser experimentado como uma possibilidade de ouvir diferentemente o que eu acreditava dizer, a partir de uma intenção que julguei clara. Isso implica consentir com esse deslocamento, segundo o qual minha própria fala me conduz a me encontrar ali onde eu não sabia que estava. A postura contemporânea que nega à fala esse núcleo de obscuridade é também uma postura que acredita na transparência possível de si mesmo. Essa postura solapa a psicanálise, porque ela tem a ver com uma rejeição do inconsciente.
Em matéria de sexo, de identificações sexuadas, o destino é comumente abordado apenas como destino anatômico e muito pouco como destino psíquico. A ideia lacaniana segundo a qual o sintoma é uma questão que o ser formula “lá de onde ele estava antes que o sujeito viesse ao mundo”[8] é herética em nossa época. A ideia segundo a qual nascemos mal-entendidos, pois nascidos de um mal-entendido entre dois seres, e a ideia de que fomos falados antes de sermos falantes, muito simplesmente em virtude da maneira como aquelas e aqueles que quiseram que nascêssemos falaram de nós, essa ideia é como que recusada. A abordagem do corpo, tal como Lacan a preconiza, supõe levar em conta os efeitos da fala sobre o corpo. “Sejamos radicais aqui: seu corpo é o fruto de uma linhagem da qual uma boa parte de seus infortúnios se deve ao fato de ela já estar nadando no mal-entendido tanto quanto podia”[9]. É essa dimensão estrutural do mal-entendido e da relação com a linhagem de onde venho que, no fundo, faz ressoar toda interpretação. Você fala de um lugar que você não conhece, suas palavras dizem a maneira como você tramou alguma coisa como um destino a partir dos acasos, dos encontros que o impeliram aqui e ali. Consentir com a interpretação é, portanto, a um só tempo, consentir com o obscurantismo da linguagem e com a inscrição em uma linhagem que começou muito antes de eu nascer.
Ora, a maneira como os Modernos, para falar como Éric Marty, abordam as questões da sexualidade deixa pouco espaço para essas duas dimensões. Como ele afirma: “não queremos mais interpretação”[10]. Em suma, não se quer mais causalidade psíquica. Por isso mesmo, não se quer mais um destino significante, nem um destino de gozo. Não se quer mais esta “primazia do significante em relação às significações de nosso destino mais pesadas de carregar”[11].
Assim, no fundo, o efeito da interpretação é, de fato, este: ele leva a perceber que as significações mais pesadas de nosso destino a serem carregadas têm a ver com a dominância do significante sobre nossa existência psíquica.
O documentário Petite fille, de Sébastien Lifshitz, que despertou o interesse dos psicanalistas e foi objeto de uma análise por nossa colega Hélène Bonnaud[12], testemunha também, através do sucesso encontrado por ele, a adesão de uma parte do público a essa abordagem puramente identitária da vida sexual, recusando a dimensão da relação com a história, com a fala e com a linguagem.
O que me impressionou nesse documentário foi a recusa da dimensão da causalidade psíquica. O médico que atende a mãe de Sasha – a mãe desta criança que nasceu menino, mas se sentindo menina – lhe pede, durante a entrevista com esta, para ela lhe falar sobre essa criança. A mãe traz um elemento decisivo, do ponto de vista de uma perspectiva analítica, considerando o desejo do Outro como o lugar a partir do qual um ser vem a se reconhecer. A mãe diz que desejava uma menina, mas que teve um menino. A resposta do médico é categórica: então, não sabemos de onde vem a disforia de gênero, mas temos certeza de que isso não tem nada a ver com o fato de você ter desejado uma menina. Em suma, não conhecemos a causa desse sintoma, mas o que sabemos é que ele não tem nada a ver com o desejo dos pais. Portanto, nenhuma interpretação.
Herdeiro de um mal-entendido
Em suma, trata-se do fato de que a fala da criança testemunha uma realidade que afeta seu corpo, sem que essa realidade conduza a qualquer interpretação, sem que essa realidade seja articulada a um destino, no sentido lacaniano do termo, ou a uma história e, portanto, a uma simbolização do vivido. Trata-se de deter-se ao vivido como um fato. A distinção elaborada por Lacan entre o vivido e o destino[13] é claramente feita para dar conta do que separa o regime da interpretação, notadamente com sua dimensão simbólica, do regime do reconhecimento de um transtorno como o da disforia de gênero. Assim, E. Marty observa que, hoje, no discurso dos estudos de gênero, não se quer mais que os fenômenos que afetam o corpo tenham um sentido. Há apenas o social. O indivíduo sofre com as normas de gênero que não lhe permitem aceder à verdade daquilo que ele é. Apenas a causalidade social é invocada.
Lembro-me de um paciente extremamente perseguido encontrado em uma instituição, que havia enunciado sua posição em relação à linguagem, por ocasião da primeira entrevista, de uma forma que não poderia ter sido mais clara, em tom de injunção: “Não quero que se diga que o que eu digo significa outra coisa que não o que eu quis dizer!” Respondi que ele foi muito claro no que acabara de dizer e que ele tinha toda razão de dizê-lo assim. “O que eu digo não quer dizer nada além do que eu digo” é uma maneira de afirmar que não há nenhum “querer dizer” que me escape. Eu sou o mestre da linguagem, me dizia ele, de algum modo.
Poder-se-ia dizer que há, hoje, nos discursos dominantes sobre o sexo e o gênero, alguma coisa como uma recusa da interpretação, como se esta fosse uma recusa do sofrimento do sujeito, como se ela fosse, talvez, até mesmo uma ameaça para o sujeito. Poder-se-ia quase falar de uma sensitividade à interpretação.
Em O sexo dos Modernos, E. Marty ressalta, a propósito dos trabalhos de Judith Butler, um clima de dessubjetivação[14] do acontecimento da sexualidade. Não se quer que a sexualidade seja da ordem de um acontecimento subjetivo. Quer-se que o corpo seja, de algum modo, disjunto da história do sujeito. É. Marty assim respondeu a Jacques-Alain Miller na entrevista que tiveram juntos, em 2021, para Lacan Quotidien[15]. O íntimo estaria fora do sujeito no corpus butleriano:
“Estamos em um espaço de pensamento que considera obsoleta qualquer referência ao sujeito, à subjetividade”[16], um espaço de “uma pós-soberania do sujeito”[17]. Foi também sobre essas questões que trabalhamos com Fabian Fajnwaks em 2014, durante nosso seminário na ECF sobre “Subversão lacaniana das teorias de gênero”, seminário que resultou em uma publicação[18]. Havíamos mensurado essa antinomia entre a abordagem butleriana da vida sexual, que a reduz ao encontro com as normas sociais, causa de sofrimento, e a abordagem lacaniana que faz da sexualidade e também da feminilidade o confronto com um fora-da-norma.
Para Lacan, “o ser se mede pela falta própria à norma. Existem normas sociais por falta de qualquer norma sexual”[19]. Se a vida sexual faz acontecimento para o sujeito, é na medida em que ela não responde mais a nenhuma norma. A psicanálise, ao contrário do discurso crítico que pode ser desdobrado em relação a ela a partir dos estudos de gênero, não visa a adaptar o sujeito às normas da sociedade, mas a lidar com essa ausência de normas sexuais. A psicanálise abre, então, um espaço para a dimensão traumática da vida sexual sem reduzi-la a uma anormalidade, a um discurso sobre normas ou a um problema comportamental. Ela começa com a interpretação dos vestígios do trauma, ou seja, com a questão da causalidade. De onde vem o sofrimento? Qual a causa do mal-estar que o sujeito experimenta em seu corpo e em sua existência?
Como Jacques Borie o enuncia: “Dizer que o sujeito tem que responder por isso é uma maneira de formular como convém a ética da psicanálise, a ética como responsabilidade de um dizer por vir”[20]. O fim da análise coincide, em parte, com este momento em que o sujeito pode cingir em que medida seu sintoma testemunha esse mal-entendido herdado por ele, essa tagarelice de seus antecedentes[21] que fez destino.
Clotilde Leguil
Tradução: Vera Avellar Ribeiro
[1] Conferência de 12 de fevereiro de 2022, Seção clínica de Clermont-Ferrand.
[2] Lacan J., O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 35.
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[5] Lacan J., O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante, texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 13.
[6] Ibid.
[7] Lacan J., “Dissolution”. Aux confins du Séminaire, texto estabelecido por Jacques-Alain Miller, Paris, Navarin éditeur, coll. La Divina, 2021, p. 67.
[8] Lacan J., “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 524.
[9] Lacan J., “Dissolution”. Aux confins du Séminaire., Op. cit., p. 74.
[10] Marty É., “Genre”, ABCpenser, https://abcpenser.com/
[11] Lacan J., “A psicanálise e seu ensino”. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 448.
[12] Cf. La chronique d’Hélène Bonnaud, « Sasha, une petite fille comme les autres ? ». Lacan Quotidien, n° 903.
[13] Cf. Lacan J., O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 57-72.
[14] Marty É., Le sexe des Modernes. Pensée du neutre et théorie du genre. Paris: Seuil, 2021, p. 489.
[15] Cf. “Entrevista sobre O sexo dos Modernos”. Correio-espress, extra, nº 18, 14 de abril de 2021.
[16] Ibid.
[17] Ibid.
[18] Fajnwaks, F. e Leguil, C., Subversion lacanienne des théories du genre. Éditions Michèle, 2015.
[19] Lacan J., Revue Le Coq-Héron, nº 46-47, 1974, p. 3-8.
[20] Borie J., « Traumatisme, destin, choix ». Quarto, n° 77, p. 74.
[21] Cf. Lacan J., « Dissolution ». Op. cit., p. 75.
Editorial – PUNCTUM 5
XXIV Encontro Brasileiro, Analista: Presente! Está logo aí. E Punctum 5 está no ar, com muitas preciosidades.
Deixar-se interpretar, rejeição contemporânea da interpretação e precisões sobre a distinção entre vivido e destino é o que nos traz nossa convidada Clotilde Leguil em seu texto “Consentir com a interpretação”. Texto para ser lido e relido, pois é um orientador clínico.
Nossa colega da EBP, Nohemí Brown nos traz, a partir de um pequeno recorte clínico a presença do analista como uma “presença pressentida”, que se insinua, em seu texto “Voz e moldura”.
Em “Bibliografia e ressonâncias”, Cristiane Barreto faz ressoar a afirmação de Lacan: “O inconsciente é a política”. A urgência subjetiva e o enlaçamento entre dizer e tempo, é o que nos traz Luiz Felipe Monteiro com Lacan em seu seminário “Momento de concluir”.
E para vermos e ouvirmos, nosso colega da EOL, Ricardo Seldes, nos coloca uma questão fundamental: “como entender a presença do analista em uma prática que é essencialmente o tratamento da palavra pela palavra”. Vale ouvir atentamente. E para ouvir o que foi escrito, inauguramos “Tuítes falados”, com vários colegas da EBP.
Como disse o poeta e músico Chico Buarque, “A manhã renasce e esbanja poesia”. Brasileiro e psicanalista: Presente!!!!
Patricia Badari
Pela Comissão de Site e Boletim
O analista, o real e a época – notas em progresso
“Cada época tem seu fascismo e a isso se chega de muitos modos, não necessariamente com o terror da intimidação policial, mas também negando ou distorcendo informações, corrompendo a justiça, paralisando a educação, divulgando de muitas maneiras sutis a saudade de um mundo no qual a ordem reinava soberana, e a segurança dos poucos privilegiados se nutria do trabalho e do silêncio forçado da maioria”[2] (Primo Levi).
I. Testemunho
Por que ao propor o procedimento do passe, Lacan elege o testemunho como modalidade de transmissão da passagem de analisante a analista? Tal eleição teria alguma relação com os testemunhos de sobreviventes que naquele momento, mais que no período imediatamente posterior ao final da guerra, circulavam na cena europeia? Um dado digno de nota, que não passou despercebido em minha pesquisa nos arquivos do Centro di Studi Primo Levi, é que, coincidência ou não, no contexto dos testemunhos de sobreviventes dos campos de concentração nazistas aquele que transmite a outros o testemunho de um sobrevivente é chamado de “passador” [3]. Passador era também o termo utilizado para se designar as pessoas que passavam judeus das zonas ocupadas para zonas livres durante a guerra.
Em conferência proferida por ocasião da abertura da XXII Jornada da EBP-MG, Christiane Alberti enfatiza que Lacan teve muito em conta o laço social e as suas transformações, ao ponto de registrá-lo, em sua teoria, como um real que devemos levar em consideração[4], evocando, na esteira do texto da Proposição de 9 de outubro de 1967, o campo de concentração e os testemunhos dos sobreviventes como os fatos históricos tributários da integração do real à sua teoria. Tal eleição não parece desarticulada do ponto trazido à luz por Clotilde Leguil, ao afirmar que ademais atestar o surgimento do inconsciente, o termo “testemunha” dá conta da função da presença do analista como como testemunha do que se perde, como presença articulada a uma perda[5].
Não me parece irrelevante que no texto da Proposição[6], o campo de concentração apareça como um dos pontos de fuga em perspectiva do nó que ata a psicanálise em extensão à psicanálise em intensão. O campo e concentração é tomado no texto da proposição sobre o psicanalista da Escola como facticidade real, e ao lado das consequências do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, gatilho para uma ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação. É o que vemos, hoje. Trazer o campo de concentração como facticidade real e o nazismo como um reagente precursor[7], indica uma fratura, um antes e um depois na história do século vinte. Uma fratura também naquilo que concerne à sociedade psicanalítica, textualmente explicitado em ambas as versões da Proposição, e de modo contundente na primeira versão[8]. O que não nos deixa desviar da questão sobre quais seriam os três pontos de fuga que atariam a psicanálise em extensão à psicanálise em intensão, hoje. Questão atinente tanto ao destino das instituições fundadas sobre o modelo do exército e da Igreja, quanto à presença do analista nos campos clínico e político.
