5º Encontro TyA Brasil
Localização do singular na clínica das toxicomanias: função do analista
Os caminhos de investigação da rede TyA – Toxicomanias e Alcoolismo, nos convocam a continuar interrogando as soluções paradoxais encontrada por alguns sujeitos em sua relação com seu modo de gozar. A eleição de um objeto – droga – colocado no posto de comando orienta uma trajetória subjetiva.
No III Colóquio Internacional de TyA, ocorrido em maio desse ano, examinamos a relação entre toxicomania e inconsciente, se poderíamos falar de abertura ou rechaço. Da prática com toxicômanos na Europa e na América, pudemos extrair delineamentos importantes que se desdobram agora, em outras proposições: quais as condições possíveis do ato para o analista? Qual a premissa que fundamenta nossa prática em relação às toxicomanias? Como recolher um efeito propriamente analítico nas toxicomanias que se distancia de outras práticas com a palavra?
Extraímos dos diversos casos clínicos debatidos no Colóquio, que o analista é aquele que constata e certifica algo do insuportável, apostando no x que permanece, muitas vezes, opaco para o sujeito. Em outras palavras, a aposta é no real onde o analista entra nessa partida, como agente. Como nos diz Lacan: “Não é de modo algum do analista que depende o advento do real. O analista tem por missão contrariá-lo”. [1]
Dessa relação entre o lugar do analista e o real, como promover na repetição do excesso, uma localização do singular? Como contrariar o real na clínica das toxicomanias?
Seria na perspectiva de que “a presença do analista é passível de dar corpo ao inconsciente real, ao que está fora da transferência. Dessa forma, o analista se faz presente como aquele que perturba a defesa, um intruso, um sinthoma, uma ajuda contra”?[2]
A prática orientada para o real se desloca da dimensão do recalque-sintoma, própria ao inconsciente regido pela estruturação significante que participa da defesa contra o real, não apenas pela substituição, deslocamento e metáfora, mas, sobretudo, pela mentira[3], para colocar a ênfase sobre a defesa.
Nessa direção, Miller[4] propõe que a experiência de uma análise deve ser o revés da interpretação do inconsciente, ou melhor, o revés do delírio de sentido do inconsciente. Nessa operação, “a tarefa do analista, o efeito de seu ato, poderia ser qualificado de perturbar a defesa”[5] do real. Nessa prática pós-interpretativa, compete ao analista se desprender dos efeitos de sentido e de verdade, para apontar um mais além, a fixidez do gozo, o gozo do Um.
Podemos sustentar essa hipótese em relação às toxicomanias, uma vez que o inconsciente real se apresenta de início? Na medida em que o impossível está colocado logo de cara e onde está em evidência uma resposta não sintomatizada que pretende anular a divisão do sujeito, marca de uma posição subjetiva que se caracteriza por um “não quer saber nada do inconsciente?”[6]
Será necessário “dar um passo atrás, inicialmente, fazer o sujeito entrar, minimamente no discurso, estabelecer algum tipo de laço (…)”[7] para “fazer o sujeito acreditar em um sintoma que não se decifra, mas se constrói”?[8] Como podemos pensar essa posição do analista na clínica das toxicomanias?
São essas linhas de investigação e pesquisa que estão abertas ao trabalho.
Esperamos trabalhos preferencialmente coletivos até o dia 29/10/22 com até 5.000 caracteres, fonte Times New Roman, com espaço, não incluídas as referências.
[1] LACAN, J. – A Terceira, Opção Lacaniana 62, p 20
[2] SOUTO, S. O analista presente no espaço de um lapso? Boletim Punctum nº 2. Encontro Brasileiro do Campo Freudiano 2022.
[3] LACAN, J. (1959-60). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. 2a. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 94.
[4] MILLER, Jacques-Allain. Perturbar la defesa. In: La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós. 2003. p. 35.
[5] Idem.
[6] FREDA, Francisco Hugo; MILLER, Jacques-Allain; LAURENT, Éric. La secta y la globalización. In: MILLER, Jacques-Allain; LAURENT, Éric. El otro que no existe y sus comitês de ética. Buenos Aires: Paidós. 2005. p. 303-324.
[7] KATO, M. C. R. – Fazer falar um corpo que quer calar. In: Tratamento Possível das toxicomanias…com Lacan. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
[8] LAURENT, D. Viver a pulsão na transferência. In HARARI, A. (Org) A ordem simbólica no século XXI – não é mais do era: quais as consequências para o tratamento? Rio de Janeiro: AMP / Subversos, 2013. Apud KATO, M. C. R. – Fazer falar um corpo que quer calar. In: Tratamento Possível das toxicomanias…com Lacan. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
O racismo 2.0
Os recentes debates que têm lugar em torno da proibição do espetáculo de Dieudonné, fazem ressoar de maneira muito atual uma das «antecipações lacanianas»[1] sobre a função da psicanálise na civilização. As últimas palavras do Seminário 19, em junho de 1972, visam precisamente nosso futuro. A saída da civilização patriarcal lhe parecia então consumada. A época pós-68 ainda fervilhava de proposições sobre o fim do poder dos pais e a chegada de uma sociedade dos irmãos, acompanhada do hedonismo feliz de uma nova religião do corpo. Lacan atrapalha um pouco a festa acrescentando uma consequência que havia passado desapercebida: «Quando voltamos à raiz do corpo, se revalorizarmos a palavra irmão, (…), saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo». A idolatria do corpo tem consequências bem diferentes do que o hedonismo narcísico o qual alguns poderiam pensar limitar essa «religião do corpo». Elas anunciam na modernidade outras figuras da religião diferentes das religiões seculares, como dizia Raymond Aron, que caracterizavam a época e forneciam, segundo ele, «O Ópio dos Intelectuais».
No mesmo momento em que Lacan previa o aumento do racismo, sublinhado com insistência de 1967 aos anos 1970, o ambiente era mais de regozijo diante das perspectivas de integração das nações em conjuntos mais amplos que autorizavam os «mercados comuns». Todo mundo era então, mais do que hoje, a favor da Europa. E Lacan acentua essa consequência inesperada com uma precisão que, na época, surpreendeu. Interrogando Lacan em «Televisão», em 1973, Jacques-Alain Miller fazia-se eco dessa surpresa e punha em relevo a importância dessa tese. «De onde lhe vem, por outro lado, a segurança de profetizar a escalada do racismo? E por que diabos dizer isso?».[2] Lacan respondia: «Porque não me parece engraçado e, no entanto, é verdade. No desatino de nosso gozo, só há o Outro para situá-lo, mas na medida em estamos separados dele. Daí fantasias, inéditas quando não nos metíamos nisso».
A lógica desenvolvida por Lacan é a seguinte. Não sabemos o que é o gozo a partir do qual poderíamos nos orientar. Só sabemos rejeitar o gozo do Outro. Com o fato de nos meter, Lacan denuncia o duplo movimento do colonialismo e da vontade de normalizar o gozo daquele que é deslocado, emigrado em nome de um dito «bem dele». «Deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo, eis o que só seria possível não lhe impondo o nosso, não o tomando por subdesenvolvido. (…) como esperar que se leve adiante a humanitarice de encomenda de que se revestiam nossas exações?». Não é o choque das civilizações, mas é o choque dos gozos. Esses gozos múltiplos fragmentam o laço social, daí a tentação de apelo a um Deus unificador.
Lacan anuncia aí também algo, o retorno dos fundamentalismos religiosos. «Deus, recuperando a força, acabaria por ex-sistir, o que não pressagia nada melhor do que um retorno de seu passado funesto». Em suas proposições sobre a lógica do racismo, Lacan leva em conta a variação das formas do objeto rejeitado, suas formas distintas que vão do antisemitismo de antes da guerra, que conduz ao racismo nazista, ao racismo pós-colonial dirigido aos imigrantes. De fato, o racismo muda seus objetos à medida em que as formas sociais se modificam, mas, conforme a perspectiva de Lacan, sempre jaz, numa comunidade humana, a rejeição de um gozo inassimilável, domínio de uma barbárie possível.
Antes de «Televisão», Lacan evoca esta questão do racismo na «Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola» e na sua «Alocução sobre as psicoses da criança», durante o mesmo ano. Na «Proposição…», Lacan evoca o que o racismo nazista tinha, na sua barbárie, de «precursor»: «Abreviemos dizendo que o que vimos emergir deles, para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação».[3] E na «Alocução sobre as psicoses da criança», ele justifica o nó entre posição do analista e movimento da civilização: «Como responderemos, nós, os psicanalistas: a segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes».[4]
De fato, a lógica pela qual Lacan constrói qualquer conjunto humano que seja, opera uma torção naPsicologia de Grupo freudiana. Em 1921, depois de ter formulado a segunda tópica que organiza a realidade psíquica, Freud retoma a questão do destino pulsional a partir do tipo de identificação que rege de maneira determinante a vida psíquica: «E em completa oposição à prática costumeira, não escolherei, como nosso ponto de partida, uma formação de grupo relativamente simples, mas começarei por grupos altamente organizados, permanentes e artificiais. Os mais interessantes exemplos de tais estruturas são as Igrejas – a comunidade dos crentes – e os exércitos… Teremos de considerar se os grupos com líderes talvez não sejam os mais primitivos e completos, se nos outros uma idéia, uma abstração, não pode tomar o lugar do líder (estado de coisas para o qual os grupos religiosos, com seu chefe invisível, constituem etapa transitória) e se uma tendência comum, um desejo, em que certo número de pessoas tenha uma parte, não poderá, da mesma maneira, servir de sucedâneo. (…) o ódio contra uma determinada pessoa ou instituição poderia funcionar da mesma maneira unificadora».[5] Para Freud, o ódio e a rejeição racista se unem, porém permanecem conectados ao líder que toma o lugar do pai ou, mais precisamente, do assassinato do pai. O ilimitado da exigência permanece no grupo e o estabelecimento do laço social é fundamentado no assentamento pulsional da identificação. O grupo estável compõe nele mesmo o mesmo princípio de ilimitação produzido pela multidão primária. Assim Freud pôde dar conta do exército como multidão organizada e do poder de matança selvagem que a acompanha. O ódio comum pode unificar a multidão, ligada a uma identificação segregada ao líder.
Para construir a lógica do laço social, Lacan não avança a partir da identificação ao líder, mas a uma primeira rejeição pulsional. O seu tempo lógico chega a propor para toda formação humana três tempos segundo os quais se articulam o Sujeito e o Outro social:
1) Um homem sabe que não é um homem;
2) Os homens se reconhecem entre si;
3) Eu afirmo ser um homem, com medo de ser convencido pelos homens de não ser um homem.
