A presença do analista como uma presença pressentida me pareceu uma frase muito interessante, pois não se trata de uma presença pressentida no sentido comum do termo, de uma presença sentida como antecipação, algo que se pressente, um pressentimento, mas uma presença um pouco mais sutil; uma presença que se faz presente, se pressente, está aí, não só no silêncio, mas também pelo dizer que se insinua. Inclusive pelo ritmo e intensidade, são interessantes estas duas figuras. Essa seria uma forma de pensar a presença que traz uma nuance ao que se tinha colocado como da ordem do que irrompe.
Vejamos um fragmento de caso que ensina sobre certa presença do som e da voz.
Trata-se de uma criança muito pequena, com sérias dificuldades de laço, e nas sessões tudo acontecia em silêncio, ela nem percebia minha presença. O silêncio não marcava minha presença; em algumas ocasiões, eu dizia frases tentando nomear o que ela fazia para introduzir a palavra, mas ela não se interessava pelo que eu dizia, ela só se interessou pelos sons que eu emitia em algum momento como: “uhum”, “ok”, “Uhum, “Ahh”, que eram um pouco entre frases. Foi por esta via que o laço se fez possível com esta criança; ela os recortava e repetia depois fazendo variações, brincando com eles.
O tratamento com esta criança foi longo e teve vários momentos, mas este ponto me pareceu muito interessante e até hoje fica como um caso que me ensinou sobre algo da ordem da voz que não é fala, sentido, significação.
Então podemos pensar a voz como um objeto áfono que do dizer pode fazer falar. Colocar a voz como núcleo do que do dizer faz fala é isolar a voz como um objeto, como um resto. Como diz Lacan no Seminário 16, “do calar-se isola-se a voz, núcleo do que do dizer faz a fala”[ii]. Nesta frase, coloca-se a voz como o núcleo do que do dizer faz falar, mas para localizá-la como núcleo é necessário isolá-la.
Nesse sentido, a presença do analista está no calar-se. Não há descontinuidade entre o que se vê e não se vê. No plano sonoro, fica mais complicado o entre o que se ouve e não se ouve.
A criança vai construindo sua moldura nos jogos que faz. Quando ela recorta a voz e a repete, vai fazendo uma moldura. O importante da moldura é que ela se oferece como configuração imaginária que, de certa forma, prevê ou faz barreira à irrupção do real. É o que estamos chamando de objeto, de unheimliche e, no final das contas, da função ou do efeito do analista como ruptura da moldura. Quando falei, da outra vez, da ironia surrealista, se tratava exatamente disso: nada indica que exista alguma coisa por trás do quadro de Magritte. Pode ser mentira, não tem árvore nenhuma, não tem quintal nenhum, não tem nada. O que tem é um quadro pintado, mas você nunca vai saber.
Não podemos pensar se a moldura sonora não seria a reverberação que essa criança faz quando ela recorta? É uma moldura sonora em que ela brinca com esses sons. Essa reverberação tem a função de moldura, de dizer que não há voz do analista e sim o recorte que ela faz e o jogo que ela faz de reverberação.
Colagens
Por um lado, extrair essa voz em sua estranheza, mas para fazer dela trabalho. É ali que fica a questão com a presença do analista: nesta dimensão pressentida de ritmo e intensidade que permita circunscrever esta estranheza.
Isso não estaria na linha do que Lacan coloca no Seminário 16 como “a captura do próprio analista na exploração do objeto a é exatamente o que constitui o ininterpretável. O ininterpretável na análise é a presença do analista”?[iii]
Parece interessante essa colocação por fazer pensar numa presença que se insinua enquanto sustenta o ininterpretável.
Esse ponto de ininterpretável remete ao ato do analista. Como se produz o “entre” que abre a voz à sua dimensão de estranheza? O silêncio neste fundo de continuidade pode ser uma via, mas o importante é a ideia de uma presença pressentida. A presença entre o audível e o inaudível, que não é exatamente uma voz ouvida ou dita, mas pressentida. Do dizer com isso que se insinua nos restos dos dizeres abandonados e no ruído do que se diz. Se separar da presença vocal do outro dos restos dos dizeres que marcaram uma vida.
Diante da pergunta: o que se faz com o que sobra da voz numa análise? Colagens de dizeres ou gambiarras? Colagem e gambiarra seriam da mesma ordem? Colagem vem de colar, da ideia de composição, é um termo que nas artes plásticas dá a ideia de composição elaborada a partir de texturas variadas ou não, superpostas ou não. David Delruelle, artista plástico belga que faz trabalhos muito interessantes, é bem posterior ao surrealismo, mas segue a ideia de colagens. É um artista que anda nas ruas, mercados, livrarias de segunda mão, à procura de livros e revistas antigos para montar suas colagens. Vale a pena vê-las, pois, apesar de terem elementos discordantes, têm uma certa coerência, o humor, às vezes ironia inclusive nos títulos. Dão uma ideia de que colagem não é só colar arbitrariamente, mas compor não sem algo da ordem do humor, o que faz destes restos outra coisa. A gambiarra não remeteria mais ao valor de uso, daí a pertinência em diferenciá-las?
[i] Trechos da minha participação no segundo encontro do Seminário Clínico da EBP-RJ (2019) sobre a presença do analista, coordenado por Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros.
[ii] Lacan, J. Seminário, livro 16: Do Outro ao outro, cap. “Paradoxos do Ato Analítico”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2008, p. 338.
[iii] Idem.