II. O analista, a Escola e a época
Alguns significantes me chamam a atenção em “Ponto de Basta”[9], aula de 24 de junho de 2017 proferida por Jacques-Alain Miller no contexto da penúltima eleição presidencial, e da ascensão da extrema direita na França: se engajar, escolher, discernir, perceber, saborear, examinar, provar. O que é do registro da escolha é também do registro do gosto. A heresia, no que concerne ao campo da escolha, ancora-se profundamente na língua, diria até mesmo que sobretudo na língua, em sua singularidade desconcertante. As escolhas não devem ser pensadas unicamente no campo das idealidades, elas estão enraizadas no corpo, no gozo do corpo, no sinthoma, por isso o analista não é um indiferente. O desejo do analista não é um desejo de nada. É um desejo pautado em uma ética, inclui uma política, na própria posição a que faz jus.
Vejamos o comentário de Lacan destacado por Miller à propósito de Freud, em “A direção do tratamento” – “Quem, tão intrepidamente quanto esse clinico apegado ao terra-a-terra do sofrimento, interrogou a vida em seu sentido, e não para dizer que ela não o tem – maneira cômoda de lavar as mãos, mas para dizer que tem apenas um, onde o desejo é carregado pela morte”[10] (uma resposta heideggeriana de Lacan). Nenhum niilismo aqui. Miller se declara impactado pela expressão “clinico apegado ao terra-a-terra do sofrimento”, a partir da qual retoma os tempos da existência de uma Escola, com as suas escanções e momentos cruciais, mas sobretudo sobre a distinção entre a Escola como sujeito e a Escola como instituição, tema medular em Teoria de Turim[11].
A instituição não é o mesmo que a Escola-sujeito. É preciso “estar em condições de produzir um ato como Escola-sujeito”[12]. O ponto nodal aqui é o ato. Não há Escola-sujeito sem ato. Ela somente tem existência como um efeito de um ato.
No mesmo texto já citado por Miller, Lacan profere – “que antes renuncie a isso quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”. A época é dotada de subjetividade, a subjetividade de uma época é o que a anima, a sua mentalidade, o que confere a ela um horizonte e um limite que, seguindo Miller “coage os pensamentos” ao mesmo tempo em que “designa a sua coerência”. Não se refere aqui aos seus atributos, a isso que é palpável e se pode nomear ou classificar no plano individual. Não se refere ao que seriam os atributos “individuais” de uma época, deslocando inclusive o binômio “individual – coletivo”: A subjetividade é transindividual. O que Lacan quis dizer com isso, em seu Relatório de Roma? Ele se refere ao “discurso concreto” como sendo o campo da realidade transindividual do sujeito. O ponto nodal aqui é o discurso como categoria que extrapola o binômio individual – coletivo. O transindividual parece operar uma torção ou uma dobra, ou constituir-se como litoral. Caberá pensar esse conceito a partir das proposições topológicas de Lacan, que nos reenviam ao plano da extimidade.
O exemplo memorável trazido por Miller nesse texto é o dos três prisioneiros tomados como indivíduos ligados, e mesmo enganchados uns aos outros de modo a formar uma subjetividade, tanto no sentido de horizonte, quanto de limite, na medida em que a subjetividade é prisioneira da época, de seu Zeitgeist. Lacan o articula à dialética em sua acepção hegeliana, o que se esclarece na posição do analista como eixo de tantas vidas na medida em que está advertido, que sabe da dialética que o compromete com essas vidas num movimento simbólico. Também uma Escola, na qual sujeitos estão engajados, tem um caráter transindividual, e me parece, tomando a sério e esse ponto, que possamos estender tais proposições aos seus dispositivos, sobretudo, ao dispositivo do Passe. O passe de uma Escola não é o Passe-Instituição. Só há passe em ato, e no horizonte de uma Escola-sujeito.
III. Se “o coletivo é o sujeito do individual”, em que consiste um cálculo coletivo?
O que leva Lacan a afirmar que o grupo e a massa não seriam de um registo diferente daquele do sujeito? E ademais, já na última nota de rodapé de “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”, remetendo o leitor ao primeiro parágrafo de Psicologia das massas e análise do eu, o que o leva a auferir que “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual”? [13]. Lacan faz a ressalva de que a objetivação temporal presente no sofisma, ponto nodal do que se produz como certeza antecipada, é mais difícil de conceber à medida que a coletividade aumenta, “parecendo criar obstáculo a uma lógica coletiva com que se possa complementar a lógica clássica”[14].
Note-se que a questão nos reenvia às premissas da lógica clássica, das premissas à conclusão como valor de verdade, como bases sobre as quais Lacan demonstra, nesse texto, a asserção subjetiva antecipatória: “1º) Um homem sabe o que não é um homem; 2º) Os homens se reconhecem entre si sendo homens; 3º) Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem. Movimento que fornece a forma lógica de toda assimilação “humana”, precisamente na medida em que ela se coloca como assimiladora de uma barbárie…”[15]
Ana Lucia Lutterbach[16] ressalta que nesse texto de 1945, Lacan se refere à subjetividade de sua época como movimento simbólico, uma referência ao inconsciente estruturado como linguagem e ao desejo como desejo do Outro. Outro que traz em si a história e os traços fundamentais da civilização. Mais tarde, a partir do Seminário 17 e até o fim de seu ensino, Lacan se refere não só à dialética do desejo, à história, como também às implicações do gozo no laço social. Tema amplamente desenvolvido por Éric Lautent em O avesso da biopolítica, a partir das “lógicas do acontecimento de corpo”[17] e das suas formulações sobre “O falasser político”[18].
Como pensar essa assertiva nesses dois momentos do ensino de Lacan? O que os aproxima e o que os diferencia, no que concerne às torções entre o coletivo, o individual, o subjetivo e o transindividual? Me parece muitíssimo fecundo tomar tais indicações como diretrizes para uma leitura dos laços entre a clínica, a política e o campo social, nesse tempo que é o nosso.
Nessa perspectiva, a das implicações do gozo no laço social, trago ao debate uma passagem de Lacan no Seminário 16, de um Outro ao outro, em que as vicissitudes do laço entre o Outro e o gozo são tomados não na perspectiva da fantasia, mas naquela do traumatismo em sua vertente real, o que, me parece prevalecer hoje, em detrimento do trauma em suas coordenadas simbólicas. Tal perspectiva se articula com a facticidade real proposta por Lacan na Proposição de 1967, indicando que a lógica do campo de concentração, onde quer que ela esteja, desembocará no que Lacan aponta neste seminário: em situações-limite em que gozo e corpo se separam[19].
IV. Traumatismo e lalingua: assuntos de política
A linguagem, cujas leis podemos estudar, veicula em sua estrutura o laço social, ao passo que com lalingua temos uma camada subterrânea passando por debaixo da norma social, e a dimensão fônica da linguagem, fonte dos mal entendidos infantis, das significações investidas de libido. Se ao nível da linguagem encontramos o significante articulado, no âmbito de lalingua temos o S1, o significante sozinho, imantado de substância gozante[20].
Nos campos de extermínio a incomunicabilidade levava rapidamente à morte. O murmúrio, o balbucio, o urro, rompiam a densa barreira do mutismo, tal como Primo Levi narrou em A trégua – nos dias que se seguiram à chegada do exército russo no Campo de Buna-Monowitz – a propósito de Hurbinek, nome atribuído a uma criança provavelmente nascida no Lager, a partir dos sons inarticulados que emitia. Não sabia falar. Já os seus olhos dardejavam, terrivelmente vivos, cheios de vontade de romper a tumba do mutismo [21]. A necessidade da palavra… comprimia seu olhar com uma urgência explosiva: era ao mesmo tempo um olhar selvagem e humano…. carregado de força e de tormento[22]. Matisklo, que se aproximava a uma palavra articulada, foi o único rudimento de palavra pronunciado ao longo de sua breve existência naqueles dias de convivência entre os prisioneiros recém liberados nas enfermarias do Lager.
No Seminário 16, de um Outro ao outro, Lacan postula que em situações-limite gozo e corpo se separam. Jacques-Alain Miller enfatiza que é essa separação entre o gozo e o corpo que faz com que o gozo seja, antes, do Outro. Ele diz: sabemos dos traumatismos devidos ao fato de um Outro ter forçado ou imposto seu gozo ao nosso corpo. Esse regime de violação é certamente o que há de mais traumático. Somos forçados aqui, a colocar entre aspas a palavra fantasia e conceder crédito a esse traumatismo, e em sua estrutura, separar o corpo e o gozo, quando é o gozo do Outro que se impõe. O corpo se esvazia de gozo. Num caso temos as vicissitudes do trauma, no outro o regime de violação, o aniquilamento, as situações em que gozo e corpo se separam. Ao que tudo indica, Matisklo de algum modo reconectou, naquele breve batimento de uma vida, gozo e corpo, como testemunharam os olhos de Hurbinek.
V. Racismo, segregações
Ao ser interrogado (em “Televisão”) de onde viria sua segurança em preconizar uma nova escalada do racismo justo naquele momento (estamos em 1973) em que imperava uma atmosfera de otimismo diante da promessa de integração das nações por meio dos mercados comuns – Lacan dirá: “No desatino do gozo – só há o Outro para situá-lo – mas na medida em que estamos separados dele”[23].
Na esteira das questões atinentes à segregação, vale interrogar: 1) Se a segregação horizontal e “ramificada”[24], na escala e magnitude que vemos hoje, seria uma derivação da “segregação estrutural”[25], aquela inerente à constituição o sujeito e à ordem simbólica, ou responderia a uma lógica diferente; 2) Se a ordem simbólica se funda ao deixar algo fora dela, a ser simbolizado no interior, como ausente – quais seriam as consequências para o laço social, da precarização desta operação, ou seja, da generalização, em larga escala na civilização, dos impasses quanto a efetivação desta operação? 3) O que isto nos esclarece sobre a chamada ‘cultura do cancelamento’ e a generalização do ódio que lhe é tributária?
Chamam a atenção, sobretudo na última década, as proporções tomadas pelos linchamentos virtuais e a manipulação da opinião pública pelas as fake news, o que no Brasil vem incitando a truculência e dogmatismo crescentes no âmbito da cena política. Tais fenômenos, não estão desarticulados, e mais que isso, parecem manifestações contemporâneas daquilo que Lacan aponta sob a égide de uma segregação ramificada, reforçada, que se sobrepõe em todos os graus, não fazendo senão multiplicar barreiras. Talvez como um dos efeitos do que apontava já em 1967, mas desta vez sob as injunções da biopolítica, da tecnologia e consumo de massas, cujas incidências vão além da queda do falocentrismo. O mundo regido pela ordem simbólica, em que cada coisa estava em seu lugar, aferrolhada pelo patriarcado, assegurada pelas leis enganchadas ao Nome-do-Pai, ponto de partida de Lacan, caminha, no segundo tempo de seu ensino, rumo a uma direção oposta: aquela do desmantelamento metódico, constante e feroz da pseudo harmonia da ordem simbólica.
Os aparelhos tecnológicos (celulares, tablets e similares) parecem funcionar, hoje, como extensões do próprio corpo, ao ponto de se acessar por meio de um único e mesmo dispositivo crushes, nudes, o relógio, as redes socias, e… o analista.
Com a prevalência dos imperativos do consumo, o ideal democrático parece se deslocar, pois já não se funda na igualdade como ideal ou princípio; mas no direito ao gozo como finalidade que se quer garantir. Ou seja, é em nome do direito ao gozo que muitas vezes se apela à igualdade. Assim, em nome do gozo, as democracias liberais de massas consumidoras incorrem no risco de engendrar, paradoxalmente, uma espécie de autoritarismo às avessas: a soberania popular cedendo seu lugar à soberania do consumidor, o que desemboca não num consentimento à multiplicidade dos gozos, mas no rechaço à diferença.
É nesse contexto, que, para conter ou corrigir os excessos da pulsão, incorre-se nos dogmatismos, ou apela-se a um deus restaurador da ordem e/ou aos programas e ações políticas de vocação totalitária. Vide o atual avanço dos nacionalismos, não mais apoiados em ideias ou em utopias, mas em slogans legalistas e messiânicos. Tendo-se chegado a este ponto, não seria demais afirmar que o declínio das sociedades patriarcais em sociedades de massas consumidoras tenha uma incidência sobre a crise das democracias representativas.
VI. Extimidade
Desde a primeira vez que li as duas versões da Proposição, me perguntava o que uma menção aos campos de concentração nazistas estaria fazendo em um texto que pretendia interrogar a formação do analista e as bases das instituições analíticas.
Me ocorria que tais menções se justificariam por certa porosidade da instituição analítica às questões e impasses de seu tempo e, mais do que isso, ao modo de Lacan de pensar topologicamente a instituição analítica: o que pareceria à primeira vista localizar-se numa relação de exterioridade ao campo da prática estritamente analítica, encontrar-se-ia, ao mesmo tempo, em seu mais “íntimo”, em seu “interior”.
É importante observar – e nisso reside toda a sutileza da questão – que o problema não parece estar, propriamente, numa relação de causalidade direta entre a segregação e a violência, ou entre a segregação e o mal radical dos qual nos fala Hannah Arendt, por exemplo. A segregação é consubstancial à operação simbólica, na medida em que segrega-se o que resiste a integrar a própria rede de referências e significações; segrega-se o gozo outro, deslocado, inassimilável, mas segrega-se, sobretudo, a partir de um não saber fundamental sobre o gozo. O gozo maligno em jogo no discurso racista se nutre do desconhecimento da lógica que o constitui: seu crime fundador não seria tanto o assassinato do Pai, “mas a vontade de aniquilar aquele que encarna o gozo que eu rejeito” [26], argumenta Laurent, em Racismo 2.0.