Esses tempos de identificação não partem de um saber sobre o que seria ser um homem e depois de um processo de identificação, mas essa lógica parte do que não é um homem – Um homem sabe o que não é um homem. Isso não diz nada sobre o que é um homem. Depois, os homens se reconhecem entre si por seremhomens: não sabem o que fazem, mas se reconhecem entre si. Enfim, eu afirmo ser um homem. Lá vai toda a questão da afirmação ou da decisão ligada à função da precipitação, a função da angústia ― do medo de serconvencido pelos homens de não ser um homem.[6]
Essa lógica coletiva é fundada na ameaça de uma rejeição primordial, uma forma de racismo: um homem sabe o que não é um homem. E é uma questão de gozo. Não é homem aquele que rejeito como tendo um gozo distinto do meu. «Movimento que dá a forma lógica de toda assimilação «humana», enquanto precisamente ela se coloca como assimiladora de uma barbárie e, portanto, reserva a determinação essencial do «Eu»…»[7] .
Quando Lacan escreveu esse texto, a barbárie nazista estava próxima. Começou por considerar o Judeu como aquele que não goza como o Ariano: um homem não é um homem porque não goza como eu. Ao contrário, pode-se sublinhar que, nessa lógica, se os homens não sabem qual é a natureza do gozo deles, os homens sabem o que é a barbárie. A partir de lá, os homens se reconhecem entre si, e não sabem bem como. E depois, subjetivamente, e um por um, eu me precipito. Afirmo ser um homem, com medo de ser denunciado como não sendo um homem. Essa lógica coletiva se enovela em conjunto, a partir de uma ausência de definição do ser-um-homem, o Eu que se afirma e o conjunto dos homens, curtocircuitando o líder.
Essa forma lógica prosseguirá ao longo da obra de Lacan. Será complicada pela teoria do desejo e pela teoria do gozo, mas vai funcionar, inclusive na lógica do passe. A lógica de constituição da coletividade psicanalítica será abordada segundo a mesma lógica anti-identificatória, ou mais precisamente, de identificações não-segregativas, como as chamou Jacques-Alain Miller em sua «Teoria de Torino»[8].
1) ― Um psicanalista sabe o que não é um psicanalista – isso não diz em nada que o psicanalista saiba o que é um psicanalista.
2) ― Os psicanalistas se reconhecem entre si por serem psicanalistas – é o que se pede na experiência do passe, que um cartel reconheça: ― esse daí, «é dos nossos».
3) ― Para se apresentar ao passe, o sujeito, ele, deve afirmar, decidir ser psicanalista e se arriscar em não convencer os outros de que ele é psicanalista.[9]
Se Lacan insistiu nessa dimensão do racismo na «Proposição…», é para sublinhar que todo conjunto humano comporta em seu fundo um gozo deslocado, um não-saber fundamental sobre o gozo, que corresponderia a uma identificação. O psicanalista é simplesmente aquele que deve sabê-lo para constituir a comunidade daqueles que se reconhecem como psicanalistas.
O gozo maligno em jogo no discurso racista é desconhecimento dessa lógica. Ela está no fundamento de todo laço social. O crime fundador não é o assassinato do pai, mas a vontade de assassinato daquele que encarna o gozo que eu rejeito. Portanto, sempre o antiracismo é a reinventar para seguir as novas formas do objeto do racismo, se deformando à medida dos remanejamentos das formações sociais. No entanto, nossa história põe especialmente em relevo, nas variações do racismo, o lugar central do antisemitismo, ao mesmo tempo precursor e horizonte. Retomarei a análise da nova forma do que vem aí para nós, feita por Bernard-Henri Lévy: «O antisemitismo tem uma história. Tomou, no decorrer das épocas, formas diferentes, mas correspondendo, cada vez, ao que o espírito do tempo podia ou queria entender. E eu acredito que, por razões cujo detalhe é impossível entrar aqui, o único antisemitismo apto a «funcionar» hoje, o único capaz de abusar e de mobilizar, como o fez em outras épocas, um grande número de mulheres e homens, é aquele que saberia enovelar o triplo fio do antisionismo (os judeus sustentando um «Israël assassino»), do negacionismo (um povo sem escrúpulos capaz, para chegar a seus fins, de inventar ou instrumentalizar o martírio dos seus) e da concorrência das vítimas (a memória da Shoah funcionando como a tela que esconderia os outros massacres do planeta). E então, Dieudonné estava a ponto de operar a conjunção desses três fios».[10] A surpreendente resposta que lhe dirige Nicolas Bedos abre uma outra questão sobre o estatuto do cômico no estômago de nossa civilização do individualismo de massa democrático. Não basta aliás pôr em jogo o estômago, talvez precisem todas as vísceras para se fazer escutar. Consequência inesperada: a televisão torna-se uma mídia cada vez menos soft e todos se aproximam da violência da internet.
Éric Laurent
Texto publicado originalmente em Lacan Cotidiano. n. 371, em 18.02.2014.
Publicamos este texto com a amável autorização de Éric Laurent, a quem agradecemos.
[1] Miller J.-A., « As profecias de Lacan », LePoint.fr, 18 de agosto de 2013.
[2] Lacan J, «Televisão» [1973], Outros Escritos, Zahar, Rio de Janeiro, 2002, p. 534.
[3] Lacan J., «Proposição de 9 outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola», Outros Escritos, op. cit., p. 263.
[4] Ibid., p. 361.
[5] Freud S., «Psicologia de Grupo e Análise do Ego», Obras completas, XVIII, Rio de Janeiro, Imago, 1969, p. 127.
[6] Lacan J., «O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada» [1945], Écrits, Seuil, 1966, p. 213.
[7] Lacan J., «O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada» [1945], Écrits, op. cit ., p. 213.
[8] Miller J.-A., «Teoria de Torino», Intervenção no Iº Congresso científico de la Scuola lacaniana di Psicoanalisi (em formação), o 21 de maio de 2000, cujo tema era «As patologias das leis e das normas », disponível no site da École de la Cause freudienne.
[9] Laurent É., « Os paradoxos da identificação », aulas de 1993 na Section Clinique, o 1o dezembro de 1993, inédito.
[10] Lévy B.-H., «Para acabar (provisoriamente?) com a questão Dieudonné», Le Point, 16 de janeiro de 2014, disponível na internet.
O monólogo da aparola
Um pequeno plano do labirinto
A vontade-de-dizer
O gozo fala A linguagem, aparelho do gozo
A interpretação introduz o impossível
a interpretação?a fala (la parole) a aparola (l´apparole) a linguagem lalíngua
a letra lituraterra
Eu lhes forneci, na vez passada, esse pequeno quadro de orientação, composto por seis termos emparelhados dois a dois e repartidos em duas séries de três. É um aparelho, um pequeno conjunto.
Posso lhes dizer de onde provêm esses seis termos, por mais que vocês o saibam. E o repito para mim mesmo.
A primeira série vertical é composta por três termos retirados de títulos de Lacan da primeira parte do seu ensino. Vocês conhecem “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”2. Extraiam a fala e a linguagem. Também conhecem “A instância da letra”3. Os dois primeiros são os termos-chave, fundadores, do ensino de Lacan, que se apresenta como um retorno a Freud, fazendo trabalhar esses dois termos na obra de Freud e no conceito da prática analítica.
Alguns anos mais tarde, como sabem, Lacan operou em ”A instância da letra” uma reorientação, que redundou na eliminação da intersubjetividade de suas referências e na inscrição, ao lado das leis da fala, das leis da linguagem que seriam a metáfora e a metonímia.
Com esses três termos temos as coordenadas essenciais que condicionam o ensino de Lacan e muito do que dele retivemos.
Em frente a esses três termos escrevi outros três, mais equívocos, neologismos que brincam com as palavras do léxico. Eu os retirei do último ou do penúltimo Lacan, aquele que reorienta seu ensino nos anos 70 e lhe dá uma abordagem sensivelmente distinta e mesmo surpreendente se comparado ao seu começo.
Estes termos são: a aparola (l´apparole) – sou obrigado a lhes dar uma indicação da maneira como escrevêlo, com l apóstrofe e dois p para marcar a diferença, já que se pronuncia da mesma maneira que o termo anterior4 -, lalíngua numa só palavra, e lituraterra, o único dos três termos que, sozinho, constituirá o título de um escrito de Lacan5.
Inscrevo essas referências para indicar que a nova perspectiva adotada por Lacan no final do seu ensino atinge coordenadas fundamentais. Essa nova perspectiva impõe uma nova disciplina à qual é preciso se acostumar, particularmente quando se tenta determinar o novo regime da interpretação analítica por ela condicionada.
Eu poderia acrescentar aqui a interpretação, com um ponto de interrogação.
O que ela se torna quando são tocadas essas coordenadas fundamentais do início? É preciso seguir Lacan, o único a avançar nessa direção.
Estamos tentando apreender alguma coisa da sua visada, que não avança sem desvios, contradições, tornando bastante difícil tecer um fio de Ariadne nesse labirinto. Trata-se de um pequeno plano do labirinto visto ainda de muito longe.
I
Tentemos avaliar – como comecei a fazê-lo na vez passada
– a ginástica que nos impõe passar de um dos termos da esquerda a um dos termos da direita.
Partamos – porque não – do termo a linguagem.
O que é a linguagem comparada ao que se delineia como lalíngua? – cujas possibilidades ilustrei na vez passada através de uma referência a Michel Leiris.
Digamos, como habitualmente, coisas simples. A linguagem, tal como Lacan a aborda no início de seu ensino, é uma estrutura. O que dizer dela? Um conjunto solidário de elementos diferenciados, diacríticos, relacionados uns aos outros, de modo que qualquer variação em um repercute nos outros, provocando variações concomitantes.
Isso será útil no momento. Isso se sustenta, é consistente, rigoroso. Não tem evidentemente como objeto a plasticidade de lalíngua.
É preciso dizer mais. A estrutura, tal como Lacan a propõe no início do seu ensino, é por excelência a estrutura linguageira. Lacan começou formulando que o inconsciente era estruturado como uma linguagem, o que significa, pelo menos, três coisas:
Primeira: o inconsciente é estrutura. Não se trata de um fluxo contínuo, indiscernível, nem tampouco de uma reserva de coisas heteróclitas, independentes umas das outras, reunidas numa espécie de saco. Nele discernimos elementos e esses elementos constituem um sistema.
Segunda: o inconsciente é linguagem. Esses elementos discerníveis são os mesmos da linguagem.
Terceira: o inconsciente é estruturado como uma linguagem de Saussure. Nela distinguimos o significante e o significado.
Nós nos formamos, nos habituamos, acostumamos com esse objeto-linguagem que, ao ser abordado como estrutura, implica uma suspensão e mesmo uma foraclusão metódica do
fator temporal, do fator diacrônico. A perspectiva tomada sobre o objeto-linguagem é essencialmente sincronia que
supõe, quando referida à história, que se pratique um corte, sincrônico. Ocupamo-nos de um estado do que Saussure chamava a língua.
