O relatório[1] aborda com rigor e de modo bastante vivo a subversão promovida por Freud e Lacan em relação ao tempo e inconsciente. Dá um passo a mais na direção de abordar a subversão introduzida no percurso de uma análise pelo acontecimento analista.
O texto abre um conjunto de questões que suponho irão emergir durante o debate. Antes de endereçar questões para Rosário e para o cartel, vou destacar alguns pontos para começar uma conversa.
Da leitura do relatório, extrai algumas questões que me tocaram. Começo com Freud, que subverteu a sua época com a invenção do inconsciente, inconsciente que desconhece o tempo e é inferido a partir de suas formações e manifestações clínicas interpretadas à luz do que “já estava escrito”. O tempo passa e o inconsciente permanece com seu automatismo de repetição.
Lacan extrai da repetição freudiana uma nova aliança temporal que não é cronológica, é lógica[2]. A subversão temporal lacaniana promoveu inversões importantes. A inversão de perspectiva do inconsciente como o já escrito para o inconsciente a advir conta com a presença do analista que testemunha um roteiro que leva de volta ao futuro. O lugar da determinação inconsciente cede lugar à contingência, retira o peso do que “estava escrito” no inconsciente como um “para sempre” e promove um deslizamento para um “desde sempre”. Daí a importância da presença do analista e o manejo do tempo da sessão regida pelo tempo lógico.
O manejo do tempo incidindo na superfície que se desdobra na fala, ao ser rompida pelo corte do analista, coloca em relevo o furo encoberto pela manta tecida pelo significante e pelo objeto a em sua função de o bordear. Podemos dizer da importância da presença do analista como corte e ato que ao furar a significação inconsciente que se extrai da construção discursiva relacionada à experiência traumática, redireciona a prática analítica para a dimensão real do gozo sem sentido que se experimentou. O que se visa nas letras que escrevem as marcas da vida não é o sentido, e sim, o que do encontro traumático do significante com o corpo se perde, deixa restos que se inscrevem como furo ou excesso.
O relatório aborda modalidades da presença do analista no percurso de uma análise. Analista se presentificando como corte; interpretação como ato incidindo na equivocidade da palavra; ou na repetição como automaton ou na iteração do UM, liberando algo do real do gozo e redirecionando uma análise da repetição para um tempo de invenção. Destaco ainda o analista se presentificando como surpresa, tempo do acontecimento imprevisível, precipitando por um instante fulgurante a irrupção do real e a abertura a um novo modo de leitura e escrita do inconsciente que não se decifra, mas que toca o sentido real.
O fragmento do passe de Anna Aromi nos dá o testemunho de uma re-leitura do que estava escrito, e de uma re-escrita que tem como efeito uma nova experiência de satisfação.
Destaco ainda um aspecto muito valorizado no relatório que enoda o clínico, epistêmico e o político, ou seja, a responsabilidade ética do analista na prática clínica, na instituição ou na interlocução com a cidade, de sustentar uma presença que introduz pausas, intervalos a cada vez que o tempo da urgência regido pelos imperativos e pela pressa, recusa o tempo do inconsciente e sua escansão.
A perspectiva de algo novo na experiência do inconsciente numa análise atravessa o relatório. A presença do analista, instaura uma nova temporalidade que faz acontecimento e o que é da ordem do acontecimento propriamente dito é tudo aquilo que sai do círculo do possível e necessário. O corte ou interpretação que se torna ato, opera na contramão do princípio do prazer: incidindo na conexão S1 – S2 que tende ao infinito, introduzindo o impossível da não relação. Esse é o sentido preciso que Lacan dá à afinidade do tempo e da contingência.
O analista de antemão não sabe o que vai acontecer na sessão, mas sua função o convoca à uma posição de abertura ao indeterminado, à contingência, que fura a regularidade da sessão analítica, abrindo à surpresa. “A surpresa diz respeito a um momento não homogêneo em relação ao restante do tempo”[3], instante relâmpago que se instaura num lapso de tempo em que a presença do analista se manifesta no fulgurar do inconsciente em sua dimensão real, ininterpretável, presentificando o gozo vivificado que reverbera no corpo do analisante.
O terceiro fragmento clínico é muito ensinante sobre os efeitos do manejo do tempo e a presença do analista. A analista se empresta à forma que a paciente inventou de fazer intervalos e utilizar mensagens de whatsapp, possibilitando a construção de uma nova amarração sinthomática construída em torno de um novo uso que faz de sua arte.
O efeito surpresa pode ser também demonstrado no fragmento clínico trazido por Rosário em que a analisante enquanto falava sobre suas crises de pânico em que sente seu corpo fugir, nomeia seu “jeito” de estar com o Outro como “agradador”. O analista, frente ao corte produzido pelo “agradador” ouve um dizer que se lê de outra maneira, significante novo que localiza o gozo do sintoma que toca o corpo.
Na perspectiva trazida pelo relatório, o lugar do analista não se reduz à destinatário do Outro do inconsciente. O analista, ele próprio, sujeitado ao inconsciente estruturado como falha, equívoco, mal entendido; tendo chegado o mais próximo do real em sua experiência de análise, conduz uma análise se oferecendo a encarnar o furo, o trauma, o que perturba a defesa frente ao gozo impossível de negativizar e simbolizar.
As vinhetas clínicas contribuem para demonstrar a intrusão do tempo libidinal que incide e reverbera no corpo falante assim como demonstra o manejo do que permanece vivo e se abre para uma nova escrita e leitura sem os efeitos imaginários e ilusórios do sujeito suposto saber. Interessa-nos interrogar e investigar a cada vez, em cada caso, o efeito do que se extrai de uma análise, que implica, como aponta o relatório, um novo saber fazer com o sinthoma, dando a ele a chance de funcionar não como entrave, mas como modo de uma nova satisfação. Nesse trabalho de corte e reconfigurações e rearranjos sinthomáticos, ou como sublinha o relatório, de um advir de uma nova leitura e escrita, se destaca a questão do objeto a na clínica borromeana, sua função de inscrever um vazio através do qual se enodam os registros R.S.I., dando margem a uma nova articulação da função superfície e tempo.
O relatório nos leva a viajar no tempo do inconsciente. Passamos pelo tempo do a posteriori, pelo tempo presentificado pelo analista como surpresa e seus efeitos disruptivos e pelo tempo escandido no instante de ver, tempo para compreender e momento de concluir.
Concluo, interrogando. O que podemos avançar em torno do manejo do tempo e do que se extrai de uma análise hoje que implica um reviramento na função superfície e tempo?
Podemos supor que o tempo descontínuo introduzido pela manifestação do analista como irrupção do real durante o percurso de uma análise, rompendo as coordenadas do espaço e tempo da sessão, tem alguma afinidade com o tempo da urgência subjetiva?
Glória Maron (EBP/AMP)
[1] N.E.: Comentários e perguntas da autora na II Preparatória do XXIV EBCF, sobre o texto de Maria do Rosário do Rêgo Barros, publicado neste Boletim, a partir do trabalho em cartel composto por Fernanda Otoni Brisset, Flávia Cêra, Patrícia Badari, Cleide Monteiro, Nora Gonçalves, Denizye Zacharias, Marcus André Vieira, Laura Rubião e Maria do Rosário do Rêgo Barros (Mais Um).
[2] MILLER, J.-A. Los usos del lapso. Paidós. Buenos Aires.
[3] _______. A erótica do tempo. Latusa. EBP Seção RJ. 2.000.