A questão central para Lacan no texto de 1967 sobre a formação do psicanalista, é que tais formas de universalização, recaindo numa espécie de homogeneização, acabariam por solapar o que estaria em jogo na segregação como fenômeno de estrutura, camuflando a lógica sobre a qual o fenômeno de estrutura se funda, e com a qual só se tem a chance de operar se não estiver totalmente subsumida ou encoberta pelo discurso do Mestre, por bandeiras ideológicas, por uma rejeição absoluta, ou por soluções homogeneizantes. Ademais, não é incomum atribuir-se como causa da segregação de estrutura, a suposta vontade caprichosa de um Outro mau, de um Deus maligno e obscuro. Foi precisamente no horizonte dessas reflexões que Lacan evocou, nos anos sessenta, e mais precisamente, no Seminário 11, o advento do nazismo[27]. O que significa o sacrifício sobre o qual Lacan discorre? O que corre nas entrelinhas do ato sacrificial, e por que ele seria tomado de fascínio? Lacan esclarece que, no objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo desse Outro, que ele chama de “Deus obscuro”. Esse seria o ponto cego, medusante e pleno de fascínio, que poderá cercar a dimensão do sacrifício, em nome e por causa do Outro. É em relação a este ponto cego e paralisante que a ignorância, a indiferença, ou o desvio do olhar são as respostas humanas, demasiadamente humanas.
Para o psicanalista, Lacan propõe “a abertura de olhos” que uma análise poderá permitir, diante do encontro de uma posição-limite, consubstancial às intrincadas relações entre o desejo, o objeto, o gozo e o Outro. Cabendo aqui uma ressalva: a segregação inerente à operação simbólica não é equivalente e nem mesmo similar à segregação que se descortina e é colocada em marcha com o advento do nazismo e da máquina concentracionária, fundadas na vontade arbitrária e no gozo mortífero de aniquilar o semelhante. Da segregação à serviço do aniquilamento. Quando o que vigora é a lógica concentracionária, indivíduos e populações inteiras, às expensas das ações, da vontade, ou do desejo de cada um em sua singularidade, são destituídos de sua condição de cidadãos e uma vez reduzidos brutalmente à condição de dejetos, ver-se-ão capturados e lançados numa situação aniquiladora, sem saída, monstruosa. Aqui não estamos diante dos fenômenos de segregação, mas do aniquilamento. De modo que não seria pertinente, nesse contexto, confundir esses diferentes registros da segregação, imputando a culpa da segregação atroz operada por uma política de extermínio, a cada um, individualmente. Ao invés de soluções simplistas ou das malfadadas inversões da culpa, mais vale tentar cernir as consequências das diferentes formas e manifestações da segregação, e entender como e porque elas conduziriam inevitavelmente a uma obstrução dos usos da palavra, a uma inércia e desconhecimento cada vez mais amplos daquilo que as sustenta e mantém, advertidos que nem a boa vontade, nem a simples denúncia, seriam capazes de substituí-las ou de minimizar os seus estragos.
VII. Democracia
O que está acontecendo com as democracias, hoje?[28] Que tipo de mutações estão em curso? É notório que os pilares da democracia, tal como praticada no século vinte, encontram-se fortemente abalados. Observa-se pelos quatro cantos do planeta a ascensão de representantes da extrema direita se elegerem democraticamente. Há certamente movimentos de cunho neofascista, que se nutrem das fixações residuais e não ultrapassadas dos grandes conflitos mundiais do século XX. Mas diferentemente dos movimentos fascistas do século passado, há nas manifestações obscurantistas deste início de século mais diferenças que pontos em comum, dificultando a sua leitura e interpretação, o que levou o cientista político Enzo Traverso a nomear esse conjunto de movimentos de “pós-fascistas”[29]: seu conteúdo ideológico é flutuante, instável e frequentemente contraditório, podendo abarcar ideias e crenças francamente antinômicos. Em lugar das diferenças e tensionamentos ideológicos, ganham terreno polarizações de todos os tipos, intensificando o “nós contra eles”, a partir da identidade personificada por um líder autoritário. No caso do Brasil, o incremento dos apelos reacionários ao modo de uma onda ultraconservadora se alastra no vácuo de uma crise da política representativa e de uma perda de confiança nas instituições.
Sabemos que as sociedades democráticas não são monolíticas e que é preciso manter certas condições ‘de temperatura e pressão’ para que não coloquemos a democracia em risco. Isso não quer dizer que não existam brechas e paradoxos. Um desses paradoxos, formulado por Claude Lefort[30], reside no fato de que o lugar simbolicamente vazio do poder não poderá ser apropriado ou encarnado por alguém. Sob esse paradoxo vive e respira o estado democrático de direito, que estará em perigo todas as vezes que esse lugar vazio se veja obturado ou confundido com quem detêm a autoridade. Foi o caso de Hitler, Mussolini e Stalin, e de tantos outros ditadores que floresceram no século XX. Isso poderá acontecer também quando se denegam as divisões internas aos poderes, resultando em uma indiferenciação das instâncias que regem politicamente a sociedade. Ou ainda, em situações em que o poder deixa de se constituir como um lugar simbolicamente vazio em nome da qual se governa, para se apresentar como realmente vazio, situação em que os governantes passam a ser percebidos como elementos de facções a serviço de um grupo de interesses, vendo sua legitimidade sucumbir em todas as extensões do tecido social, até que, no limite, já não se sustente uma sociedade propriamente civil. Antes de sua total corrosão, a sociedade se vê polarizada entre a defesa de um estado permissivo e rendido a grupos de interesse e o brado por um estado consubstancial à sociedade, que falando em seu nome venha a encarnar o corpo social de forma homogênea e sem brechas. Com essa polarização, nutre-se o ódio à diferença, motor da intolerância e da segregação. O laço social se fragiliza, chegando, às vezes, à ruptura.
VIII. A Escola como coletivo
Em “Teoria de Turim”[31], Miller enuncia o paradoxo da Escola nos seguintes termos: como entender o fato de que no momento que Lacan institui uma formação coletiva, suas primeiras palavras colocam em primeiro plano a solidão subjetiva. Essa formação coletiva “não pretende fazer desaparecer a solidão subjetiva, mas que pelo contrário se funda nela, a manifesta, e a revela”. Advertido de que a interpretação tem sempre um efeito desagregador, e sendo cada um separado do significante mestre, remetido à sua solidão, como essa comunidade se sustentaria? A proposição “A Escola é sujeito” e seu desdobramento, “A Escola é sujeito suposto saber”, aparecem como uma espécie de solução para o paradoxo entre a solidão do analista e a Escola como conjunto “antitotalitário” e inconsistente advindo dessa soma de solidões: “constituir esta comunidade é fazer da própria Escola um sujeito barrado”. A Escola precisa de estatutos, mas, sobretudo, de interpretações dela mesma como sujeito. Trata-se de que a determinação significante da Escola, suas organizações simbólicas complexas, suas publicações, tenham como efeito instituir a Escola como sujeito suposto saber”.
Em “Questão de Escola: proposta sobre a garantia” (2017), o problema se recoloca tendo como horizonte as mutações do Discurso do Mestre. A questão já não se enuncia unicamente em termos de uma “Escola sujeito”, como na “Teoria de Turim”. Miller ressalta a sua condição de “ser ambíguo”, uma “Escola Morcego”. O que está em questão é o embuste de pretender que o discurso analítico se funde como um discurso que não tomaria seus efeitos a partir do semblante. Donde o paradoxo: não apenas o do laço entre a solidão do analista e a Escola, mas aquele do discurso analítico como um embuste que toca o real: o discurso analítico não só dissolve os semblantes dos outros discursos, como também denuncia o próprio. O resultado dessa operação, ainda que tenha efeito de semblante, é desnudar o real. Como consequência, seu suporte de semblante, que é o sujeito suposto saber, se autodestrói. Se na “Teoria de Turim”, a Escola como sujeito suposto saber aparece como uma solução, em “Proposta sobre a garantia”[32] o sujeito suposto saber, como suporte de semblante do discurso analítico se autodestrói. Estaríamos diante de uma nova mutação, dessa vez, em relação aos destinos do sujeito suposto saber como suporte de semblante do discurso analítico? Convido-lhes a elaborar e extrair as consequências desta Proposta sobre a garantia, de Jacques-Alain Miller, a fim de fazermos uma releitura dos pontos de fuga da Proposição sobre o psicanalista da Escola, hoje, passados cinquenta e cinco anos de sua proclamação.
Lucíola Freitas de Macêdo
[1] Texto apresentado no dia 8/8/22 em atividade em conexão com o XXIV EBCF organizada pelo Conselho e pela Diretoria da Seção Rio.
[2] Levi, P. A assimetria e a vida. São Paulo: Ed. UNESP, 2016, p.56
[3] Mesnard, P. Primo Levi: uma vita per immagini. Venecia, Marsilio Editori, 2008, p.11, 102 e 144.
[4] Alberti, C. Há apenas isso: o laço social. Curinga, n.47, 2019, p.19.
[5] Em “Presença do psicanalista com testemunha da perda”. Boletim Punctum Extra. http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/
[6] Lacan, J. Proposição de 9 de outubro de 1967. Outros Escritos, Rio de Janeiro, JZE, p.261-263.
[7] Lacan, J. Anexos. Outros Escritos, Rio de Janeiro, JZE, p.583.
[8] Lacan, J. Anexos. Outros Escritos, Rio de Janeiro, JZE, p. 583-584.
[9] Miller, J.-A. Ponto de basta. Opção Lacaniana, n.79, julho 2018, p.23-38.
[10] Lacan apud Miller. Ponto de basta, p.31.
[11] Miller, J.-A. Teoria de Turim. Opção Lacaniana on-line n.21, Nov.2016. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_21/teoria_de_turim.pdf.
[12] Miller, J.-A. Ponto de basta, p.32.
[13] Lacan, J. O tempo lógico. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.213.
[14] Idem.
[15] Idem.
[16] Cf. em https://jornadasebprioicprj.com.br/2022/local/.
[17] Laurent, É. O avesso na biopolítica. RJ, Contra Capa, 2016, p.61-64.
[18] Idem, p.201-219.
[19] Lacan, J. O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p.266.
[20] Miller, J.-A. A psicose ordinária, a convenção de Antibes, p. 286.
[21] Levi, P. A trégua. São Paulo: Cia das Letras, 2010, p.19.
[22] Idem, P.18-19.
[23] Lacan, J. Televisão. Outros Escritos, Rio de Janeiro, JZE, p.533.
[24] Lacan, J. Nota sobre o Pai. In: Opção lacaniana. São Paulo: Edições Eolia, n.71, dezembro 2013, p.7.
[25] Bassols, M. O bárbaro. Transtornos de linguagem e segregação. In. Opção lacaniana online nova série, ano 9, março/julho 2018, n. 25 e 26.
[26] LAURENT, Eric. Le racisme 2.0. In: Lacan Quotidien, n.371, 26 de janeiro de 2014. Disponível em: http://www.lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2014/01/LQ-371.pdf.
[27] LACAN, Jacques (1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p.259.
[28] Para uma análise das questões atinentes a este tema no contexto do Brasil atual, recomendo: Bignotto,N., Starling, H. & Lago, M. Linguagem da destruição, a democracia brasileira em crise. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
[29] Traverso, E. les nouveaux visages du fascisme. Paris: Textuel, 2107, p.13.
[30] Lefort, C. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.75-77.
[31] Miller, J.-A. Teoria de Turim. Opção Lacaniana on-line n.21, nov.2016.
[32] Miller, J.-A. Questão de Escola: proposta sobre a garantia. Opção lacaniana nova série, ano 8, n.23, julho 2017.
Os três (mais um) planos da presença do analista
Por Marcus André Vieira*
• Este texto reproduz fragmentos escolhidos da participação do autor na discussão dos encontros do Seminário Clínico da Seção Rio em 2019 sobre a Presença do analista, coordenado por Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros, que contou com a participação de Nohemi Brown como convidada.
Tudo indica que retornamos a tempos pré-lacanianos quando temos que afirmar seguidamente que a presença do analista não é a incidência de sua pessoa no discurso analisante. Sem o analista como gente, sem empatia ou humanidade não há análise. São, porém, condições necessárias, mas não suficientes. Pior, tomadas como direção e motor da análise só levam ao doutrinamento ou, nos termos de Lacan, à identificação com o analista – quando se trata de transferência positiva – ou ainda a um contínuo enfrentamento – quando a transferência negativa está em primeiro plano. Vale conferir as indicações abundantes de Lacan a esse respeito em seus primeiros seminários ou em textos como A direção do tratamento.
O perigo, porém, é fugir da empatia e da compreensão para cair nos braços de uma ontologia do silêncio e do mistério. O real passa a ser o silêncio das pulsões, inescrutável e inefável. A presença do analista passa a ser tomada como o real da psicanálise, como se bastasse estar na presença do analista para que houvesse análise. Ora, foi exatamente contra esse desvio que se insurgiu Lacan com relação à aberração que constituía a figura do didata na IPA de seu tempo. Esse também é o perigo de pensarmos, em tempo de análises on line, que a presença corporal bastaria como garantia da presença. Nunca é demais lembrar que quando Lacan fala em “o analista”, está falando de uma função, de uma posição, um “lugar de fala” no encontro analítico, que às vezes se materializa, às vezes não. A função analista é contingente. A presença do analista é ôntica, não ontológica. Nos termos de Miller, é existência, um ente, um existente e não um ser.
Bem-vindos, então, aos paradoxos de uma presença que não é, mas ainda assim é. É a presença como aquela que sustenta a existência, nos ditos do analisante, não de um indizível, mas sim da possibilidade de um dizer “a mais”. É contraintuitivo, mas assim é nosso trabalho, o de uma presença que se articula “ao que se diz”, como seu não-dito e que, apesar de ser articulada “ao que não se diz”, ainda assim é alguma coisa.
Este é o paradoxo que abordamos, desde Lacan, com o termo resto. O resto tanto é quanto não é. Não faz parte do que se diz, mas está por ali, por “cair” do dito. Uma vez dito o dito, o resto cai dele como aquilo que não era para estar ali.
Creio que o aforismo de Lacan em O Aturdito é uma maneira de retomar essa intrincada articulação, sem o imaginário do excluído e do lixo que sempre acompanham o resto. Além disso, assume todo o seu valor, quando estamos em um plano de exclusão e desigualdade no grau de violência que é o da nossa sociedade. Afinal, não é porque que alguém é excluído que não deva ganhar lugar. Já o resto lacaniano, é o resto irredutível, que nunca terá lugar a não ser como desencaixado.
Que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve.[1] Essa foi a tradução possível nos Outros Escritos. O “em o que…” ficou feio, mais natural seria dizer “no que…”, mas foi o modo de não perder a ideia de que aquilo que fica esquecido, assim fica, por estar “em”, dentro (dans) daquilo que se ouve.