Essa perspectiva é também essencialmente transindividual – sincrônica e transindividual. Tal definição da linguagem implica que haja um Outro que seja correlativo a outro conceito – o conceito de fala, que é basicamente diacrônica e individual.
Isso é saussuriano, mas Lacan, ao tomar sua referência à linguagem basicamente da obra de Saussure, reveste sua referência à fala, e mesmo a organiza, a ordena, como fala em Hegel, radicalmente intersubjetiva e, portanto, sempre dialógica, marcada pela estrutura do diálogo – mesmo quando superpõe a seu Hegel certo uso que ele faz do ato da fala segundo Austin.
Quanto à letra – eu a evoquei rapidamente na vez passada
- que designa, ao menos em “A instância da letra”, o significante em sua estrutura localizada, ela introduz no que concerne à função da fala – que, por isto, ela desvaloriza – a função da escrita, que está inteiramente no centro deste escrito, “A instância da letra”.
A estrutura da qual se trata condiciona um fenômeno e apenas um – talvez seja exagerado dizer assim –, um fenômeno fundamental, inicial, e por isso mesmo determinante em relação ao que ele pode atrair. Esse fenômeno essencial é o do sentido, que “A instância da letra” de Lacan rechaça para a posição de efeito.
Este ternário – a fala, a linguagem, a letra – tem como principal consequência que o fenômeno essencial por ele condicionado seja relegado à posição de efeito. Desse ponto de vista, a estrutura, como Lacan utiliza esse termo, é essencialmente a relação dos significantes entre si sob duas formas, a combinação e a substituição, o sentido aparecendo como efeito dessa combinação ou dessa substituição: como
efeito retido na metonímia, ou como efeito positivo, emergente, na metáfora.
Nessas coordenadas – que relembro resumida e solidamente para assegurar nossos pontos de vista, antes de chegarmos a uma zona mais incerta – a interpretação não constitui problema. Nela se trata de significante. A questão é saber qual significante deve ser acrescentado, trazido, injetado pelo interlocutor-analista, para provocar um efeito de sentido, que fica por determinar. Mas a problemática da interpretação se situa entre essa adição significante e a modalidade específica do efeito de sentido esperado, que é diversamente descrita no ensino de Lacan.
A esse respeito, é preciso um pouco de atenção, sobretudo porque é muito simples, bem discernido, bem situado, belamente disposto, estruturado.
Estruturar implica discernir, situar bem os elementos uns ao lado dos outros, nas devidas relações. Aqui nos perguntamos se isso basta, se é convincente, apesar de todo o apoio que encontramos no ensino de Lacan a este respeito: apenas situar o sentido no final da cadeia, na posição de efeito, como encontramos em “A instância da letra”. Há aqui significantes que se combinam ou se substituem, e depois – simplifico – certo efeito de sentido que está retido ou é emergente.
f(S…S) S (-)s
f S S (+)s S
Isso basta? Dá conta do que implica esse ternário de início?
Pois bem, é enganador apresentar as coisas assim, apresentar o sentido como sendo apenas um efeito, embora necessariamente – necessidade que Lacan absolutamente não
desconhece –, o sentido seja também certamente inicial e não apenas terminal.
Deve haver aqui pessoas que refletiram sobre o que Lacan chama seu grafo do desejo. Não se pode deixar de perceber o que se confirma claramente na construção desse grafo, que ordena os elementos determinados pelo primeiro ternário. Esse grafo é estabelecido sobre um esquema de comunicação.
Por mais complexo, refinado, variado que ele seja não passa de uma variação da comunicação intersubjetiva, de uma variação da estrutura de diálogo. Essa estrutura é acionada em seu ponto de partida – porque há um ponto de partida, apenas um, fundamental –, pelo que o próprio Lacan nomeia a intenção de significação. Essa maquinaria, esse aparelho – como o próprio Lacan o chamará no momento em que se separa dele – não funciona de forma alguma se falhar essa intenção inicial de significação.
O que isso significa? Significa que a energia de início, necessária ao funcionamento, ao acionamento desse grafo é fornecida por um querer-dizer. Por qualquer viés que ele seja tomado, não é possível prescindir desse querer-dizer. E a fenomenologia elementar da experiência analítica comprova isso.
Não vale a pena entrar em análise, se não se quer dizer. Acreditamos que queremos dizer, e quando nos damos conta, no interior, de que não queremos dizer, o analista está ali para marcar que esse não querer dizer é mesmo assim um querer- dizer. Tentem se convencer disso.
Querer dizer tem certa materialidade – não se trata de uma ficção – e mesmo certa evidência. Tal evidência percorre
- ensino de Esse querer-dizer se reporta ao sujeito, ao sujeito completo, ao sujeito barrado, ao sujeito cindido, dividido. O sujeito quer dizer. E o sujeito, complexificado por Lacan, multiplicado, anulado, se mantém como vontade-de- dizer.
Insisto enfaticamente nisso. É preciso insistir enfaticamente para transmitir algo na massa de comentários, de significantes, de significados que recobre tudo isso. Nesse assunto, não caminho rapidamente. Percorro cuidadosamente esse terreno. Depois, a marcha começará a ser mais complicada, e então tiro proveito disso para expor a questão.
Seguramente o sujeito barrado de Lacan não é vontade de reconhecimento, como efetivamente ele era no início. Quando
- essencial para Lacan é a relação intersubjetiva, o sujeito é vontade de reconhecimento pelo Outro, desejo de reconhecimento. É isso que Lacan questiona, e finalmente refuta. Mas o sujeito permanece como vontade-de-dizer ao Outro, com maiúscula – a esse respeito nada muda -, ou como vontade-de-dizer para o Outro, na direção do Outro, inclusive a partir do Outro, mesmo quando esse Outro com maiúscula, como Lacan acaba definindo-o, não é mais definido como um sujeito. Isso não impede que o sujeito, que fala, seja vontade-de-dizer em função desse
O cerne da função da fala é dado pelo que nomeio hoje a vontade-de-dizer. A fala sempre implica uma estratégia que envolve o Outro, uma vez que o parceiro do sujeito, que sempre existe, é esse Outro. É a partir deste fundamento – que situa o sujeito e seu querer-dizer na fala, e o Outro, seu parceiro – que podemos distinguir, por exemplo, a demanda e o desejo.
Mas quando partimos dessas premissas, a fala sempre é um assunto de pergunta e resposta. Nessa configuração, a interpretação do analista sempre aparece como uma resposta. Lacan pode muito bem dizer que essa resposta interpretativa
é, por excelência, uma questão, o célebre Che vuoi? Que queres? seria a interpretação mínima, o que uma interpretação sempre significa, mesmo quando ela encontra outros enunciados.
É possível perfeitamente dizer que a resposta é uma pergunta, uma pergunta sobre o desejo. Que queres? é uma das fórmulas especialmente proposta nesse grafo, que daria o texto mínimo da interpretação analítica na medida em que incidiria sobre o desejo.
Há, a esse respeito, uma via central da clínica que se propõe e que consiste em se perguntar: ao que a fala do sujeito reduz o Outro, seu parceiro? Ou qual figura do Outro o sujeito tem como parceiro explícito ou implícito nesse diálogo? Há de fato uma parte bastante extensa da reflexão analítica, do estudo que pode ser feito dos casos clínicos, inclusive no âmbito da supervisão, que passa por essas avaliações. Não estou ali para dizer: Isso não funciona, é mera aparência. Mas, ao contrário, para acentuar como isso se sustenta, como constitui sistema.
A fala do primeiro ternário é sempre articulada, numa determinada estratégia, ao Outro, sempre decifrável como uma estratégia do sentido.
Tomemos exemplos e reflitamos a partir deles.
O que podemos dizer da fala histérica? A fala histérica é, por excelência, a fala analisante, na medida em que é a que constitui enigma, a que se oferece ao Outro para ser interpretada, que necessita do analista como parceiro. É efetivamente no desastre moderno e diante do fechamento de todos os recantos onde se poderia encontrar o analista, o pré-analista, o protoanalista, o para-analista – como a civilização sempre o ofereceu até os tempos modernos –, é nesse grande deserto que foi preciso inventar o analista propriamente dito para realizar essa tarefa de interpretação oferecida por essa fala. A fala histérica evidencia um querer-dizer distinto do dito, sublinha a distância do dizer
ao dito.
Prossigamos nesse sentido. Trata-se da fala sempre insatisfeita com o dito. Nela, o sujeito experimenta na insatisfação, no sofrimento e mesmo na culpa, a impossibilidade de dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro, de dizer toda a verdade. Ele o experimenta segundo diversas modalidades, que podem ir da fatalidade da mentira à aceitação do desempenho de um papel. O que não é, aliás, absolutamente incompatível: por um lado, esbaldar-se no desempenho de um papel e depois, desabar diante da fatalidade da mentira que esse papel implica. Essa fala é bem aquela que dá lugar ao intérprete, que o estimula, o causa.
O que poderíamos dizer da fala obsessiva em comparação com esta, a partir dessas coordenadas? É antes uma fala que seca a interpretação, que cala o intérprete e visa certa anulação da divisão subjetiva, portanto uma adequação do querer-dizer ao dito. Poderíamos dizer, exagerando o traço, caricaturando-o, que é uma fala cuja mensagem silenciosa sempre é: Nada há a acrescentar. De qualquer forma, o Outro nada tem a acrescentar. A fala obsessiva é uma espécie de mordaça colocada na interpretação.
Para prosseguir com a galeria das grandes categorias, o que poderíamos dizer da fala psicótica? Na psicose, a própria fala assume a tarefa de interpretação, pelo menos na vertente paranoica, colocando-se como dona do sentido, chegando, na esquizofrenia, a poder denunciar o semblante social em seus últimos redutos.
Quanto à fala perversa – talvez possamos mais tarde dar- lhe um lugar à parte -, digamos que ela debocha do sentido. Quando ela se desenrola, pura, não dá muita margem ao exercício da interpretação analítica.
Trago essas pequenas vinhetas rápidas para lembrar o terreno que podemos cobrir na experiência analítica, a extensão da apreciação que dela podemos fazer, considerando a estrutura-linguagem e seu fenômeno essencial, o sentido, mesmo quando o sentido é batizado como desejo. O essencial
de nossa clínica analítica se desloca nessas coordenadas,
certamente com variações, oposições internas. Eis o que se desloca quando passamos da linguagem à lalíngua.