Mas o mais difícil nessa frase me parece o “ouvir” (entendre). Há toda uma diferença entre uma atitude meio passiva, ouvir e uma ativa, de recorte e escolha em escutar ou mesmo entender que é outra tradução possível do termo usado por Lacan. Das três possibilidades, claramente Lacan fala de alguma coisa prévia ao ato de escutar, por isso optamos por ouvir na tradução oficial. Escutar ou entender é coisa da consciência que edita o discurso do Outro. Lacan está falando de um processo da fala, do ato de fala e não do ato de edição, de leitura do discurso do Outro, que fazemos a cada vez que conseguimos, dele, entender alguma coisa. Mas temos que ter em mente as três opções.
Então, para começar correndo o risco de escorregar no esquematismo didático, vamos experimentar o entendre como escutar. A tradução ficaria assim: Que se diga fica esquecido atrás daquilo que se escuta naquilo que se ouve. Vamos, agora, redizer a formulação passo a passo e de trás para frente. Quando algo se escuta naquilo que se disse, o dizer, o fato do dizer, o ato de enunciação, fica ofuscado pelo que, do que se disse, se entendeu.
Ora, essa operação de esquecimento, própria do discurso, esconde o gap entre o que se entende e o que se fala, como se houvesse uma comunicação transparente, sem distância entre intenção e gesto. Esse intervalo, porém, se apresenta aqui e ali e é o próprio da presença do analista fazê-lo aparecer. Neste caso, entre os dois, surge um dizer que ainda não está dito. Era um não dito que agora, no entanto, se decanta ou se deposita, como um quase dito, um fragmento de memória, por exemplo, entre o dito e o dizer. Isso é o nosso material de análise.
O que não se diz, aqui, não é puramente negativo (esse seria o caminho intuitivo: quando não dizemos alguma coisa, ela simplesmente não é, não é o que ocorre em uma análise).
Desde o texto de Freud sobre a negação, considera-se que se dissemos que não é a mãe, a mãe já está convocada, em cena. Para nós, psicanalistas, não há “não” que seja puro não. Lacan generaliza, afirmando que por sermos feitos de linguagem é quase impossível instituir uma negatividade pura. Para dizer o que não é, temos que, de algum modo, já dizer alguma coisa dele. Vale lembrar quando o Homem dos Ratos diz a Freud: “se por exemplo, fosse meu pai a sofrer uma desgraça…”. Ele fala como se fosse justamente nada, apenas um exemplo. E Freud intervém dizendo: o exemplo é a coisa. Essa intervenção materializa o “que se diga” no dizer do homem dos ratos sobre seu pai. Um segundo antes era nada, um instante depois já é um dizer que pode ser lido como um desejo inconsciente de morte, entre outras possibilidades.
Assim, em uma análise, tudo o que você disser pode depor contra você. Mas não porque há segredos nos porões, e sim porque, performativamente alguma coisa vem a estar ali. Essa coisa não estava guardada, escondida debaixo do silêncio. A presença de um silêncio específico, em um momento específico, cristaliza, decanta algo novo que estava ofuscado pela articulação até então em curso, pela maneira como o dito recortava um não-dizer.
Retomando mais uma vez o aforismo agora sem a inversão didática:
- Que se diga: esse é o fato de dizer, o ato de dizer; ele parece o sujeito da frase, por ser o que vem primeiro e, de fato, é o mais importante, mas vai ficar ofuscado pelo sujeito da frase, que está no final, o que se ouve. É o que se ouve que age, ofuscando o que se diga.
- O método de ocultamento de o que se ouve é se servir de o que se diz, do dito em questão. É uma operação sobre o dito que oculta o ato de dizer e essa operação é ouvir (que é muito mais que entender, escutar, mas também é isso). Ao depreender um o que se ouve em aquilo que se diz, oculta-se o ato de dizer, oculta-se o que se diga.
- Mas o que diz o que se diga, o ato de dizer? Por um lado, a potência do dizer, potência desejante em si, que é sempre aberta ao novo. A presença dessa potência do dizer, porém, tem outros efeitos além de abertura. Esse ato pode decantar alguma coisa outra que não a coisa ouvida.
- Essa alguma coisa é o não dito que se perdia quando se escutava, quando se queria demais entender alguma coisa. O que faz uma interpretação é colher alguma coisa nova no dizer que não o que se escutou no dito. A interpretação é a extração de um novo dito a partir da abertura do ato de dizer.
Materializa-se um real que é – nos termos de Lacan – sempre “hiância e texto”. No início de uma análise este real é mais texto do que hiância, no final a proporção se inverte, mas é sempre letra e gozo, indissociáveis.
Uma consequência disso é que em uma análise não há ato em um sentido puro, que aliás, nem existe. Apenas o suicídio seria um puro ato. Todo ato é o ato dentro de coordenadas significantes sendo, portanto, sempre ato de um dizer, mesmo que esse dizer esteja sempre em ruptura com o contexto em que se instaura. Desse modo, na análise, para cada dizer uma estrutura ternária se põe em jogo. Uma coisa é o que eu digo, outra coisa é o que eu sou no que eu digo, e outra ainda é o que posso vir a ser no dizer.
Vale retomar o relato descrito por Hilda Doolittle[2] de um momento de sua análise com Freud, tal como proposto por Miquel Bassols e que Nohemí Brown comenta.[3] Hilda manda flores a seu analista no aniversário dele, como sempre mandava, mas não assina o cartão. Freud não deixa o fato passar em branco e responde a ela agradecendo, e assim como ela, não assina a carta. Na sessão seguinte, ela fala como se isso não tivesse importância. No momento em que ela falava com indiferença daquele assunto, Freud bate no divã e diz: “o problema é que sou idoso, você não acredita que valha a pena me amar”. Estamos, infelizmente, deixando de lado todo um mundo de detalhes que compõem a relação entre eles, especialmente a transferência amorosa, e também negativa, de Doolittle para Freud. Seria preciso ler com calma o Tribute to Freud. Ficaremos apenas com as indicações de Bassols e Nohemí.
Vamos assumir que tudo está concentrado em três elementos ou três planos: o plano do dito, o plano do dizer e o plano do que se decanta entre o que se disse e o que se escutou do que se disse. E nessa história há ainda um quarto elemento, o próprio ato do dizer como potência de reconfiguração e recriação de si na fala.
O analista faz alguma coisa – bater no divã – e isso é algo que está na fala, é um dito, mas um dito entre dito e dizer. E, além disso, ele diz: sou velho demais para você. A partir daí, a dimensão da presença do analista vai se localizar não no que se escutou do que ele disse, mas no que se depositou entre os dois.
O primeiro plano, o mais evidente, que é o da transferência amorosa, do sujeito suposto saber, localiza de um lado, um pai – Freud –, e do outro, Hilda, sempre muito amorosa com aquele senhor. Freud, no entanto, aponta que o jogo entra no termo da mentira. Bassols destaca: ela está deitada e mentindo, lying, no sentindo da ambiguidade do inglês. Isso, porém, traz outro plano para o jogo: ela estava deitada, não apenas em uma transferência amorosa com o pai, mas, também, em uma transferência erótica com aquele que seria seu analista, se oferecendo como objeto na cama para ele. Então, essa é a mentira, ou o outro plano, que aparece na interpretação. Uma interpretação possível seria dizer: “você está aí, meio indiferente e tranquila e esqueceu de mim, mas esqueceu de mim porque você tem uma repulsa por seu desejo amoroso por um velho como eu”. Isso envolve uma espécie de negatividade estranha, porque não equivale a dizer “na verdade, lá no fundo, você tem desejos eróticos por mim”. Isso já faria parte de um segundo plano.
O segundo plano é o da interpretação. O plano de uma interpretação que traz algo de pulsional, não sendo apenas amor, mas, também, desejo. Só que neste plano, Freud aponta para o desejo articulado com a repulsa – um clássico na histeria. Um jogo de repulsa que evidencia o jogo de desejo.
No terceiro plano, Freud bate no divã, e como disse Jacques-Alain Miller, há algo “a mais” na batida, como se o analista estivesse produzindo uma ressonância daquilo que vai além de dizer apenas: “há um desejo erótico por mim”. Seria, por exemplo, como dizer “há um desejo erótico por mim, e mesmo que você esteja assustada comigo morrendo, eu [bate na mesa] estou aqui”.
É importante destacar que não basta traumatizar para entrarmos nesse plano. Quando Freud faz essa intervenção, ela só pode acontecer porque ele está no lugar de objeto que a transferência lhe designa: o lugar do senhor adorável e do senhor mortificado, que pode ser desejado eroticamente de forma inconsciente porque não representa nenhum risco. Então, é desse lugar, com tudo isso em jogo, que Freud bate no divã. E, talvez, seja importante bater no divã, não só porque o divã é o lugar da cama, mas porque isso marca a sua presença. Sem contar com o fato de que ele faz isso na hora exata em que quer se mostrar mais vivo e não velho e acabado.
Essa dimensão da presença do analista atravessando a dimensão “dito e dizer” da transferência e da fantasia, é muito importante. Poderíamos pensar que isso “foi um ato analítico” ou, pior, que o analista “fez um ato” porque transgrediu de alguma maneira. Bater no divã, gritar, ou fazer alguma coisa para sair do setting, nada disso, porém é garantia de que o analista se apresente como vivo, ou em outros termos, como o desejo do analista. A presença do analista, como função, como desejo do analista, se encarna quando um analista aceita se submeter aos significantes do analisante, bancando ser o objeto desse analisante, para poder, aí sim, na hora H, se tudo der certo, se apresentar como real.
Marcus André Vieira[4]
[1] Lacan, Jacques O aturdito In Outros Escritos Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro Ed 2003 pg 449, no original: Qu’on disse reste oublié derière ce qui se dit dans ce qui s’entend”.
[2] Hilda Doolittle Tribute to Freud New Directions Publishing, 1984
[3] Cf. Bassols, M. The paradoxes of transference, disponível em
https://static1.squarespace.com/static/5d52d51fc078720001362276/t/616585eed2697c31683c7d27/1634043377909/20140215+Bassols+Transference+New+York.pdf cf. Brown, N. Intervenção no Seminário Clínico da EBP-Rio (inédito).
Sobre Grupos
De onde podemos partir para falar de grupo? Qualquer idéia de grupo em psicanálise é devedora, caudatária, da idéia de que o sujeito encerra em si uma alteridade. Cada sujeito, em certo sentido, é Outro dele mesmo, tendo uma abertura para o exterior que faz com que não exista sozinho. Homem algum é uma ilha, como dizia o título do livro de Thomas Merton.[1].
A alteridade em psicanálise se dá como uma espécie de leque: da alteridade em relação ao Outro à alteridade em relação ao objeto. São duas alteridades internas ao sujeito. Chamamos de alteridade aquilo que está ‘dentro’ do sujeito, mas nega sua essência. Podemos dizer que cada sujeito contém ‘dentro’ de si algo que nega sua interioridade. Esta é uma maneira forçada de dizer, pois, a rigor, não há dentro de si.
Podemos também dizer que com a teoria freudiana da fantasia – cujo esboço podemos situar em 1897, em uma carta a Fliess (n. 69), Freud inaugura algo que é essencial para entender a relação que cada sujeito mantém com a alteridade. É a teoria da fantasia que nos permite entender que um sujeito possa conter dentro de si um objeto que, ao mesmo tempo, é e não é ele mesmo. Só através dela podemos situar a relação que cada sujeito mantém com um objeto, e que Lacan vai expressar com a fórmula $ ◊ a. Sem essa mediação, a relação seria impossível, já que sujeito e objeto são heterogêneos, como diz Lacan em Kant com Sade.
O sujeito é uma alteridade em relação a si próprio, no sentido de que contém dentro de si duas alteridades que negam a sua essência. É por isso que o sujeito não pode ser definido essencialmente, já que nele há uma negação da sua própria essência. O sujeito é mais uma operação do que uma essência.
Um sujeito somente pode ser definido em psicanálise se for levada em conta a sua complexidade, e, principalmente a complexidade que se encerra na idéia de dentro e fora: um dentro que está fora e um fora que está dentro. Ele é, ao mesmo tempo, uma espécie de afirmação e de negação. A negação do sujeito é aquilo que funciona como alteridade.
É nesse sentido que Freud vai dizer que não existe diferença entre psicologia individual e psicologia social. Para ele a psicologia do indivíduo é a mesma do social, o sujeito tanto é individual quanto social. Ele chega a essa afirmação partindo da idéia de que o sujeito não se confunde com o indivíduo, no sentido de que o sujeito não é um corpo, que tem uma membrana que define o interior e o exterior como coisas separadas. O sujeito só é sujeito na medida em que o exterior se combina com o interior e vice e versa. O sujeito é uma operação que põe em confronto o fora e o dentro, de tal maneira que o fora é dentro e o dentro é fora – diferente da gafieira do famoso samba de Billy Blanco, onde quem está fora não entra e quem está dentro não sai. A lógica do sujeito é outra.
Os grupos artificiais freudianos
Em 1921, Freud escreveu um texto importantíssimo, ao menos para a civilização ocidental, que chamou de Psicologia de grupo e análise do eu. Em um dos capítulos usa o Exército e a Igreja como exemplos para discutir a questão dos grupos artificiais. O que é um grupo artificial para Freud? Por que escolheu o Exército e Igreja? Freud fala dos grupos artificiais como uma espécie de resultante em um sistema de forças que tem um vetor vertical, que se dirige ao chefe, e um horizontal, que se dirige ao irmão, ao camarada, ao colega, aos pares, etc.
Grupo freudiano não quer dizer que é um grupo como Freud faria, mas ganha esse nome por ser uma teorização dele. Essa qualificação do grupo como artificial é importante, pois onde se pode encontrar o seu artifício? É de certa forma não poder saber que o grupo se mantém por essa tensão entre o amor vertical ao chefe e o amor horizontal aos irmãos.
O grupo artificial é uma espécie de organização, de combinação que podemos desenhar em termos cartesianos numa linha vertical que se dirige ao Um, ao chefe, e uma linha horizontal que se dirige ao coletivo dos semelhantes, dos pares, dos irmãos, ou colegas. Todo grupo artificial se mantém nessa tensão entre dois vetores. É uma situação de tensão, mas há qualquer coisa que faz com que essa tensão não seja sentida. Imaginem o que seria do exército se, além da tensão da guerra, os soldados sentissem a tensão de estar em grupo? O que seria de um eclesiástico se a questão da autoridade do Papa o deixasse sem dormir? Impedir que se sinta essa tensão é uma das tarefas do grupo artificial.
O grupo artificial opera como tal porque ninguém que está dentro dele sabe que se trata de um grupo artificial, já que a Igreja foi fundada por Deus, está prevista portanto desde a eternidade, e o Exército é uma instituição perene que mantém a integridade do solo pátrio. Essa tensão é eliminada através do que se chama em ciência política de ideologia. A ideologia é uma espécie de pensamento que faz com que o fato do grupo se manter em constante tensão não seja percebido. Se a tensão for percebida, as coisas vão mal. O extremo desse “as coisas vão mal” aparece, no texto freudiano, na referência à famosa passagem do livro de Judith no Antigo Testamento, quando ela corta a cabeça de Holofernes e seu exército se dispersa. Essa é a demonstração freudiana: sem o chefe, o estado de tensão aparece como angústia; assim o grupo, como grupo artificial, não se mantém.
A melhor figura do chefe, tirando Deus, é o pai. Não qualquer pai, mas aquele suposto amar igualmente todos os filhos. Trata-se de um pai que recobre a contradição que existe necessariamente entre o coletivo e o indivíduo. Não é verdade que o pai ame os filhos igualmente, mas é preciso, para esse coletivo sobreviver, que haja a hipótese de que o pai ama a todos igualmente. Se o pai ama diferentemente – e esta é a tragédia de Totem e Tabu – o coletivo se dissolve, ou, pelo menos, entra em crise. Uma ideologia faria acreditar que os irmãos são amados igualmente e que é necessário que eles sejam assim amados, sob pena de que essa tensão, essa montagem tensa entre o chefe e os irmãos, seja posta em questão.
Essa montagem freudiana dos grupos exige uma consistência extraordinária da função do Um. Que não seja necessariamente uma pessoa – que seja, por exemplo, um princípio –, mas, de qualquer forma, é necessário, para esse grupo existir, que haja algo inquestionável. Nesse contexto, é o Um que garante a consistência do múltiplo e não o contrário, e é nisto que esse grupo é tão particular. Hitler, por exemplo, não devia nada ao povo alemão. Aliás, quando já não havia mais esperança de vitória, parece que ele queria que o povo alemão fosse destruído, para que algo de puro finalmente aparecesse. Se os alemães são incapazes de matar todos os judeus, que eles mesmos pereçam, pensava Hitler nessa época. Se os alemães não eram capazes de fazer uma membrana que dividisse o exterior do interior, que perecessem. Vocês estão vendo a lógica extrema do grupo que Freud teoriza criticamente? Freud não era nem militar e nem religioso, era alguém que usou a Igreja e o Exército quase como casos clínicos.
A inconsistência do Um e os pequenos grupos
Em 1939 começa a Segunda Grande Guerra, que vai até 1945. A carnificina de 1914 a 1918 já havia ocorrido na Europa. Na Segunda Guerra, a negação da relação topológica entre externo e interno é levada às conseqüências últimas, que são sempre conseqüências de sangue, de destruição de corpos.
Em 1945, um jovem psiquiatra francês, Jacques Lacan, vai à Inglaterra e conhece uma experiência de grupo que se realizava no exército britânico, de seleção dos soldados que podiam voltar ao combate. Foi a partir do seu contato com essa experiência que Lacan publicou, em 1947, um artigo importante para nós que se chama A psiquiatria inglesa e a guerra.
O texto de Lacan, apesar de não ter sido esta a sua intenção, pelo menos expressa, em um certo sentido é uma resposta ao texto de Freud, depois da Europa ter experimentado esse retorno topológico, essa tentativa desesperada de separar o dentro do fora, resultando em sangue. A destruição da Europa seria a lógica última do texto freudiano. É como se Lacan dissesse a Freud: “olhe o que pode acontecer se sobrevivemos ao que você está apontando – isso é, a hegemonia do Um sob a forma do nazi-fascismo –, olha de que poderemos dispor”.
Enquanto critica duramente a França, Lacan diz que a Inglaterra manteve sua dignidade. No caso, manter a dignidade era fazer com que um coletivo pudesse subsistir sem a garantia física do Um. A Inglaterra estava liquidada, estraçalhada, bombardeada, sem condições de obter que o Um indicasse alguma direção. Os pequenos grupos da psiquiatria inglesa são de certa forma uma antecipação, como toda sobrevivência é uma forma de antecipação. Você organiza hoje algo que só vai ganhar a sua razão de ser depois de mudadas as condições que fizeram com que a experiência fosse feita. Da crítica freudiana à experiência lacaniana há um percurso extraordinariamente importante na história da psicanálise.
A idéia lacaniana não é ingênua do ponto de vista da democracia, e muito menos é um protesto histérico contra a hegemonia do Um. É uma maneira de tirar conseqüências desse quadro que foi descrito por Freud em 1921. Só um gênio como Freud poderia montar as conseqüências últimas do que estava acontecendo na Europa, e do que ocorreria alguns anos depois.
A verdade e o real
Lendo com cuidado o texto de Lacan, percebemos uma análise rigorosa da situação francesa. Eric Laurent observa que nessa época, em 1946, logo depois da guerra, ainda não havia o mito da França resistente, que foi uma invenção do general De Gaulle. Foi uma minoria que resistiu, como em qualquer lugar. Então o que Lacan chama de ideologia inglesa se caracteriza como “uma relação verídica com o real”. Uma relação na qual verdade e real se articulam, ao invés de se oporem. Isso tem tudo a ver com que eu estava dizendo até agora. A proposta de Bion visa articular verdade e real para que o real não seja representado pelo imperativo de gozo do supereu. É nesse sentido que é realista e é combatente.
Retomando “Psicologia coletiva e Análise do Eu“. Há na linha vertical uma relação com o chefe e, na horizontal a relação entre irmãos, pares, colegas, companheiros, como se queira. É esta articulação entre o vertical e o horizontal que faz com que o grupo tenha uma relação tensa, mas que possa permanecer, possa durar. Se o general perde a cabeça, a tropa se dispersa. Esta é a lógica da psicologia coletiva. Se o S1 não responde, ocorre a dispersão, justamente porque não se apresenta nenhuma dimensão para sintomatizar a ausência do Outro. Isso pode ser estruturado como o discurso de Lacan: se o S1 não se mostra capaz de galvanizar os coletivos, não se apresenta um sujeito do sintoma, então há a dispersão do coletivo. Isso é elementar em política. É nessa relação tensa entre a dimensão do amor vertical ao chefe e a horizontal, do amor, do cimento entre os iguais, que a estrutura da psicologia coletiva freudiana de 1921 pode se manter tensamente, mas pode durar nesta articulação. Vocês podem estruturar isso como o discurso do mestre.
Se o S1 entra em falência, se o general perde a cabeça, a única saída possível é a dispersão dos coletivos? Esta é a pergunta de Bion. Será que há uma saída, dada a dificuldade dos grandes significantes mestres, que não seja a dispersão pânica dos coletivos ou a ordem de ferro superegóica? A margem de manobra não é muito ampla, é estreita. Laurent observa que Bion vai apostar nessa dimensão horizontal e, com isso, cria um primeiro exemplo, para nós pelo menos, do que vai poder inspirar Lacan na idéia dos cartéis e secundariamente na da Escola – isso que eu chamo, meio brincando, de sociologia lacaniana.
Se pensarmos na falência do S1, não como uma crise de guerra, mas como um fenômeno da civilização, veremos que isso vai exigir muito mais da estrutura dos pequenos grupos. Vai exigir maior consistência e durabilidade mais longa que o tempo de uma guerra. Se é verdade que nossa civilização se caracteriza por uma não-resposta do Outro, pela inexistência do Outro, é preciso que haja grupos que saibam manejar a ligação horizontal entre os iguais. É preciso uma nova estruturação simbólica que não parta da adesão de cada um ao chefe, mas da ligação horizontal entre os iguais sem que seja pela via de um ‘todos iguais’, que tende a restabelecer o Um sob a forma do pior – seja pela democracia de massas, do consumismo, seja pela dimensão do império do supereu, de ordens insensatas.
Tento mostrar uma diferença entre o que seria o uso dessa dimensão horizontal sem a ilusão do clã fraterno de Totem e Tabu, ou seja, o clã que só dura até o momento em que um dos irmãos diz: “O gozo do pai vai ser meu“, momento em que se dissolve. Esta é a instabilidade da dimensão horizontal. Ela não resiste à reivindicação de gozo feita por um dos iguais. É por isso que o ‘todos iguais’, em um pequeno grupo como o cartel ou um grande, tende a uma certa recuperação do universal.
Sabe-se que Bion e alguns outros propuseram pequenos grupos que funcionavam mais ou menos autonomamente, em uma formação mínima para uma situação de desespero do Um, se posso dizer assim. Desta forma, alguém na Inglaterra disse “não!” à fatalidade de que quando o general desaparece as tropas gritam “salve-se quem puder”. É possível no declínio, na falta do general, em uma certa desmoralização do Um, formarem-se grupos relativamente autônomos que mantêm a dignidade do social. Esse é o elogio que Lacan faz aos ingleses. Eles foram capazes de manter a dignidade do social numa situação totalmente adversa.
Poderíamos dizer que, nesse texto de Lacan, há um elogio à iniciativa de formar grupos quando existe uma falha no S1 (um de seus termos para formalizar a função do líder). Digamos que o S1 como chefia estava fraco, uma vez que a Inglaterra estava numa situação de derrota militar até aquele momento. O S1 não podia ser representado fisicamente. Talvez um pouco mais tarde, com Churchill e outros, teremos os grandes homens que vão inicialmente levantar os países derrotados e em seguida reconstruir a Europa no pós-guerra. Há uma lógica nesse movimento que foi a maneira encontrada pelos ingleses de manterem uma consistência horizontal, sem necessariamente fazerem o apelo ao Um muito consistente, fisicamente, na figura do chefe. Os pequenos grupos de Bion são uma invenção democrática: isto quer dizer, precisamente, no contexto da guerra na Europa, que era preciso se pensar a lei sem que tenha necessariamente o corpo de um chefe.
Pequenos grupos
Grupo tem mais de uma direção, mais de um caminho. Podemos pensar os grupos a partir das terapias grupais que, sem dúvida, tiveram sua origem ligada aos fenômenos da sociedade de massa. A criação das terapias grupais tem a ver com o extraordinário avanço democrático das massas, ou seja, a chegada das massas a um grau inédito na história, tanto na política, ou seja, democracia pura e simples, quanto na economia – para citar um exemplo, o consumo de massas. Então, essa espécie de massificação, que caracteriza a nossa democracia contemporânea de uma forma sem precedentes, parece ter alguma ligação com a idéia de que, primeiramente, é possível terapeutizar os grupos e, em segundo lugar, é interessante terapeutizá-los dentro de uma ideologia muito próxima do “time is money”.Haveria certos tipos de vantagens em abranger um grande número de pessoas em um menor espaço de tempo. Digamos que é a versão capitalista da idéia de que os grupos são terapeutizáveis, ou seja, são sujeitos ao tratamento terapêutico como grupos.
Temos de um lado as terapias de grupos, e, de outro, as formas de organização coletivas características da época do Outro que não existe. Atualmente temos, como tendência, – que não é isolada do fenômeno democrático de massas que caracteriza o Ocidente hoje, e não só ele –, formas de organização, de agrupamento, que não existiam anteriormente. Neste sentido, o comunitarismo é uma tendência contemporânea de formação de identidades a partir do pertencimento a uma comunidade cujos membros se reconhecem entre eles e estão também do lado dos outros grupos numa certa estruturação. Essa tendência atual talvez exigisse de Freud uma reformulação da idéia que ele tinha do narcisismo das pequenas diferenças. Talvez a fronteira que Freud traçou não fosse exatamente a mesma de hoje, dado que o que constitui de certa forma a lógica do texto em 1921, “Psicologia coletiva (ou dos grupos) e análise do eu” é essa espécie de agrupamento circundado por uma membrana que faz fronteira com o mundo absolutamente exterior. Podemos ver no comunitarismo que há uma espécie de interpenetração de várias comunidades, de forma que, quando se trabalha, pertence-se a uma, quando se está em casa, pertence-se a outra, quando se estuda, pertence-se a uma terceira. Existe uma espécie de interpenetração que é diferente do que Freud dizia, por exemplo, do português que se opõe ao espanhol de tal maneira que é sendo oposto ao espanhol que ele se define como português. Esse é um dos exemplos que Freud usa quando trabalha o narcisismo das pequenas diferenças. Aliás, no escrito “A psicanálise e seu ensino“, Lacan diz que o que Freud chama de narcisismo das pequenas diferenças, deveria se chamar de “terrorismo conformista”.
Em relação aos grupos há, portanto, essas duas direções que são típicas de nossa época: a tendência à multiplicação de terapias grupais a partir da idéia de que um grupo como tal pode se submeter a uma terapia; e, do outro lado, o avanço das novas formas de organização coletiva que são bem próprias da nossa época. Os exemplos dessas novas formas são o comunitarismo, as novas formas de seitas, que são bem diferentes das seitas trabalhadas por Ernst Troeltsch e Max Weber no final do século XIX. Max Weber se aproxima um pouco do que Freud pensava no narcisismo das pequenas diferenças, no sentido em que ele tratou do que hoje nem se chamaria de seita, a Igreja Batista. Weber a tratou como uma metonímia da Igreja, como alguma coisa que se destaca da Igreja. Hoje em dia não seria a única forma de se criar uma seita, há seitas que se organizam ao redor de um chefe ou de um hábito de vida (alimentar, sexual, laboral…) sem relação metonímica com aquilo que seria uma igreja com pretensão universal, como a católica.