II
Lalíngua, que comecei a ilustrar, a evocar na vez passada, não parece ser uma estrutura. Se a estrutura é o que eu disse no início, não chego a dizer: Lalíngua é uma estrutura. Aliás, a palavra forjada por Lacan, juntando o artigo ao substantivo, é bem feita para marcar que, nela, os elementos da linguagem que acreditamos discerníveis, não o são tanto assim. E Leiris nos oferece numerosos exemplos. Em todo caso, é muito equívoca. Ela não deixa de ter relação com a estrutura, mas daí a dizermos que lalíngua é uma estrutura, nesse ponto recuamos. Particularmente porque lalíngua não é um objeto recortado na sincronia. Ela comporta uma dimensão irredutivelmente diacrônica, uma vez que é essencialmente aluvionária. Ela é constituída por aluviões em que se acumulam os mal-entendidos, as criações linguageiras de cada um.
Lacan cuidava muito de acentuar que as locuções que empregamos têm uma origem precisa, que nem sempre conseguimos determinar. Ao lermos o Dicionário das Preciosas nos damos conta de que certo número de suas invenções mais mirabolantes foi incorporado aos nossos meios comuns de expressão. A marquesa Untel disse certa vez: A palavra me falta, o que foi considerado charmoso, maravilhoso – Isso é a cara dela! A frase foi repetida, tornando-se hoje nossa maneira de dizer. Esse exemplo trazido por Lacan tem o valor de, discretamente, desordenar um pouquinho o objeto-linguagem em sua sincronia. Afinal, é muito mais divertido usar a língua com a contribuição da marquesa Untel e a do carreteiro da Praça Maubert. Ela comporta uma dimensão diacrônica e uma dimensão “individual”, entre aspas. Esse conceito forjado
por Lacan incorpora assim a invenção de cada um como contribuição à comunidade que habita uma lalíngua.
O fenômeno essencial do que Lacan chamou lalíngua não é o sentido – é preciso se dar conta disso –, mas o gozo. Nesse deslocamento, nessa substituição, todo um panorama se transforma – não se trata de uma pequena modificação que se introduz aqui e, depois, todo o restante permanece inalterado. Quando isso é tocado, todo o edifício desaba, ou, ao menos, balança.
Digamos de outra maneira. O princípio do segundo ternário não é o querer-dizer, mas o querer-gozar. Também me corrijo, pois me disse: O marquês Lacan disse a aparola, ele é maravilhoso! E adoto esse termo, transmito-o. O segundo ternário traduz o novo estatuto do primeiro, quando a pulsão
- para tomar a invenção do conde Freud – e não a significação, é concebida como princípio, como motor do ser falante, para dizê-lo rapidamente. Aqui, todo um sistema conceitual é transformado.
A partir disso, percebemos melhor do que se tratava nessa máquina do grafo do desejo. Era – nós o asseguramos por outras vias no ano passado – uma tentativa de Lacan de estruturar a pulsão a partir do modelo da comunicação intersubjetiva. Uma tentativa prodigiosa que consistia em fazer da pulsão um modo de mensagem, uma demanda sem sujeito. Trata-se de uma mensagem paradoxal, mas que, ainda assim, faz da pulsão um tipo de mensagem. A demanda é evidentemente um modo de mensagem, mas aqui o sujeito está ausente ou eclipsado, ou só está presente por sua barra ou por sua falta, mas uma demanda. Além disso, a pulsão é dotada de um vocabulário próprio nesse grafo, que Lacan escreve em paralelo ao tesouro de lalíngua. De um lado o tesouro de lalíngua, do outro, o tesouro da pulsão. O que significa efetivamente acentuar que a pulsão é dotada de um vocabulário próprio. Há, ainda assim, uma mensagem que se dirige ao outro lado e que se formula em termos de pulsão, e depois, no lado direito, aparece um efeito de sentido extremamente particular, especial, paradoxal, limite, mas de qualquer
forma um efeito de sentido.
Percebe-se então, do ponto que os convido a ocupar, que Lacan partiu da comunicação e estruturou, modelou a pulsão a partir da fala. Ele comenta isso longamente e de modo definitivo, fala e pulsão.
Fazer isso era certamente dar seu lugar à pulsão como querer-gozar, mas sempre sob o domínio do querer-dizer.
Isso é feito com extrema sutileza, e não sem fundamento.
Antes, despi a princesa, e se percebe que isso se fundamenta em um princípio simples, elementar. A princesa é o grafo. Quando tudo isso é retirado, resta a própria organização, o esqueleto da princesa. E se retirarmos um pouco mais, como, aliás, na história de Alphonse Allais…
Percebemos do que se trata quando a aparola vem no lugar do conceito de fala. A aparola não é algo que Lacan tenha dito frequentemente, creio que apenas uma ou no máximo duas vezes. Pouco importa. É necessário reelaborar o conceito de fala quando se chega aos extremos que acabo de descrever.
A fala – a fala tranquila – diz sempre um e outro, mesmo quando o outro se torna o Outro, supõe sempre pergunta e resposta. É sempre uma relação, um diálogo.
Ora, a aparola é um monólogo. O tema do monólogo obceca o Lacan dos anos 70 – o lembrete de que a fala é, sobretudo, monólogo. Proponho aqui a aparola como o conceito que corresponde ao que surge no Seminário Mais, ainda, quando Lacan interroga de maneira retórica: “Mas lalíngua, será que ela serve primeiro para o diálogo? Nada é menos certo”6. Digo que o que responde a essa observação, a essa interrogação – que, desenvolvida de maneira resumida, é capaz de fazer
afundar o conjunto do sistema – é que ela exige um novo conceito de fala, uma vez que lalíngua não serve ao diálogo. Com o conceito de aparola, o conjunto da referência à comunicação desaba ou, pelo menos, no nível em que se trata da aparola não há diálogo, não há comunicação, há autismo.
Não existe o Outro com maiúscula. A aparola não tem por princípio o querer-dizer ao Outro ou a partir do Outro.
No Seminário Mais, ainda, Lacan evoca o termo blablablá. Esse termo não aparece no Robert, ao menos na edição que tenho7, mas é listado no Dictionnaire de l’Argot (gíria) do Larousse, que lhes recomendo. Blablabá, expressão de uso corrente, é glosada como tagalerice vazia e sem interesse. Sobre sua origem não se sabe visivelmente quase nada. Ela derivaria de zombar (blaguer)– uma zombaria não é absolutamente uma tagarelice sem interesse; é o interessante na comunicação – ou de to blab, em inglês, que significa tagarelar. Ela é usada por Céline. Como não se reedita todo o Céline, dada a significação do seu blablablá que nem sempre é do melhor gênero…, não tenho o volume em questão, de 1937. De qualquer forma, para mim o blablablá foi difundido por Le canard enchaîné. Creio que esse periódico reivindicou, há alguns anos, a paternidade dessa expressão. Seria preciso fazer uma pesquisa séria sobre a etimologia de blablablá. Se alguém a possui ou gostaria de fazê-la seria muito bem vindo. Diz-se também, como assinalado no Dictionnaire de l’Argot, o blablá. Aliás, Lacan empregava habitualmente a expressão blablá, duas vezes apenas. É mais refinado. No blablablá há certamente mais blablablá, temos a impressão de que quem fala se deixa arrastar pelo que está em questão, e justamente blablata, enquanto blablá é o minimum.
Perguntei-me se poderíamos assimilar o blablá à aparola. Não exatamente, embora Lacan evoque, em Mais, ainda, “o que se satisfaz com o blablablá”8. O blablá é uma forma degradada da fala, mas pertence ao registro da fala e não ao da aparola. É finalmente a fala vazia, como Lacan a havia batizado, a
fala na qual o que prevalece, tem peso, não é o conteúdo
semântico. Por isso o dicionário diz: é uma tagarelice vazia. O que conta não é o estofo semântico, mas o blablá – não sei o que vocês pensam disso –, que continua a assegurar as funções fundamentais da fala, a ponto de nos perguntarmos se é possível fazer a diferença. O blablá abre suas asas sobre tudo o que é fala. Vocês pensam com razão que eu me coloco essa questão ao dar um curso. O blablá garante perfeitamente uma função de comunicação. Ele assegura muito bem o que Jakobson chama a função fática, a função de manter contato com o outro. Quanto mais o blablá é vazio, mais ele manifesta a direção para o Outro, o gancho que o prende ao Outro. Quanto menos informações a fala contiver, mais ela é fática. A aparola nada tem de fática. Por isso eu a chamava,
há pouco, autista, num uso um pouco rápido do termo. A aparola é no que se transforma a fala quando é dominada pela pulsão, quando ela não garante a comunicação, mas o gozo. É o que corresponde à fórmula de Lacan no Seminário Mais, ainda: “Ali onde isso fala, isso goza”9, que significa no contexto: isso goza de falar.
Há, então, alguma coisa a situar que se satisfaz nesse blablá, e se satisfaz no nível do inconsciente.
Lacan tentou avançar no Seminário Mais, ainda uma conjunção radical do isso fala com o isso goza, ou seja, do Outro lacaniano com o isso freudiano ou groddeckiano. Trata- se da conjunção do que, no grafo, é distinguido como: o isso fala impõe sua estrutura ao isso goza. Trata-se efetivamente do casamento do vaso de barro com o vaso de ferro. O vaso de barro do Outro acaba despedaçado pelo vaso de ferro do isso. Assim, Lacan foi levado necessariamente a examinar o axioma o inconsciente é estruturado como uma linguagem, que
pertence ao primeiro ternário. Ter dito: o inconsciente
estruturado como uma linguagem incomodou enormemente Lacan, o que é demonstrado pelo fato de que, periodicamente, ele volta a isso. Ele repete: “eu disse o inconsciente estruturado como uma linguagem.” E simplifica a questão: “Lalíngua, a aparola, ali onde isso fala isso goza, é exatamente o que eu disse ao dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem”10. Eu o cito no capítulo ‘A outra satisfação’, no qual introduz essa conjunção totalmente inédita. E ele a demonstra.
Acrescentemos o comentário que se impõe, aliás, três comentários.
Primeiro: quando ele diz isso e o repete, não é verdade. O inconsciente estruturado como uma linguagem foi feito, ao contrário, como ele mesmo disse – citei frequentemente esta frase de “Função e campo da fala e da linguagem”, que é de fato uma referência – “para a desintricação que produzem entre a técnica de decifração do inconsciente e a teoria das pulsões”11. Foi feito justamente para colocar de lado a pulsão, ou o instinto, e isolar bem os fenômenos de sentido. Portanto, se ele o repete tão frequentemente e de maneira afirmativa, é justamente porque isso não é verdade.