Temos, então, o comunitarismo, as seitas e os grupos sintomáticos dos quais o Orkut e a internet estão cheios, neste não se precisa de sintomas sérios. “Eu odeio Galvão Bueno” poderia ser um grupo sintomático. As pessoas se reúnem em torno do ódio a Galvão Bueno, ou “Eu amo Galvão Bueno”. É uma certa organização a partir de um traço, é isso que é característico da dispersão democrática da nossa época. É possível fazer agrupamentos a partir de traços bastante discretos e isso, não obstante, constituiu um grupo perfeitamente bem formado, que tem uma certa duração e um certo funcionamento.
As terapias grupais seriam o correspondente psi, a resposta psi para os fenômenos de massificação. Seriam o correspondente dos fenômenos de massificação democrática que se encontram, nos dias de hoje, na política, na democracia propriamente dita – capitalista e basicamente ocidental – e na economia. O maior exemplo talvez seja a estrutura do consumo. Na produção poderíamos achar outra coisa, mas no consumo me parece mais evidente. Não é somente por ironia que digo que as terapias grupais correspondem a um certo uso do “time is money”: elas são uma espécie de otimização que somente é possível de ser pensada se tratarmos o tempo como mercadoria. Se quisermos nos aprofundar nisso, podemos estudar as grandes teorias do final do século XIX que lidam com a administração. O taylorismo e o fordismo no século XX, por exemplo, demonstram como é que se otimiza a produção dando um novo tratamento ao tempo. O tempo passa a ser um elemento concreto na produção da mercadoria, a tal ponto que se torna ele próprio uma mercadoria: este é o sentido mais apropriado da expressão “time is money”. Não quer dizer apenas que não podemos perder tempo, mas também que o tempo, como tal, pode ser tratado como mercadoria. Ele pode ser mensurado, quantificado como qualquer mercadoria. E o tempo tem uma moeda padrão a ser definida.
Do “time is money” ao Realismo de Combate
O texto de Laurent “O real e o grupo“, discute algo interessante para nós. A partir de um comentário do texto de 1946, de Lacan, “A psiquiatria inglesa e a guerra“, Laurent se detém um pouco no realismo em que Lacan se situa, pois ele se situa numa posição realista. Essa posição exigia, na época, uma certa coragem já que o realismo – Laurent explica – era o argumento dos colaboradores do nazi-fascismo. De modo que Lacan, se filiando ao realismo, exige ser bem entendido, numa época em que as feridas ainda estavam abertas, pois havia um ano que a guerra havia terminado.
“Realismo de combate” é a expressão que Éric Laurent usa. Será que poderíamos aproveitar essa expressão? Por exemplo: realismo de combate poderia inspirar alguém do Digaí-Maré a defender a idéia de trabalho em grupo. Como se faz uma terapia ou um tratamento clínico em grupo sem que seja simplesmente sob a estrita forma do “time is money”? Esta seria uma maneira de trabalhar dentro de uma perspectiva lacaniana, dentro do realismo de combate proposto por Lacan em 1946. E combate requer um inimigo – o que, aliás, caracteriza o texto de Bion, que será comentado posteriormente.
O realismo de combate supõe uma falência das grandes utopias. Diante de uma grande utopia, você não precisa ser realista. Aliás, quanto mais se é realista, pior. O realismo de combate se torna necessário se você está fora das grandes utopias universalizantes. O realismo de combate é alguma coisa que, como se diz do diabo, está nos detalhes. O realismo implica um certo pragmatismo, um certo julgamento detalhe por detalhe, diferente da justificativa universal de uma grande utopia. Por exemplo: tudo que eu faço serve ao socialismo, ou tudo que eu faço serve à raça branca. Trata-se de uma grande justificativa ideológica, universal, que pode ser aplicada a qualquer comportamento. A grande utopia não precisa desse tratamento de detalhe, que vigora justamente quando faltam grandes princípios e orientação universais. A Inglaterra estava arrebentada, estava se reorganizando para poder fazer o último esforço de guerra que a levaria à vitória. Assim, aos psiquiatras e psicanalistas ingleses – Bion e Richmann, por exemplo – só foi possível propor uma reação a partir justamente da descentralização. Não necessariamente por um gosto democrático, o que os aproximaria das utopias, mas pelo simples fato de que o Outro não respondia. Há um significante mestre que não responde, como os nossos atuais telefones: o número chamado não responde, pode deixar a sua mensagem na caixa postal.
Não é à toa, observa Laurent, que Lacan associa realismo ao heroísmo. O realismo é algo às vezes pejorativo – se, por exemplo, digo que fulano é realista, isso pode significar que ele é oportunista, que ele topa qualquer negócio, bastando que tenha algum ganho. Contrariamente a essa idéia, Lacan associa o realismo ao heroísmo. Ser realista, nessa época, era uma forma de heroísmo no sentido de que era uma proposição que visava provocar efeitos numa situação em que as iniciativas tinham que ser dispersas. Pode-se ver o nascedouro mais remoto da idéia do cartel. A idéia de que é possível uma produção interessante para um grande coletivo – para a Inglaterra ou para a Escola – a partir de um trabalho disperso e plural, pois um cartel não tem nada a ver com outro; eles podem, no mesmo momento, discutir assuntos bastante diferentes. É possível que essa falência dos grandes ideais seja provisória, mas, enfim, é uma crise dos nossos tempos, que já existia na época da Segunda Guerra Mundial.
Estou tentando margear o texto “O real e o grupo” de Éric Laurent. Diante de alguma dificuldade nos significantes mestres, de uma certa crise no Outro, no Outro universal – crise religiosa, política, democrática, econômica… enfim, uma crise nas grandes unidades –, há muitas maneiras de se criarem respostas múltiplas e diversas. A resposta de Bion e Richmann, e do cartel de Lacan, são exemplos, mas podemos pensar igualmente nas terapias grupais e no princípio do “time is money“, podemos pensar na ideologia democrática do “são todos iguais”. “São todos iguais” é uma maneira de se retomar o universal. A discussão de Lacan é precisamente essa: qual é a alternativa democrática ao “são todos iguais” que é o nosso correspondente do “time is money” e das terapias grupais fundadas na otimização do tempo e da produção? Essa me parece que está nos fundamentos do trabalho de Lacan de 1946 e também, claro, no trabalho do próprio Bion.
Será que é possível pensar em pequenos grupos que teriam a tarefa de preservar singularidades? Esta indagação interessou a Bion, e sem dúvida terá ocorrido também a Lacan. Será que é possível uma alternativa em que a singularidade, mesmo sintomática, possa ser preservada? Essa é uma pergunta que o “time is money” como princípio não tem condições de responder. Então se vê que Lacan insiste na importância dessa proposta e dessa prática de Bion que não interessaria somente à saúde mental ou à psicanálise, mas a toda a sociedade, como diz Lacan no texto de 1946. Isso é discrepante com a ideologia das terapias em grupo que visam o universal.
Podemos dividir aí estratégias clínicas de grupo. Podemos pensar nessa estratégia bem própria do “time is money”, da otimização e do aumento do número de pessoas atendidas num menor período de tempo possível, sendo uma espécie de correspondente psi do taylorismo, do fordismo e das grandes teorias da gestão industrial no Ocidente.
Voltemos à idéia de que o grupo em si é multiforme. Existe mais de uma maneira de pensarmos para que serve, como estruturar, em quê medida é justo e é útil o funcionamento em grupos. Isso interessa ao Digaí-Maré intimamente, inclusive para seu próprio funcionamento. A partir disso, poderíamos distinguir as terapias grupais do “time is money”, isso é, uma otimização democrática do uso do tempo, de um manejo de grupos no qual não se tenha que abrir mão do que caracteriza o sujeito propriamente: a sua singularidade, que não é a mesma coisa que individualidade – sobre o que Lacan insiste desde sempre.
Dá para entender essa dupla porta de saída? Terapias grupais “time is money“, de um lado, e, do outro, experiências clínicas em grupo a partir da insistência na singularidade. A idéia de produtividade é completamente diferente. Nas teorias grupais do “time is money” trata-se de uma espécie de taylorismo, de fordismo, das grandes teorias da gestão capitalista. Foi feito para isso, não é culpa de ninguém. Então, a pergunta de Lacan que é também a nossa, e do Digaí-Maré, é se é possível o acesso clínico dos grupos sem que seja através de uma espécie de otimização da produção.
Esse panorama geral faz com que a discussão se dê no seguinte plano: há uma clínica de grupos que não se pauta pelo universal. Há algumas décadas isso seria uma contradição em termos. Com Lacan isso talvez não seja uma contradição em termos. É por esse motivo que, quando se fala em grupos, é necessário dizer sobre o quê se está falando.
A “impotência neurótica” de BionO texto de Bion sobre as tensões internas tem um ponto que me interessou muito. Trata-se de uma frase que se encontra na apresentação, na segunda divisão do texto. Ele está falando dos grupos que vai formar: “Sem dúvida era preciso prever que algumas das atividades organizadas nesse espaço fossem militares, outras civis”. Parece existir uma espécie de dramatização desses grupos, uma espécie de reprodução em miniatura do funcionamento do mundo. Mas o que mais me interessou vem agora: “Atividades militares, atividades civis e outras ainda que fossem a expressão da impotência neurótica dos doentes”. O que caracterizava os grupos de Bion, portanto, era a proposta de atividades precisas que se subdividiam em:
1. atividades militares
2. atividades civis
3. atividades neuróticas (Risos)
Não é interessante? Vocês riem porque as atividades neuróticas, em geral, não estão no mesmo plano das civis ou militares. O mundo não se divide entre militares, civis e neuróticos, justamente porque há neuróticos que são militares e outros que são civis. Então, não se pode dividir essas atividades em três categorias, sendo que uma das quais é completamente diferente das duas outras. Se aqueles que são militares deixam de ser civis, não é por isso que deixarão de ser neuróticos. Vê-se que há uma ruptura, há algo discrepante. O que me pareceu mais genial foi a idéia de propor três tipos de atividades onde uma não tem nada a ver com as outras duas. A impotência neurótica dos doentes não diz nada sobre as forças armadas e nem sobre a sociedade civil. E, no entanto, Bion escreve como três tipos de atividades propostas para os pequenos grupos. Parece que a pedra de toque, o traço genial desses pequenos grupos foi, por um lado, fazer um grupo como o mundo inteiro, entre militares e civis, no plano das atividades, mas incluindo, por outro, no coração dos grupos, a dimensão sintomática. Se você inclui dentro dos grupos a dimensão sintomática, ao que tudo indica, você rompe com o “time is money”.
Já não se pode dizer que o mundo é composto universalmente de militares e civis, porque há uma dimensão que descompleta esse universal e que se chama “os neuróticos”. Não é uma beleza? Bion pensou nisso de tal maneira que o universal não precisava dos neuróticos, o mundo de fato se divide em militares e civis. Há aí uma espécie de paradoxo que ele inventou e que é muito bonito. A gente diz que todo mundo que não é militar é civil. Neste ponto ele diz que não, não é verdade: existem as atividades civis, as atividades militares, e existe além delas uma fonte de ruptura dessa complementariedade, que se chama o sintoma. É a partir disso que Bion pode propor atividades que não negam os rateios, as dificuldades, os tropeços da neurose, porque há atividades propriamente neuróticas, para os militares e para os civis.
Parece-me que no texto de Bion já existe uma idéia de como um grupo que tende ao universal pode ser descompletado. E o que é o universal? O universal da humanidade é o somatório dos militares e civis: os que não são militares são civis. Somando-os, temos a humanidade. Não há ninguém que não seja nem militar nem civil, porém são descompletados pela dimensão sintomática. Este é o traço que permite que um pequeno grupo não seja universal. Deve-se lembrar que o fato de o grupo ser pequeno não quer dizer que não seja universal. O fato de ter uma dimensão que descompleta o somatório é o que assegura que não seja universal. A dimensão sintomática racha com a inteireza do somatório de militares e civis.
Podemos ver que essas atividades baseadas na impotência neurótica dos doentes se espalham. Podemos ter uma atividade neurótica na ordem unida dos quartéis, ou na tarefa de cozinhar ou fazer um memorando, ou qualquer coisa assim. Essa divisão, ainda que talvez não seja nisso que Bion estivesse pensando diretamente, está inteiramente de acordo com o que podemos chamar de “sociologia lacaniana”. A “sociologia lacaniana” possui um elemento que descompleta o universal, daí a Escola, o cartel, o passe e etc.
RegulamentosHavia um regulamento preciso, afinal esses grupos eram feitos para militares, porém há um fundo irônico porque cada ordem, cada exigência do regulamento, é furada. O regulamento seguinte foi comunicado aos cem homens que compunham o serviço:
1. Todos os homens são obrigados a fazer uma hora de exercício físico por dia, salvo se apresentarem um certificado médico (os itálicos são meus);
2. Todos os homens devem aderir a uma ou a várias das seguintes atividades:]
– trabalhos manuais; cursos de correspondência organizados pelo Exército; marcenaria; cartografia; construção de maquetes etc…
3. É permitido a cada homem formar um novo grupo, seja porque não existe ainda o tipo de atividade que ele deseja, seja porque, por uma razão qualquer, é impossível para ele aderir a um dos grupos já existentes.
4. Todo homem que não se sinta em condições de assistir as reuniões do seu grupo deve se dirigir à sala de repouso.
É um texto irônico, e Lacan foi sensível a esta dimensão. Podemos observar que a redação de Bion é muito esclarecida. Ele usa essa articulação dos três tipos de atividades fazendo com que a dimensão neurótica dos soldados seja levada em consideração na própria distribuição das tarefas. O regulamento já inclui a impotência neurótica: você é obrigado a isso, salvo se não quiser ou não puder (Risos).
Se o Outro universal não responde, qual é o risco que correm os sujeitos? É de que os imperativos sejam superegóicos, sejam puros imperativos de gozo. Esse é o sintoma da falência do Outro, ou dos significantes mestres, dos princípios universais. A correção: se Deus não existe, nada é permitido, e não tudo é permitido. Lacan discute essa afirmação. Se nada é permitido, significa que tudo será feito a partir do imperativo do supereu. A ironia bioniana, o realismo de combate em termos lacanianos, é uma maneira de ir contra o império do supereu, que é a alternativa aos significantes mestres quando estes estão em falência. Podemos observar isso nas guerras, em pequenos e grandes grupos.