Segundo: quem pode dizer a Lacan isso não é verdade? Há pessoas que não o amam; não é o meu caso. Trata-se de uma reinterpretação da fórmula inicial, uma autoreinterpretação criativa. Na verdade Lacan – ninguém entendeu isso – com uma arte extraordinária, chega a nos demonstrar que essa frase pode também querer dizer o que ela não significava em 1953. Vale a pena acompanhar a argumentação em detalhe, porque ela nutre justamente criações especialmente delicadas e interessantes.
Afinal, é fácil dizer: Eu me enganei. Todas essas questões não se situam no nível do erro. É fácil dizer: Esqueço o que disse; começo algo diferente. No entanto, é muito mais forte não deixar nada para trás, retomá-lo, vestir a princesa, após tê-la despido, com novos adornos, e mostrar
que ela é agora, por exemplo, uma republicana. É o que Lacan faz e, nesse caminho, é muito mais interessante.
Terceira – quando ele diz: é o que eu digo, basta acrescentar um marcador temporal – É o que eu digo agora, ao dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem.
A interrogação de Lacan chega a questionar este inconsciente estruturado como uma linguagem e, a partir desse fato, ele coloca a obra inteira a trabalho. Percebese que isso não encaixa perfeitamente, que às vezes é preciso forçar um pouquinho. Mas, de qualquer forma, isso assinala que os próprios fundamentos estão em questão.
É isto que ele propõe como gozo da fala, a Outra satisfação, a que se fundamenta na linguagem e é distinta do que seria o puro gozo do corpo não falante.
Mas a própria expressão gozo da fala pode deslizar, sem que se perceba o valor que deve ser dado a ela. Analistas ortodoxos – como eles se chamam – estavam prestes a colocar isso no registro da pulsão oral. Não é esse o valor próprio que Lacan dá a esta expressão, gozo da fala.
É preciso dar um valor radical a essa expressão, ou seja: o gozo fala. A fala é animada por um querer-gozar. Não se trata apenas de demanda. Seria possível dizer que a demanda visa uma necessidade, uma satisfação, inclusive um gozo e que, portanto, esse querer-gozar já estava presente na noção de demanda, porém um querer-gozar que passa, que é dominado, pelo querer-dizer.
Para colocar a fórmula o gozo da fala em seu justo lugar, é preciso inscrevê-la ao lado da fórmula: Eu, a verdade, falo, que pertence ao contexto do primeiro ternário. No primeiro ternário, Lacan resume as formações do inconsciente, a análise por Freud do primeiro lapso, dizendo: Eu, a verdade, falo. A verdade fala, e ela diz Eu.
Quando ele evoca o gozo da fala, trata-se da fórmula simétrica e oposta a esta. O inconsciente estruturado como uma linguagem implica que a verdade fala, enquanto que, no contexto de lalíngua e da aparola, é o gozo que fala.
Isso conduz, aliás, a uma inversão dos valores da fala vazia e da fala plena, tal como Lacan havia trazido no início de seu ensino. A fala vazia é a fala oca, enquanto a fala plena é aquela cheia de sentido – como Maria cheia de graça.
Nesse contexto, talvez se fique muito perplexo diante do que escrevi na linha de cima: a interpretação com um ponto de interrogação.
Quando se trata do contexto da fala, quando é a verdade que fala no lapso, no ato falho, a interpretação tem seu lugar próprio. Ela tem por finalidade fazer surgir um efeito de verdade que, seja qual for a maneira com que ele seja modalizado, contraria o efeito de sentido, de verdade, anterior, ou seja, aquele que resultava do que a verdade dizia na fala do analisante. Mas o que se pode fazer com a interpretação quando se trata da aparola, quando é o gozo que fala? Interpretar a verdade,
certamente. Interpretar o gozo!
III
De onde vêm os dois p de l´apparole? Como indiquei da vez passada, vêm da palavra appareil, aparelho. Lacan já avança nesse sentido em Mais, ainda, ao evocar os aparelhos do gozo pelos quais a realidade é abordada. Aliás, ele reduz esse plural basicamente à linguagem como aparelho do gozo, mas, evidentemente, também poderíamos considerar a fantasia como um aparelho do gozo. Normalmente, não se considera que a realidade seja abordada pelos aparelhos do gozo. Considera- se que a realidade é abordada pelos aparelhos da percepção, pelos aparelhos da representação, pelos aparelhos da consciência. Nesse Seminário, é em relação a isso que Lacan formula que ela é abordada pelos aparelhos do gozo. É abordada por tudo o que serve para gozar.
Podemos nos deter um pouco na palavra aparelho,
instrumento, engenho. Mas outros valores são atribuídos a aparelho. O aparelho é um apresto, o que está preparado. O
Robert diz: é o que está à mão. Isso nos faz pensar no estando-sob-a-mão de Heidegger, que é o utensílio, o que está próximo. É aquilo que foi arranjado, disposto, preparado de antemão.
O termo aparelho – que me agrada muito – tem duas vertentes, uma do lado do semblante, e outra do lado do útil. Por um lado, o aparelho é a demonstração exterior dos aprestos, portanto relativo a tudo o que se refere à bela aparência, ao aspecto, à impressão produzida pelo conjunto do que está à disposição. Então, há sempre no aparelho
magnificência de pompa, de ostentação.
É mais delicado quando se evoca o aparelho simples. Para nós, ainda ecoam nos ouvidos, a partir de Racine, as palavras de Nero ao descrever a paixão amorosa por Juno pela qual foi tomado. Estes dois versos condensam o enunciado de uma fantasia: Bela, sem ornamento, no simples aparelho/De uma beleza que se acaba de arrancar do sono. O aparelho jamais foi melhor evocado que nesses versos, nos quais é abandonada toda a pompa, a ostentação. Trata-se, ao contrário, do aparelho mesmo da surpresa e da nudez. Eis uma das vertentes de aparelho. Temos aqui de fato a fantasia, aparelho do gozo.
Por outro lado, há a vertente do útil, já que um aparelho é uma reunião, um ajustamento, uma montagem que possibilita realizar uma função. Essa montagem constitui uma totalidade, cujos elementos foram reunidos para servir.
Há então a vertente semblante, com todas as suas nuanças, e também a vertente utilitária, funcional.
Um aparelho é tudo que serve para alguma coisa e que não é simples. Não se trata da ferramenta. O aparelho implica certa complexidade.
Estou pronto para lhes dar – não hesito – todo o valor que tem esta notação de Lacan: a linguagem, aparelho do gozo. Estaria mesmo decidido a construir o conceito de aparelho como um conceito oposto ao de estrutura.
A linguagem é uma estrutura, mas defini-la como aparelho do gozo talvez implique em substituir, no nível que convém, o conceito de estrutura pelo conceito de aparelho.
O aparelho é uma montagem, mas uma montagem que pode ser mais heteróclita que a estrutura e que é, sobretudo, poderosamente finalizada. Uma estrutura pode ser decifrada, construída, mas dentro um pouco do elemento contemplativo. É preciso acrescentar coisas, como a ação, para que a estrutura comece a funcionar. Já o aparelho é de saída conectado a uma finalidade, aqui uma finalidade de gozo que ultrapassa a dita finalidade de conhecimento da realidade. Então, eu gostaria de considerar que o conceito de estrutura pertence propriamente ao contexto definido pelo primeiro ternário, e que talvez tenha o aparelho, como seu correspondente, no outro lado.
Ao empregar o termo aparola, Lacan a apresenta como uma palavra-monstro, cujo equívoco pede que acolhamos. A expressão palavra-monstro não deixa de evocar aquela de Leiris que citei na vez passada, os monstros orais que se originam da língua. Lacan usa este termo aparola num escrito, a propósito do grafo do desejo. Ele o diz como por acaso, acrescentando: “Esse aparelho (…), no qual se representa a aparola (…), que se faz a partir do Outro”12. Toda a questão é saber se a aparola é de fato compatível com o Outro.
Eu situava, como dificuldade, o lugar da interpretação nesse novo contexto em que não há lugar para o diálogo, para a comunicação intersubjetiva, mesmo modificada pela introdução do grande Outro.
O problema é o não-diálogo, o ND13.
Sobre isso, há uma indicação de Lacan – vou dá-la a vocês – que poderia caber hoje. Evocando o ND, o nãodiálogo, e percebendo bem que uma posição absoluta em relação ao não- diálogo deixa a interpretação exposta, ele indica: O não- diálogo tem seu limite na interpretação, pela qual se
assegura o real.
Como disse, seguimos Lacan em uma zona ainda não muito balizada, e onde os circuitos se cruzam. Quebrei um pouco a cabeça sobre essa frase, dizendo a mim mesmo que, num dado momento, ela poderia me servir de bússola nessa zona delicada, na qual nos deixamos conduzir com algumas reticências ao nos darmos conta de que estamos prestes a demolir totalmente a casa que construímos.
É interessante considerar as coisas desse modo. Primeiramente, é prático. Se não há diálogo, não há interpretação. Se quisermos dar um lugar à interpretação é preciso levar ao limite o não-diálogo. Não ocupe todo o espaço! Ou seja, é preciso colocar em algum lugar um limite ao não-diálogo, não se restringir a dizer: acabou, já que de qualquer forma persiste algo como interpretação.
É preciso um limite ao monólogo autista do gozo. E acho muito iluminado dizer: A interpretação analítica faz limite. A interpretação tem, ao contrário, uma potencialidade infinita. Degustamos a infinitude da interpretação, que nutre as bibliotecas. A interpretação é a tal ponto do sentido, que basta um significante a mais, não importa qual
- ele pode ser escolhido com discernimento –, para reinterpretar a posteriori.
Vocês podem experimentar isso no comentário de Lacan. Abram o dicionário ao acaso e tomem uma palavra, por exemplo, o número inteiro. Sobre o número inteiro e a psicanálise é possível escrever quilômetros. Depois, podem seguir a atualidade, que permite uma reinterpretação contínua. Ou seja, a interpretação, quando é do sentido, longe de impor limite, é ilimitada. Mas essa frase toma as coisas efetivamente na contramão: ela situa a interpretação analítica não só como finita, mas diz que ela limita. A interpretação analítica limita.
O que também gosto muito nessa ideia de que a interpretação analítica faz limite, é que ela situa a interpretação mais como uma contenção do que como um relançamento – ou seja, o contrário do que poderia ser uma
prática da interpretação. Há também nessa frase a noção de que não é o sentido que se assegura pela interpretação, como seria normal no contexto do primeiro ternário. É o real que se assegura pela interpretação.
O que podemos fazer com isso? Em que o real é assegurado pela interpretação? Isso leva a pensar que, na fala como ND, não-diálogo, no monólogo da aparola não há real ou, ao menos, nesse nível o real não está assegurado.
O que isso pode de fato significar? O que Lacan visa com esses truques? Nesse ponto não estamos seguros de que Lacan se dirija a nós. Tentamos pensar ‘como se’, ou seja, como se ele se dirigisse.