Reintroduzir a dimensão sintomática nessa grande divisão da humanidade entre civis e militares significa combater o supereu como imperativo de gozo, como um “goza!” sem sentido. Este é o imperativo superegóico no momento em que o Outro não responde, ou seja, quando uma utopia universal não responde. O primeiro efeito disso é o império do supereu como objeto. Se vocês lerem “A banalidade do mal” de Hannah Arendt, quando ela descreve Adolf Eichmann, terão exatamente a idéia do que significa o supereu como legislação, e vão lembrar que Lacan definiu certa vez o supereu como “lei insensata”.
Continuando com Bion:
5. A sala de repouso ficará a cargo de um enfermeiro militar e deverá ser mantida tranqüila para a leitura, a escrita ou jogos silenciosos como o jogo de damas.
6. O enfermeiro poderá autorizar conversas em voz baixa sob a condição de que os outros doentes não sejam incomodados.
7. Os doentes excessivamente cansados para se dedicarem a alguma atividade encontrarão espreguiçadeiras onde poderão se deitar.
Todas as frases carregam uma espécie de remodelação na linha seguinte. Bion começa com a pura obrigatoriedade militar do ‘para todos’ e de repente cada universal tem uma modulação que é a introdução da dimensão neurótica no regulamento militar. Fiquei realmente encantado com esse texto, justamente com a idéia de que um pequeno grupo deve introduzir, em sua própria legalidade, a dimensão sintomática. É isso que evita que a alternativa dada à falência do Outro seja o império superegóico, o domínio do imperativo do gozo, o supereu na sua dimensão de objeto.
É possível entender essa dimensão ou essa forma de organização que estou chamando de irônica como um combate pela civilização. Nos grupos de Bion, e certamente na estrutura que Lacan vai pensar vinte anos depois para a Escola, existe a idéia de que há uma estrutura de combate, para usar o termo de Laurent. Há algo de militar, introduzindo o que há de impotência neurótica dos doentes.
Vejam uma frase forte de Laurent que tem tudo a ver com isso: “Se a psicanálise é apresentada na sua dimensão de eficácia social, – como algo eficaz socialmente -, é na medida em que ela é instrumento de luta contra a morte, a morte que está em processo na civilização”. Podemos fazer uma linha que vai do grupo de Bion até o Digaí-Maré, no sentido de que se propõe uma alternativa contra a morte na e da civilização. Parece algo meio grandioso, mas é como o diabo, é no detalhe que está a chave.
Da Escola de Lacan
Laurent propõe uma aproximação essencial entre os grupos de Bion e o “cartel”. O cartel é um pequeno grupo de trabalho, sem líder, voltado sobretudo para o estudo e elaboração de textos, mas igualmente para realização de pequenas tarefas que Lacan , coloca na base da instituição criada por ele, a Escola. Se é verdade que os pequenos grupos de Bion são ancestrais do cartel lacaniano, pode-se dizer que a Escola de Lacan descende do cartel.
Deste ponto de vista, o “Ato de fundação da Escola Freudiana de Paris”, de 1964, em que Lacan define o cartel, é um texto canônico, pois é a conseqüência, a formalização institucional, do que talvez tenha começado como uma intuição na visita de Lacan à Inglaterra. A forma grupal proposta por Lacan com o termo Escola seria o desdobramento institucional da idéia de que é possível haver grupos relativamente autônomos que possam trabalhar para um Um que não precisa necessariamente ser corporificado.
O inovador na proposta de vocês do Digaí parte deste ponto. Vocês buscam o outro lado deste desdobramento, o lado clínico do tema do pequeno grupo, a partir do cartel.
Se a primeira perna da Escola é o cartel, a outra é o passe. É mais uma experiência criada por Lacan para ver como readmitir uma exterioridade. Uma análise que se faz na confidência, como pode ela retornar ou se dirigir ao coletivo? É uma pergunta difícil, que só pode ser respondida um a um. Não se pode fazer uma regra geral para esse retorno. É por isso que a transmissão dos passes se dá sob a forma de testemunhos. Testemunho quer dizer: aquilo que eu disse e que ninguém nunca vai dizer igual.
A orientação lacaniana e o passe servirão para isso, servirão para que alguém consiga ter uma função na Escola evitando as cisões entre os grupos.
Para que o funcionamento do grupo seja possível sem a referência direta ao Um sob a forma de um corpo, é preciso que o grupo tenha um ponto de fuga, que mostra sua precariedade. O que Lacan aprendeu com os grupos ingleses vai funcionar nos cartéis e vai funcionar no passe. Quem vai dar o seu testemunho no passe é ao mesmo tempo um sujeito que vai falar da sua análise a partir de um ponto externo – muito do que terá a dizer não é “coletivizável” -, e ao mesmo tempo se endereça ao coletivo e em parte foi até inspirado pelo coletivo.
O passe e os cartéis, pelo menos idealmente, são uma forma de tratamento permanente da Escola, se tenho razão em pensar que são duas subestruturas lacanianas que levam em conta um ponto de fuga que não é o bode expiatório. Uma forma de tratamento da Escola, no sentido de que a Escola somente subsiste, como se dizia na minha geração, como luta permanente.
A Escola quer ser mais do que uma instituição de formação de psicanalistas. Nela está contida uma crítica ativa, prática e teórica ao funcionamento social como tal. A Escola é um comentário vivo sobre a democracia, se posso me exprimir assim; é uma instituição que exige a democracia, por ser logicamente posterior ao assassinato do Pai, porém sem se iludir com a igualdade dos irmãos na lógica de Totem e Tabu. A Escola é posterior ao assassinato do pai, sem que com isto signifique a igualdade dos irmãos e o puro domínio da justiça distributiva, que, como vocês sabem, é uma coisa da qual Lacan vai falar criticamente. É uma proposta político-institucional que se coloca num patamar acima do clã fraterno de Totem e Tabu, sem a ilusão de que a família seja um paraíso.
E por que a família não é um paraíso? É porque o coletivo dos irmãos depende da criação de um bode-expiatório. Eu gosto dos meus irmãos se nós dois juntos nos unirmos contra um terceiro. Nós somos três amigos; um vai pra casa e os outros dois ficam falando mal daquele que saiu. A relação entre esses dois depende de criticar o terceiro, que no entanto todos amam. E se amanhã falo com esse terceiro, “pau” no segundo. Isso é uma lógica que faz com que um coletivo somente subsista se tem um ponto de exterioridade, o que é de fundamental importância. O ponto de exterioridade, por exemplo, de Hitler, eram os judeus. “O Ocidente está ameaçado pelos judeus”: não pelos judeus propriamente, mas pelos judeus do delírio de Hitler, que se teriam apossado de todo o saber e de todo o dinheiro, e estão ameaçando a existência do povo alemão: que sejam exterminados, então. A lógica implacável será: mortos os judeus, teremos que matar os alemães. Esta lógica não pára, ela devora os próprios filhos, como dizia Trotsky da revolução.
A Escola não é natural. Natural é o grupo com liderança. A Escola é um efeito de interpretação, enquanto que o grupo é natural. E às vezes a interpretação precisa ser feita várias vezes. Será que não era isso o que estava atrás da proposta do Miller em Turim quando falou da Escola como sujeito? A Escola como sujeito é aquela capaz de fazer sintoma dos seus pontos de exterioridade. É aquela capaz de oferecer um sintoma às suas alteridades.
* Este texto resulta de uma edição realizada por Marcus André Vieira de duas conferências apresentadas para o coletivo de trabalho do Digaí-Maré nos dias 29 de março e 17 de maio de 2007 (transcrição: Leandro Reis e revisão: Tatiane Grova). Agradecemos a Romildo por ter gentilmente aceito que inúmeros desenvolvimentos tenham sido deixados de lado neste texto em prol da concisão.
[1] As referências para o que segue são: LAURENT, E. Lo real y el grupo. In: CUCAGNA, A. R.. Ecos y matices en psicoanalisis aplicado. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2005. O estudo pelo grupo de suas tensões internas” BION, W.R. Experiências com grupos: os fundamentos da psicoterapia de grupo. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1970. Apresentação: Tensões intragrupais na terapêutica, p.3-18., onde Bion explica a montagem dos pequenos grupos no exército. “A psiquiatria inglesa e a guerra“, publicado em 1947 (Ref.: LACAN, J. A psiquiatria inglesa e a guerra. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.) Vamos nos apoiar nessas referências, além da “Psicologia de grupo e análise do eu” de 1921. Finalmente, há a Proposição de 1967, em que Lacan propõe que o termo Massen, que faz parte do título do texto de Freud, seja traduzido – naquela época, ou seja, final dos anos 60 e início da década de 70 – como grupo, de modo que ficaria: “Psicologia dos grupos e análise do eu”.
O sentido e os seus dejetos
“… a fantasia da Amazon é ter certeza de que a falta será saturada por um objeto do mercado global, que estará tão acessível a todo momento, quanto o saber na internet”[1].
I
Talvez a expressão mais usual para definir a função do analista, pelo menos no nosso meio, seja a de objeto, ou de “semblante de objeto”. O analista faz semblante de objeto.
Ou seja, o analista é aquele cuja presença torna possível que surja em cena, ou na cultura, o objeto, mas de certa forma transformado pela vestimenta do semblante. Penso que essa função de semblante atinge, aliás, não somente o objeto, mas também outras funções que se manifestam em uma análise, como de Outro, ou mesmo de sujeito.
Existe, como se pode ver, uma certa tensão na expressão, entre o objeto, – o objeto desnudo, digamos assim, mesmo que seja hipotético -, e seu caráter de semblante. Esta tensão pode, naturalmente, se manifestar com uma coloração afetiva, como nos mostrou nossa colega argentina Silvia Salman há alguns anos, no seu testemunho de passe.
Silvia defrontou-se, já para o final da sua análise, com um objeto, no caso representado pelo analista, que parece corresponder a esse súbito desnudamento: ela lhe deu o nome de “objeto estranho”, denominação oportuna, meio à la E.T.A. Hoffmann, que insere esse objeto na categoria freudiana do Unheimlich, traduzido em português por infamiliar. É um objeto que surge, não de uma acumulação progressiva de experiências, mas de repente, como na situação contada no texto freudiano, do senhor que irrita Freud ao irromper na cabine do trem onde Freud se encontrava, e que, após alguns segundos, é reconhecido como sendo ele próprio, Freud, cuja imagem lhe fora devolvida por um espelho[2].
II
A língua, assim como as experiências científicas, as relações sociais, ou mesmo uma escolha qualquer feita por alguém, têm algo em comum: todas produzem dejetos, entendidos aqui como seus resíduos finais, depois de cumpridos seus processos de produção.
Quando perguntamos, portanto, de onde vem tal vocábulo, e citamos tal termo grego ou latino, talvez tenhamos a impressão de que se trata de um processo direto, ou evidente. Na verdade, as palavras se formam ao longo de uma história tortuosa, cheia de encontros surpreendentes e de mudanças nos seus significados, o que faz com que nunca possamos ter, na prática, uma certeza absoluta de que tal palavra da nossa língua se origina realmente ou completamente de tal vocábulo latino ou grego, por mais que se pareçam formalmente. Ou então, uma palavra antiga, primitiva, pode ter dado origem a um conjunto extenso de outras palavras, que aparentemente não têm nenhuma relação semântica entre elas. Basta pensar no verbo latino fari, que, além de significar falar na nossa língua, deu origem a outras palavras que são distantes do sentido original: infante, nefasto, e tantos outros.
As palavras, assim como a própria língua no seu conjunto, estão sempre em movimento ao longo do tempo, e vão deixando restos que não são aproveitados explicitamente na produção do sentido. Ou até mesmo conduzem para um sentido oposto ao original. Lembro que na primeira leitura que fiz do Unheimlich freudiano, o que mais me impressionou foi o fato de duas palavras opostas, que em princípio deveriam excluir-se, pudessem significar a mesma coisa: heimlich e unheimlich.
O sentido, portanto, não recobre inteiramente a palavra. A rigor, ele é apenas um dos seus aspectos. Se recobrisse, não existiriam, para citar só dois exemplos, estas importantes produções da língua: a poesia e a ironia, que são maneiras de fazer vacilar a estreiteza do sentido. Em consequência, tampouco haveria o diálogo psicanalítico, que se dá em um espaço no qual se confrontam em permanência o sentido e os seus dejetos.
Em seu texto que chamou de A salvação pelos dejetos, Jacques-Alain Miller nos explica:
“…a descoberta freudiana (…) foi, como se sabe, primeiramente, a desses dejetos da vida psíquica, os dejetos do mental que são o sonho, o lapso, o ato falho e mais além, o sintoma”[3].
E, mais para o final do artigo, Miller define o analista de uma forma que me parece definitiva:
“O que os salva (…) é ter tido êxito em fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso”[4].
Esse novo discurso, chamado por Lacan de discurso do analista, é a maneira de tornar possível um laço social que inclua o dejeto.
Se Miller diz que o analista teve êxito nessa operação de “fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso”, é porque outros, sabendo ou não, fracassaram. Quer dizer, em outros momentos da História, ou mesmo agora, houve e há irrupções do objeto como dejeto da fala. O que há de particular – talvez inédito – no trabalho do analista, é ter incluído essa irrupção em um laço social. Esta é a grande novidade trazida pela psicanálise.
Em outras palavras, o dejeto, se por um lado é incompatível com o sentido, passa a ser, por outro, um componente necessário ao discurso.
Romildo do Rêgo Barros (EBP/AMP)
Presidente do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano
*Trabalho para a reunião preparatória do Encontro Brasileiro em 13/05/2021, em mesa (online) com Marcus André Vieira.
[1] LAURENT É., “Gozar da internet”. Disponível em: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/gozar-internet#:~:text=%C3%89ric%20Laurent%20%E2%80%93%20A%20internet%20transforma,portanto%20a%20todas%20as%20coisas.
[2] FREUD S., “O estranho”. Obras Completas. Vol. XVII, p. 309, Nota 1.
[3] MILLER J.-A., “A salvação pelo dejetos”. Correio. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. N. 67. Dezembro de 2010. p. 19.
[4] Ibid. p. 23.
Tempo, corte e ato: o acontecimento analista
“Repetir repetir – até ficar diferente
Repetir é um dom do estilo”[i].
O manejo que o poeta Manoel de Barros se permite fazer com as palavras nos oferece uma ocasião para apreender a relação do tempo com a invenção. Repetir até ficar diferente, repetir até extrair da repetição um estilo.
Palavras de poeta que nos levam a interrogar a relação do inconsciente com o tempo, nos introduzindo em uma dimensão que pode subvertê-lo e não só deixando-o fixado em um escrito a ser repetido indefinidamente, para prová-lo como necessário incansavelmente.
Nosso eixo de trabalho vai nos permitir interrogar como se entrelaçam o epistêmico, o clínico e o político na presença do analista em nosso tempo. Um tempo de imperativos de gozo imediato, de objetos prêts-à-porter, que dificultam o consentimento com os intervalos, as suspensões, que estejam a serviço não de formas de evitação do real, mas de precipitação ao ato que tenha valor subjetivo.
Convidamos desde já nossos colegas a nos transmitirem em nosso Encontro como experimentam esse entrelaçamento em sua prática no consultório e fora dele.
O tempo subvertido: Freud
A psicanálise foi inventada por Freud a partir do seu encontro com as manifestações corporais das histéricas, fenômenos de uma época que escapavam às explicações e ao controle da ciência. Freud as escutou e se fez presente de forma diferente dos médicos de sua época. Ele não só as escutou, mas extraiu de sua escuta algo que as re-situava em relação aos fenômenos corporais dos quais padeciam. Freud apostou que as histéricas poderiam dizer algo sobre o que lhes escapava. Ele abriu um lugar de endereçamento para a estranheza que emergia nos lapsos, nos sonhos, nos chistes e assim inventou o inconsciente atemporal que acolhe a repetição e o leva a buscar na textura histórica o que irrompe como acontecimento. Ele recolhe a incidência traumática dos acontecimentos que vêm à tona nessas manifestações. Um passado que se faz presente.
O tempo subvertido: Lacan
Lacan adere à hipótese do inconsciente freudiano[ii] e à subversão temporal que ela introduz. Ele a coloca a trabalho, introduzindo novos elementos para ler o que no presente permanece vivo das marcas deixadas por acontecimentos passados. “Algo comparável a um escrito que é condição da fala e não sua versão acabada. Um ‘desde sempre’, ao invés de um ‘para sempre’”[iii]. O desdobrar linear dos acontecimentos é subvertido pela dimensão do a-posteriori, da retroação e será possível tirar novas consequências dessa reversão temporal. Ao interrogar, ao longo de seu ensino, esse “já escrito”, surge a necessidade lógica da invenção do objeto a que vai incidir na forma de estar presente e de escutar seus pacientes. O manejo do tempo da sessão ganha um lugar decisivo na operação analítica.
O sujeito-suposto-saber em questão
Articulado ao analista como objeto a, Lacan estabelece o matema da transferência a partir do sujeito-suposto-saber, estabelecendo uma “nova aliança entre o tempo e o inconsciente”[iv], que terá consequências no manejo do tempo na sessão e na relação com o saber[v]. Para dar esse passo, Lacan considerou o que se passava no avesso da suposição e foi buscar no tempo lógico a presença do tempo libidinal.
O movimento de retroação temporal que se produz numa análise vai visar na textura dos significantes que emergem e se escrevem no “quadro do saber” [vi]o furo produzido por sua incidência traumática. E a sessão analítica vai ser regida não pelo relógio, fator externo ao que se passa nela, mas pelo que ali acontece.
O analista não se reduzirá a fazer parte do conceito do inconsciente como lugar de endereçamento[vii]. A sua presença incidirá de forma viva no corte e na interpretação em ato. A sessão, portanto, não se orienta pelo tempo em sua duração, mas pelo instante em que fulgura o estava escrito, quando ele se apresenta e se presentifica, pois o inconsciente ganha uma dimensão de separação quando se localiza o objeto em jogo no “já escrito”.
Será na estrutura de mal-entendido, de engano, própria do sujeito suposto saber[viii], que Lacan vai encontrar a possibilidade da emergência do ato do analista. Só quando se consente com o S(A barrado), a falha estrutural no Outro, impossível de anular ou de preencher, é que o ato se dá em sua dimensão de certeza.
No apólogo dos três prisioneiros, o ato de saída da prisão só se torna possível, quando se corre o risco. No a posteriori das escansões, no movimento de uma parada e um partir de novo, que leva à certeza antecipada. Os três tempos lógicos que Lacan extrai desse apólogo: instante de ver, tempo para compreender, momento de concluir, trazem à tona que o que se tem para compreender só leva à saída se permitir uma conclusão enviesada (de travers)[ix]. O tempo para compreender toma outra dimensão a partir do corte e da interpretação que toca na equivocidade da palavra[x]. Não é uma compreensão sem limite na duração da sessão, mas uma compreensão que leva em conta o que faz corte.
O encontro do sujeito com a linguagem produz efeitos no corpo que ficam inscritos como excesso e como furo. Lacan pôde destacar do traumatismo (troumatisme), o furo (trou), naquilo que se produziu como excesso no gozo sem sentido que se experimentou. No movimento de retroação temporal que a experiência do inconsciente em uma análise provoca no encontro com um analista, algo pode acontecer que abre, perfura o excesso que ali se instalou, faz aparecer o vazio.
Nossa questão é de saber como fazer do entrave que representa o sintoma, um modo de circunscrever o vazio, que possa extrair do gozo sua dimensão mortífera, mortificante.
A presença do analista, para tanto, parece crucial para que isso possa acontecer: em uma sessão de análise, uma paciente conta sobre suas crises de pânico em que sente seu corpo fugir. Sem nenhum acontecimento extraordinário que desencadeasse tais crises, fala de seu “jeito” de estar com o Outro, sempre atravessada por um vai-e-vem de preocupações em que ressalta uma grande necessidade de agradar. É quando nomeia esse seu jeito como “agradador”. A analista repete a palavra e, em seguida, corta a sessão ouvindo, da paciente, os ecos da surpresa de uma palavra que nem sequer existe, mas que, no entanto, diz. O analista como corte circunscreve, no que ouve, um dizer que se lê de outra maneira. No “agradador” há um gozo do sintoma que toca o corpo. O corte é sempre uma aposta, ato analítico que visa o gozo alojado na materialidade (moterialité) significante.
O que perfura já estava lá, embora encoberto, a letra no significante, que dá ao objeto a de Lacan um novo lugar, o de inscrever um vazio através do qual podem se enlaçar os registros simbólico, imaginário e real para sustentar o sinthoma. O furo que a letra inscreve no significante abre para um novo saber fazer com o sintoma, dando a ele a chance de funcionar não como entrave, mas como modo de proporcionar uma nova satisfação. Anna Aromi, em seu relato de passe diz:
“O fim de minha análise me permitiu descobrir as letras com as quais minha fantasia foi escrita. Não somente eu pude lê-las – o que já é muito -, mais ainda me servir delas para re-escrever alguma coisa de diferente. A análise, nesse sentido, é como uma re-escrita”[xi].
E ela acrescenta: “A alegria do passe é uma alegria advertida do que não está escrito para sempre, mas a re-escrever constantemente”[xii].
Uma análise é a oferta de um encontro vivo que permite manter aberto o furo que abre a novas escritas, que dá a chance de manejar de forma diferente as letras que marcaram nosso corpo e que tornaram necessária a construção de sintomas, de ficções para tratar o excesso de gozo opaco que elas deixaram.
Uma análise nos ensina que o rodar em círculos da repetição deixa no centro um vazio, que só terá valor de abrir para o novo a partir da operação de corte sustentada pelo analista. Movimento que se desenvolve em espiral[xiii].
Clínica borromeana
O corte faz intervalo não só no que se repete na cadeia significante S1-S2, abrindo para outras leituras, mas por incidir na própria insistência do significante sozinho que não faz cadeia, que J.-A. Miller destacou como reiteração. Em nossa prática contemporânea, essa reiteração fica bem mais evidente. E coloca para o analista uma questão nova: como estar presente, como fazer corte para abrir brechas na insistência de um gozo opaco e sem sentido? O que está em jogo nesses casos não é uma busca de saber, de decifrar o que parece estranho ao sujeito. A demanda vem atravessada por um imperativo de gozo imediato, um mais e mais insaciável. A coragem ética do analista se fará presente em suas invenções para fazer valer pelo corte, intervalos que, em muitos desses casos, se exerce no próprio ir e vir às sessões. E isto torna fundamental a presença do analista com seu corpo em um lugar que provoque um reviramento no tempo e com os cortes possibilitando um novo enodamento entre superfície e tempo[xiv].
Uma vinheta nos ensina sobre os efeitos deste manejo do tempo, ao qual a analista se empresta à forma que a paciente inventou de fazer intervalos e de utilizar mensagens de whatsapp para transmitir suas construções. Ela procura um analista em razão de sucessivos desligamentos do Outro social não conseguindo se fixar ou se envolver no trabalho. Está perdida e imersa em uma multiplicidade de atividades dispersas. Às vezes fala de livros que leu sobre assuntos de seu interesse, mas não faz uso desse saber. Além disso, envia sempre fotos dos seus trabalhos de tecelagem. Após um episódio em que se angustia, suspende o encontro presencial com a analista mantendo só mensagens no whatsapp. A analista, presente como olhar furado, perfura a consistência imaginária e permite uma amarração tecida no manejo do tempo, abrindo intervalos entre o corpo e o pensamento, entre as alternâncias de presença/ausência, entre as dimensões do espaço e do tempo.
O ir e vir serviam de instrumento para a tecelagem que ela ia fazendo por intermédio de sua arte permitindo usá-la em outra função. Com o manejo do tempo a serviço da tecelagem, o analista acontece como presença sutil no tecido das invenções e nos imprevistos ao longo do percurso. Acolher esse tipo de paciente e poder sustentar essa prática como analítica requer tirarmos consequência da clínica borromeana que Lacan nos legou.
Contamos com o que vocês poderão nos transmitir em nosso Encontro do acolhimento em suas práticas de pacientes e de situações que, inclusive, poderiam parecer inaccessíveis à psicanálise, e que, graças à presença viva, em corpo do analista puderam ser tratadas.
A presença real do analista com seu dizer, com seu corpo pode funcionar como testemunha do que se perde[xv]. Esta indicação de Clotilde Leguil é fundamental para pensarmos o analista incluído no conceito do inconsciente[xvi], não apenas como lugar de endereçamento, mas com sua presença viva que contribui para não deixar desaparecer a manifestação contingente do inconsciente e sua função operatória na nossa prática, hoje com as novas demandas motivadas pela urgência de gozo que termina por se transformar em angústia. Quando o imperativo é gozar, o supereu fica solto nas suas exigências, com apoio do que vigora na nossa época. No encontro com um analista, no corpo a corpo da sessão analítica, que implica corte e ato, algo se perde e precisa de uma testemunha, para poder ter efeito de abertura para outra coisa, para algo que possa vir a ser assumido como um estilo, dito pelo poeta, ou como um sintoma, no dizer do analista.
Analista: presente! Como essa afirmativa subverte o empuxo de nossa época a viver o presente, sem passado e sem futuro, que leva a um vale tudo, eliminando a responsabilidade por suas consequências. Em que isso se diferencia do que se indica na frase da canção de Geraldo Vandré, “quem sabe faz a hora não espera acontecer”. Esse saber que faz a hora não é aquele sobre o passado com seu peso de determinismo, nem aquele do futuro como consequência inabalável desse passado. Mas um saber aberto à contingência, tocado pelo imprevisível.
Fiquemos atento às surpresas que a prática do psicanalista nos oferece.
Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros
(EBP/AMP)
[i] Barros, M. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016, p. 16.
[ii] Miller, J.-A. Los usos del lapso. Buenos Aires: Paidós, 2010.
[iii] Barros, R. do R. “Apresentação”. Miller, J.-A. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, p. 7.
[iv] Miller, J.-A. Los usos del lapso. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 14.
[v] Ibid. p. 91-116.
[vi] Lacan, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 254.
[vii] Leguil, C. “Presença do psicanalista como testemunha da perda”. Boletim Punctum Extra. Disponível em: http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/
[viii] Lacan, J. “O engano do sujeito suposto saber”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 339. “Na estrutura do engano do sujeito suposto saber, o psicanalista (mas quem é, e onde fica, quando é – esgotem a lira das categorias, isto é, a indeterminação de seu sujeito – o psicanalista?), o psicanalista, no entanto, tem que encontrar a certeza de seu ato e a hiância (béance) que o constitui”.
[ix] Lacan, J. Seminário Les Non-Dupes Errent. Aula de 09 de abril de 1974. Inédito.
[x] Brousse, M. H. “O equívoco”. Texto apresentado nas Jornadas da ECF, 8-9 de outubro 2011, Práxis lacaniana da psicanálise. “Esse é o princípio que dá ao equívoco seu valor de ferramenta em psicanálise, faz passar da necessidade repetitiva à contingência do possível. Para apreender-se com tal, o equívoco empurra à escrita, arrastão sinthoma até o real e não até o discurso, a um ‘tem sido assim, mas que a um ‘isso quer dizer’”.
[xi] Aromi, A. «Un littoral d’écriture». Mental : revue internationale de psychanalyse, n° 32. Ce qui ne peut se dire, ce qui s’écrit “. Novembro, 2014.
[xii] Ibid.
[xiii] Miller, J.-A. «Os trumains». Lição de 2 de maio de 2007 do curso de J.-A. Miller. A orientação lacaniana. O ultimíssimo Lacan (2006-2007). Versão estabelecida por Pascale Fari e traduzida em português por Vera Avellar Ribeiro. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/20-03-02_los-trumanos.html
[xiv] Lacan, J. Seminário Les non-dupes errent. Aula de 9 de abril de 1974. Inédito.
[xv] Leguil, C. “Presença do psicanalista como testemunha da perda”. Boletim Punctum Extra. Disponível em: http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/
[xvi] Lacan, J. O Seminário, livro 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.