Sobre esse monólogo, se pensarmos na associação livre – que podemos tomar como um exercício da aparola, o de dizer qualquer coisa – toda a tese de Lacan, por exemplo em Mais, ainda, é mostrar que esse dizer não importa o quê conduz sempre ao princípio do prazer, ao Lustprinzip. Quer dizer, ali onde isso fala isso goza. É o comentário sobre isso. Particularmente porque, ao colocarmos entre parênteses os interditos, as inibições, os preconceitos, etc., quando a fala se põe a girar nesse nível, há uma satisfação da fala, ou seja, tudo vai bem.
Por isso Lacan, ao introduzir a noção de gozo da fala, faz uma reflexão sobre o dizer que tem êxito, etc. Trata-se do mesmo ponto de vista do que ele enuncia, em “Televisão”, quando diz: “o sujeito é feliz”. Sejam quais forem seus sofrimentos, no nível do inconsciente, ele é sempre feliz14
– ou seja, a pulsão sempre funciona como convém, à diferença do desejo.
O que isso significa, senão que nesse nível não há impossível? No nível da pulsão, no nível em que sujeito é feliz, no nível em que isso fala isso goza, há satisfação, tudo vai bem. Nesse regime, não se pode assegurar nenhum real como impossível. Nesse nível, a realidade só é abordada pelos aparelhos de gozo, ou seja, a realidade fantasística. Há a significação fantasística e mesmo a interpretação sem limite
da aparola, mas não há real assegurado. No nível em que o sujeito é feliz, o real não está assegurado.
Isso indica qual poderia ser o lugar da interpretação analítica, na medida em que ela interviria na contramão do princípio do prazer. Seria preciso formular, seguindo a linha sugerida por Lacan – enfim, sugere! Ele devia ter o aparelho da coisa, enquanto nós estamos tentando reconstruí-lo –, que a interpretação analítica introduz o impossível.
Nesse êxito pulsional fatal – mesmo no âmbito do sofrimento, isso funciona, o sujeito é feliz – no nível aqui determinado, a interpretação analítica sublinha o fracasso presente no êxito da aparola. Tal fracasso, indicado por Lacan em Mais, ainda, é que toda essa felicidade não permite garantir o real da relação sexual. Não desenvolverei isso, apenas indico seu lugar nesse contexto.
Se tomarmos as coisas por aí, isso tem consequências. Se a interpretação analítica é o meio pelo qual se assegura o real, então ela é da ordem da formalização, se admitirmos que apenas a formalização matemática atinge um real. É isso que Lacan explora.
Isso implica que, como a formalização, a interpretação analítica deve ser feita ao contrário do sentido. Lacan evoca mesmo que poderíamos dizer a contrassenso. Aliás, o equívoco é justamente tomar as coisas pelo contrassenso.
Se quisermos – mantenhamos a esperança – dar novamente um lugar à interpretação analítica no segundo ternário, é preciso que ela tenha valor de formalização da aparola. Isso quer dizer que a interpretação analítica, assim como a formalização, aceita, assume, suporta certo isso não quer dizer nada.
Trata-se de um modo um tanto especial de interpretação. Toda interpretação consiste em formular isso quer dizer outra coisa – enquanto que aqui, a redução ao isso não quer dizer nada está no horizonte. Poderíamos mesmo dizer que, na interpretação analítica, a extração do isso quer gozar passa pelo isso não quer dizer nada, e que o
inconsciente, ao contrário, – por isso não se pode desconhecê-lo nesse estatuto – mascara, com o isso quer dizer, o isso quer gozar. Portanto, para reencontrar o isso quer gozar, é preciso passar pelo isso não quer dizer nada. Isso implica ainda outra coisa, que não cairia mal se fosse construído. É que, a exemplo da formalização, a interpretação no segundo ternário está mais do lado do escrito que do lado da fala. De qualquer forma, ela deve ser feita desafiando o escrito, na medida em que a formalização
supõe o escrito.
Chego ao final por hoje. Prosseguirei na próxima semana.
Tradução: Elisa Monteiro
1 Este texto, que ora publicamos em Opção Lacaniana online nova
série, é uma nova tradução feita a partir de “Le monologue de l’ apparole” de Jacques-Alain Miller, texto editado por Catherine Bonningue e publicado em La Cause freudieene, nº 34, L´apparole, et autres blablas, de novembro de 1996, pp. 07-18. Retoma a sétima lição (31 de janeiro de 1996) de ‘A fuga do sentido’,
Curso de Jacques-Alain Miller da Orientação Lacaniana (19951996), ensino pronunciado no âmbito do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII. Foi publicado pela primeira vez em português em Opção Lacaniana nº 23, de dezembro de 1998, pp. 68-
- Lembramos que a sexta lição desse Curso de J.-A. Miller foi publicada, com título “O escrito na fala”, em Opção Lacaniana on- line nova série n.8, de julho de 2012. Nesta nova tradução, revista pela equipe editorial de Opção lacaniana on-line nova série, seguimos a tradução da Jorge Zahar editora do termo l´apparole usado por Lacan em “Prefácio a uma tese” (2003[1970]). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 395.
2 LACAN, J. (1998[1953]). “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, pp. 229-237.
3 Idem. (1998[1957]). “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. In: Escritos. Op. cit., pp. 493-533.
4 NT: Seguindo o que acentua J.-A. Miller aqui, mantivemos no quadro acima os termos em francês entre parênteses, que correspondem à fala e à aparola, ou seja, la parole e l’ apparole, para que não se perca a ideia de que são homofonicamente idênticos.
5 LACAN, J. (2003[1971]). “Lituraterra”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, pp. 15-25.
6 LACAN, J. (1985[1972-1973]). O seminário, livro 20: mais, ainda.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 189.
7 NT: Os termos blablablá e blablá já foram incorporados ao Robert e ao Houaiss. Blablablá é definido no Houaiss como:
“conversa oca, sem conteúdo; conversa fiada”, e ainda como “exposição longa ou série de afirmações, por vezes de cunho mentiroso, de que se lança mão para mascarar o vazio do pensamento, para enganar alguém ou iludir sua vigilância”.
8 LACAN, J. (1985[1972-1973]). Op.cit., p. 77.
9 Idem. Ibid, p. 156.
10 MILLER, J.-A. apud LACAN, J. (1985[1972-1973]). “Aristóteles e Freud: a outra satisfação”. In: O Seminário, livro 20: mais, ainda. Op. cit.
11 MILLER, J.-A. apud LACAN, J.(1998[1953]).“Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: Escritos. Op. cit., p. 262.
12 LACAN, J. (2003[1970]). “Prefácio a uma tese”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 395.
13 NT: No original: le pas-de-dialogue, resumido por J.-A. Miller como PPD. Traduzimos por não-diálogo, e resumimos como: ND.
14 LACAN, J. (2003[1974]). “Televisão”. In: Outros escritos. Op. cit., p. 525.
Textos de orientação
O Punctum tem o prazer de anunciar a chegada de quatro novos textos sob a rubrica Textos de Orientação do site. Os três primeiros textos nos remetem diretamente ao cerne de importantes diretrizes epistêmicas que não devem ser esquecidas quando o assunto é linguagem, gozo e segregação. São eles O monólogo da aparola de Jacques-Alain Miller onde há a delimitação precisa no ensino de Lacan da passagem que ele opera da estrutura da linguagem ao registro de lalíngua; na sequência o Racismo 2.0 de Éric Laurent retoma as impactantes previsões lacanianas do crescente acirramento proporcionalmente intenso da expansão dos ditos “mercados comuns” com a globalização e por sua vez do racismo; e por fim Miquel Bassols em O bárbaro: transtornos de linguagem e segregação elucida com um exemplo prático a distinção norteadora na experiência analítica da segregação que é aquela inerente à estrutura da linguagem, da exclusão social que um sujeito pode sofrer como consequência direta de um não acesso ao campo da linguagem e da fala. O quarto texto A sessão obsoleta de Marcela Antelo está fora dessa série, mas não deixa de se enlaçar com esses outros três anteriores, uma vez que condensa as articulações mais amplas vistas acima ao que se produz no espaço de uma sessão analítica a partir do que de real da presença do analista pode se apresentar, seja a partir do seu corpo físico ou virtual e que está ligado a posta em jogo do desejo do analista, condição para que o encontro de um analisante com o real do seu gozo possa se dar e uma análise acontecer. Desejamos, uma boa leitura a todos!
Bruna Guaraná
Pela comissão de Site e Boletim do XXIV EBCF
Bibliografia e ressonâncias
É preciso avançar no campo social, no campo institucional e nos preparar para a mutação da forma da psicanálise. Sua verdade eterna, seu real trans-histórico não serão modificados por essa mutação. Ao contrário, eles serão salvos se apreendermos a lógica dos tempos modernos[1].
Tomo apoio em Coisas de fineza em psicanálise, já na primeira lição, para conversar com a citação de Miller, em Le neveu de Lacan, afirmando que a psicanálise é um acontecimento e não um fenômeno da civilização. Se é como acontecimento que ela instaura a cada vez, desde Freud, um novo regime de saber, é assim também que coloca no mundo um fazer sempre inédito. Como um modo de operar, que incide na clínica e fora dela, remando contra a maré do movimento do mundo – que em muitos momentos arrasta os psicanalistas –, a psicanálise insiste.
Como remar contra a maré e avançar no campo social ao mesmo tempo? Ao psicanalista cabe tomar posição para que uma análise seja possível, mas sua presença não se faz menos importante fora do espaço de uma análise, ainda que se faça apenas sob transferência, já que não há psicanalista fora dela. Pode-se recolher algo desses efeitos de presença no intenso trabalho que se articula em torno dos laboratórios do CIEN.
Judith Miller, na criação do Boletim Eletrônico do CIEN no Brasil, retoma a lição de Freud que situa a psicanálise em um lugar distinto de uma visão de mundo, uma Weltanshaung, “seja ela progressista ou humanista, baseada na ilusão de deter um saber que dá as soluções dos problemas”[2]. É na inter-disciplinaridade, com hífen, encarnando o signo da invenção, como propôs Philippe Lacadée à Judith Miller, que vem grafado o lugar vazio onde um saber singular pode vir a se alojar: “um laboratório opera uma modificação, uma mutação, uma perspectiva de subjetivação”[3].
Seguindo um pouco mais a citação, Miller afirma que avançar no campo social implica em “uma mutação da psicanálise em sua forma, sem modificar sua verdade eterna, seu real trans-histórico”. Se o CIEN é uma demonstração de que é remando contra a maré que se torna possível avançar no campo social, isso só se faz a partir da posição analisante, como aquela capaz de sustentar a presença do analista no mundo, aquela que se extrai do “real trans-histórico”. Mais uma vez, é no escrito que se aloja a marca do próprio acontecimento, fora de qualquer referência a contextos. Parece-me que é desde esta posição que podemos nos fazer ancoradouro para que acontecimento e sentido se enlacem, num imbricado atar e desatar, a partir do gozo, na remada de cada um.
Andréa Vilanova (EBP/AMP)
Posto que dar essa satisfação é a urgência que a análise preside, interroguemos como pode alguém se dedicar a satisfazer esses casos de urgência[4].
Nesse escrito de 1976, Lacan se coloca parceiro nos casos de urgência, na medida em que não os desconhece e fica a par da condição de urgência que se apresenta na experiência humana. Não por amor ao próximo, mas pelo lugar que um analista pode ocupar diante das urgências de satisfação, a ser levado em conta no tratamento.
Se nos anos 70 ele interrogava a posição do analista frente às urgências – o que o fez não tirar o corpo fora, levando-o, inclusive, a escrever – o que dizermos hoje se o nosso tempo é o de uma eclosão frenética onde a urgência dá o tom da demanda?
Que condições precisam ser manejadas para promover o acontecimento analista em condições tão pouco favoráveis, onde o tempo de compreender é suprimido diante da estupefação frente ao real do gozo opaco e sem lei?
“Persiste a questão do que pode levar alguém, sobretudo depois de uma análise, a se historisterizar ( hystoriser) de si mesmo”[5].
Nessa reunião entre história e histeria, autorizar-se de si mesmo – não sem os outros – e estabelecer-se enquanto analista após uma experiência que encontra o seu limite na satisfação que marca o fim da análise, desloca a questão. É com essa verdade mentirosa que se pode sustentar o “status de uma profissão recém – surgida”[6] promovendo, no espaço de um lapso, o inconsciente.
Os casos de urgência que sempre atrapalham o analista tornam-se, mais do que nunca, um desafio para a psicanálise do século XXI. No manejo de uma temporalidade que não é a da urgência, mas, a de um ato que estabelece pelo corte a reafirmação do analista como par. À maneira de um poema que se escreve e que nos possibilita dizer: analista, presente!
Cassandra Dias Farias (EBP/AMP)
[1] MILLER, J.-A. Le neveu de Lacan. Paris: Verdier, 2003, p. 124.
[2] MILLER, J. “Por que um Boletim Eletrônico do CIEN no Brasil?. Em: https://ciendigital.com.br/index.php/textos-de-referencia/
[3] Ibid
[4] LACAN, J. “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 569.
[5] Ibid. p. 568.
[6] Ibid.
Sobre a II Preparatória. Comentários e perguntas.
O relatório[1] aborda com rigor e de modo bastante vivo a subversão promovida por Freud e Lacan em relação ao tempo e inconsciente. Dá um passo a mais na direção de abordar a subversão introduzida no percurso de uma análise pelo acontecimento analista.
O texto abre um conjunto de questões que suponho irão emergir durante o debate. Antes de endereçar questões para Rosário e para o cartel, vou destacar alguns pontos para começar uma conversa.
Da leitura do relatório, extrai algumas questões que me tocaram. Começo com Freud, que subverteu a sua época com a invenção do inconsciente, inconsciente que desconhece o tempo e é inferido a partir de suas formações e manifestações clínicas interpretadas à luz do que “já estava escrito”. O tempo passa e o inconsciente permanece com seu automatismo de repetição.
Lacan extrai da repetição freudiana uma nova aliança temporal que não é cronológica, é lógica[2]. A subversão temporal lacaniana promoveu inversões importantes. A inversão de perspectiva do inconsciente como o já escrito para o inconsciente a advir conta com a presença do analista que testemunha um roteiro que leva de volta ao futuro. O lugar da determinação inconsciente cede lugar à contingência, retira o peso do que “estava escrito” no inconsciente como um “para sempre” e promove um deslizamento para um “desde sempre”. Daí a importância da presença do analista e o manejo do tempo da sessão regida pelo tempo lógico.
O manejo do tempo incidindo na superfície que se desdobra na fala, ao ser rompida pelo corte do analista, coloca em relevo o furo encoberto pela manta tecida pelo significante e pelo objeto a em sua função de o bordear. Podemos dizer da importância da presença do analista como corte e ato que ao furar a significação inconsciente que se extrai da construção discursiva relacionada à experiência traumática, redireciona a prática analítica para a dimensão real do gozo sem sentido que se experimentou. O que se visa nas letras que escrevem as marcas da vida não é o sentido, e sim, o que do encontro traumático do significante com o corpo se perde, deixa restos que se inscrevem como furo ou excesso.
O relatório aborda modalidades da presença do analista no percurso de uma análise. Analista se presentificando como corte; interpretação como ato incidindo na equivocidade da palavra; ou na repetição como automaton ou na iteração do UM, liberando algo do real do gozo e redirecionando uma análise da repetição para um tempo de invenção. Destaco ainda o analista se presentificando como surpresa, tempo do acontecimento imprevisível, precipitando por um instante fulgurante a irrupção do real e a abertura a um novo modo de leitura e escrita do inconsciente que não se decifra, mas que toca o sentido real.
O fragmento do passe de Anna Aromi nos dá o testemunho de uma re-leitura do que estava escrito, e de uma re-escrita que tem como efeito uma nova experiência de satisfação.
Destaco ainda um aspecto muito valorizado no relatório que enoda o clínico, epistêmico e o político, ou seja, a responsabilidade ética do analista na prática clínica, na instituição ou na interlocução com a cidade, de sustentar uma presença que introduz pausas, intervalos a cada vez que o tempo da urgência regido pelos imperativos e pela pressa, recusa o tempo do inconsciente e sua escansão.
A perspectiva de algo novo na experiência do inconsciente numa análise atravessa o relatório. A presença do analista, instaura uma nova temporalidade que faz acontecimento e o que é da ordem do acontecimento propriamente dito é tudo aquilo que sai do círculo do possível e necessário. O corte ou interpretação que se torna ato, opera na contramão do princípio do prazer: incidindo na conexão S1 – S2 que tende ao infinito, introduzindo o impossível da não relação. Esse é o sentido preciso que Lacan dá à afinidade do tempo e da contingência.
O analista de antemão não sabe o que vai acontecer na sessão, mas sua função o convoca à uma posição de abertura ao indeterminado, à contingência, que fura a regularidade da sessão analítica, abrindo à surpresa. “A surpresa diz respeito a um momento não homogêneo em relação ao restante do tempo”[3], instante relâmpago que se instaura num lapso de tempo em que a presença do analista se manifesta no fulgurar do inconsciente em sua dimensão real, ininterpretável, presentificando o gozo vivificado que reverbera no corpo do analisante.
O terceiro fragmento clínico é muito ensinante sobre os efeitos do manejo do tempo e a presença do analista. A analista se empresta à forma que a paciente inventou de fazer intervalos e utilizar mensagens de whatsapp, possibilitando a construção de uma nova amarração sinthomática construída em torno de um novo uso que faz de sua arte.
O efeito surpresa pode ser também demonstrado no fragmento clínico trazido por Rosário em que a analisante enquanto falava sobre suas crises de pânico em que sente seu corpo fugir, nomeia seu “jeito” de estar com o Outro como “agradador”. O analista, frente ao corte produzido pelo “agradador” ouve um dizer que se lê de outra maneira, significante novo que localiza o gozo do sintoma que toca o corpo.
Na perspectiva trazida pelo relatório, o lugar do analista não se reduz à destinatário do Outro do inconsciente. O analista, ele próprio, sujeitado ao inconsciente estruturado como falha, equívoco, mal entendido; tendo chegado o mais próximo do real em sua experiência de análise, conduz uma análise se oferecendo a encarnar o furo, o trauma, o que perturba a defesa frente ao gozo impossível de negativizar e simbolizar.
As vinhetas clínicas contribuem para demonstrar a intrusão do tempo libidinal que incide e reverbera no corpo falante assim como demonstra o manejo do que permanece vivo e se abre para uma nova escrita e leitura sem os efeitos imaginários e ilusórios do sujeito suposto saber. Interessa-nos interrogar e investigar a cada vez, em cada caso, o efeito do que se extrai de uma análise, que implica, como aponta o relatório, um novo saber fazer com o sinthoma, dando a ele a chance de funcionar não como entrave, mas como modo de uma nova satisfação. Nesse trabalho de corte e reconfigurações e rearranjos sinthomáticos, ou como sublinha o relatório, de um advir de uma nova leitura e escrita, se destaca a questão do objeto a na clínica borromeana, sua função de inscrever um vazio através do qual se enodam os registros R.S.I., dando margem a uma nova articulação da função superfície e tempo.
O relatório nos leva a viajar no tempo do inconsciente. Passamos pelo tempo do a posteriori, pelo tempo presentificado pelo analista como surpresa e seus efeitos disruptivos e pelo tempo escandido no instante de ver, tempo para compreender e momento de concluir.
Concluo, interrogando. O que podemos avançar em torno do manejo do tempo e do que se extrai de uma análise hoje que implica um reviramento na função superfície e tempo?
Podemos supor que o tempo descontínuo introduzido pela manifestação do analista como irrupção do real durante o percurso de uma análise, rompendo as coordenadas do espaço e tempo da sessão, tem alguma afinidade com o tempo da urgência subjetiva?
Glória Maron (EBP/AMP)
[1] N.E.: Comentários e perguntas da autora na II Preparatória do XXIV EBCF, sobre o texto de Maria do Rosário do Rêgo Barros, publicado neste Boletim, a partir do trabalho em cartel composto por Fernanda Otoni Brisset, Flávia Cêra, Patrícia Badari, Cleide Monteiro, Nora Gonçalves, Denizye Zacharias, Marcus André Vieira, Laura Rubião e Maria do Rosário do Rêgo Barros (Mais Um).
[2] MILLER, J.-A. Los usos del lapso. Paidós. Buenos Aires.
[3] _______. A erótica do tempo. Latusa. EBP Seção RJ. 2.000.
Tempo, corte e ato: o acontecimento analista
“Repetir repetir – até ficar diferente
Repetir é um dom do estilo”[i].
O manejo que o poeta Manoel de Barros se permite fazer com as palavras nos oferece uma ocasião para apreender a relação do tempo com a invenção. Repetir até ficar diferente, repetir até extrair da repetição um estilo.
Palavras de poeta que nos levam a interrogar a relação do inconsciente com o tempo, nos introduzindo em uma dimensão que pode subvertê-lo e não só deixando-o fixado em um escrito a ser repetido indefinidamente, para prová-lo como necessário incansavelmente.
Nosso eixo de trabalho vai nos permitir interrogar como se entrelaçam o epistêmico, o clínico e o político na presença do analista em nosso tempo. Um tempo de imperativos de gozo imediato, de objetos prêts-à-porter, que dificultam o consentimento com os intervalos, as suspensões, que estejam a serviço não de formas de evitação do real, mas de precipitação ao ato que tenha valor subjetivo.
Convidamos desde já nossos colegas a nos transmitirem em nosso Encontro como experimentam esse entrelaçamento em sua prática no consultório e fora dele.
O tempo subvertido: Freud
A psicanálise foi inventada por Freud a partir do seu encontro com as manifestações corporais das histéricas, fenômenos de uma época que escapavam às explicações e ao controle da ciência. Freud as escutou e se fez presente de forma diferente dos médicos de sua época. Ele não só as escutou, mas extraiu de sua escuta algo que as re-situava em relação aos fenômenos corporais dos quais padeciam. Freud apostou que as histéricas poderiam dizer algo sobre o que lhes escapava. Ele abriu um lugar de endereçamento para a estranheza que emergia nos lapsos, nos sonhos, nos chistes e assim inventou o inconsciente atemporal que acolhe a repetição e o leva a buscar na textura histórica o que irrompe como acontecimento. Ele recolhe a incidência traumática dos acontecimentos que vêm à tona nessas manifestações. Um passado que se faz presente.
O tempo subvertido: Lacan
Lacan adere à hipótese do inconsciente freudiano[ii] e à subversão temporal que ela introduz. Ele a coloca a trabalho, introduzindo novos elementos para ler o que no presente permanece vivo das marcas deixadas por acontecimentos passados. “Algo comparável a um escrito que é condição da fala e não sua versão acabada. Um ‘desde sempre’, ao invés de um ‘para sempre’”[iii]. O desdobrar linear dos acontecimentos é subvertido pela dimensão do a-posteriori, da retroação e será possível tirar novas consequências dessa reversão temporal. Ao interrogar, ao longo de seu ensino, esse “já escrito”, surge a necessidade lógica da invenção do objeto a que vai incidir na forma de estar presente e de escutar seus pacientes. O manejo do tempo da sessão ganha um lugar decisivo na operação analítica.
O sujeito-suposto-saber em questão
Articulado ao analista como objeto a, Lacan estabelece o matema da transferência a partir do sujeito-suposto-saber, estabelecendo uma “nova aliança entre o tempo e o inconsciente”[iv], que terá consequências no manejo do tempo na sessão e na relação com o saber[v]. Para dar esse passo, Lacan considerou o que se passava no avesso da suposição e foi buscar no tempo lógico a presença do tempo libidinal.
O movimento de retroação temporal que se produz numa análise vai visar na textura dos significantes que emergem e se escrevem no “quadro do saber” [vi]o furo produzido por sua incidência traumática. E a sessão analítica vai ser regida não pelo relógio, fator externo ao que se passa nela, mas pelo que ali acontece.
O analista não se reduzirá a fazer parte do conceito do inconsciente como lugar de endereçamento[vii]. A sua presença incidirá de forma viva no corte e na interpretação em ato. A sessão, portanto, não se orienta pelo tempo em sua duração, mas pelo instante em que fulgura o estava escrito, quando ele se apresenta e se presentifica, pois o inconsciente ganha uma dimensão de separação quando se localiza o objeto em jogo no “já escrito”.
Será na estrutura de mal-entendido, de engano, própria do sujeito suposto saber[viii], que Lacan vai encontrar a possibilidade da emergência do ato do analista. Só quando se consente com o S(A barrado), a falha estrutural no Outro, impossível de anular ou de preencher, é que o ato se dá em sua dimensão de certeza.
No apólogo dos três prisioneiros, o ato de saída da prisão só se torna possível, quando se corre o risco. No a posteriori das escansões, no movimento de uma parada e um partir de novo, que leva à certeza antecipada. Os três tempos lógicos que Lacan extrai desse apólogo: instante de ver, tempo para compreender, momento de concluir, trazem à tona que o que se tem para compreender só leva à saída se permitir uma conclusão enviesada (de travers)[ix]. O tempo para compreender toma outra dimensão a partir do corte e da interpretação que toca na equivocidade da palavra[x]. Não é uma compreensão sem limite na duração da sessão, mas uma compreensão que leva em conta o que faz corte.
O encontro do sujeito com a linguagem produz efeitos no corpo que ficam inscritos como excesso e como furo. Lacan pôde destacar do traumatismo (troumatisme), o furo (trou), naquilo que se produziu como excesso no gozo sem sentido que se experimentou. No movimento de retroação temporal que a experiência do inconsciente em uma análise provoca no encontro com um analista, algo pode acontecer que abre, perfura o excesso que ali se instalou, faz aparecer o vazio.
Nossa questão é de saber como fazer do entrave que representa o sintoma, um modo de circunscrever o vazio, que possa extrair do gozo sua dimensão mortífera, mortificante.
A presença do analista, para tanto, parece crucial para que isso possa acontecer: em uma sessão de análise, uma paciente conta sobre suas crises de pânico em que sente seu corpo fugir. Sem nenhum acontecimento extraordinário que desencadeasse tais crises, fala de seu “jeito” de estar com o Outro, sempre atravessada por um vai-e-vem de preocupações em que ressalta uma grande necessidade de agradar. É quando nomeia esse seu jeito como “agradador”. A analista repete a palavra e, em seguida, corta a sessão ouvindo, da paciente, os ecos da surpresa de uma palavra que nem sequer existe, mas que, no entanto, diz. O analista como corte circunscreve, no que ouve, um dizer que se lê de outra maneira. No “agradador” há um gozo do sintoma que toca o corpo. O corte é sempre uma aposta, ato analítico que visa o gozo alojado na materialidade (moterialité) significante.
O que perfura já estava lá, embora encoberto, a letra no significante, que dá ao objeto a de Lacan um novo lugar, o de inscrever um vazio através do qual podem se enlaçar os registros simbólico, imaginário e real para sustentar o sinthoma. O furo que a letra inscreve no significante abre para um novo saber fazer com o sintoma, dando a ele a chance de funcionar não como entrave, mas como modo de proporcionar uma nova satisfação. Anna Aromi, em seu relato de passe diz:
“O fim de minha análise me permitiu descobrir as letras com as quais minha fantasia foi escrita. Não somente eu pude lê-las – o que já é muito -, mais ainda me servir delas para re-escrever alguma coisa de diferente. A análise, nesse sentido, é como uma re-escrita”[xi].
E ela acrescenta: “A alegria do passe é uma alegria advertida do que não está escrito para sempre, mas a re-escrever constantemente”[xii].
Uma análise é a oferta de um encontro vivo que permite manter aberto o furo que abre a novas escritas, que dá a chance de manejar de forma diferente as letras que marcaram nosso corpo e que tornaram necessária a construção de sintomas, de ficções para tratar o excesso de gozo opaco que elas deixaram.
Uma análise nos ensina que o rodar em círculos da repetição deixa no centro um vazio, que só terá valor de abrir para o novo a partir da operação de corte sustentada pelo analista. Movimento que se desenvolve em espiral[xiii].
Clínica borromeana
O corte faz intervalo não só no que se repete na cadeia significante S1-S2, abrindo para outras leituras, mas por incidir na própria insistência do significante sozinho que não faz cadeia, que J.-A. Miller destacou como reiteração. Em nossa prática contemporânea, essa reiteração fica bem mais evidente. E coloca para o analista uma questão nova: como estar presente, como fazer corte para abrir brechas na insistência de um gozo opaco e sem sentido? O que está em jogo nesses casos não é uma busca de saber, de decifrar o que parece estranho ao sujeito. A demanda vem atravessada por um imperativo de gozo imediato, um mais e mais insaciável. A coragem ética do analista se fará presente em suas invenções para fazer valer pelo corte, intervalos que, em muitos desses casos, se exerce no próprio ir e vir às sessões. E isto torna fundamental a presença do analista com seu corpo em um lugar que provoque um reviramento no tempo e com os cortes possibilitando um novo enodamento entre superfície e tempo[xiv].
Uma vinheta nos ensina sobre os efeitos deste manejo do tempo, ao qual a analista se empresta à forma que a paciente inventou de fazer intervalos e de utilizar mensagens de whatsapp para transmitir suas construções. Ela procura um analista em razão de sucessivos desligamentos do Outro social não conseguindo se fixar ou se envolver no trabalho. Está perdida e imersa em uma multiplicidade de atividades dispersas. Às vezes fala de livros que leu sobre assuntos de seu interesse, mas não faz uso desse saber. Além disso, envia sempre fotos dos seus trabalhos de tecelagem. Após um episódio em que se angustia, suspende o encontro presencial com a analista mantendo só mensagens no whatsapp. A analista, presente como olhar furado, perfura a consistência imaginária e permite uma amarração tecida no manejo do tempo, abrindo intervalos entre o corpo e o pensamento, entre as alternâncias de presença/ausência, entre as dimensões do espaço e do tempo.
O ir e vir serviam de instrumento para a tecelagem que ela ia fazendo por intermédio de sua arte permitindo usá-la em outra função. Com o manejo do tempo a serviço da tecelagem, o analista acontece como presença sutil no tecido das invenções e nos imprevistos ao longo do percurso. Acolher esse tipo de paciente e poder sustentar essa prática como analítica requer tirarmos consequência da clínica borromeana que Lacan nos legou.
Contamos com o que vocês poderão nos transmitir em nosso Encontro do acolhimento em suas práticas de pacientes e de situações que, inclusive, poderiam parecer inaccessíveis à psicanálise, e que, graças à presença viva, em corpo do analista puderam ser tratadas.
A presença real do analista com seu dizer, com seu corpo pode funcionar como testemunha do que se perde[xv]. Esta indicação de Clotilde Leguil é fundamental para pensarmos o analista incluído no conceito do inconsciente[xvi], não apenas como lugar de endereçamento, mas com sua presença viva que contribui para não deixar desaparecer a manifestação contingente do inconsciente e sua função operatória na nossa prática, hoje com as novas demandas motivadas pela urgência de gozo que termina por se transformar em angústia. Quando o imperativo é gozar, o supereu fica solto nas suas exigências, com apoio do que vigora na nossa época. No encontro com um analista, no corpo a corpo da sessão analítica, que implica corte e ato, algo se perde e precisa de uma testemunha, para poder ter efeito de abertura para outra coisa, para algo que possa vir a ser assumido como um estilo, dito pelo poeta, ou como um sintoma, no dizer do analista.
Analista: presente! Como essa afirmativa subverte o empuxo de nossa época a viver o presente, sem passado e sem futuro, que leva a um vale tudo, eliminando a responsabilidade por suas consequências. Em que isso se diferencia do que se indica na frase da canção de Geraldo Vandré, “quem sabe faz a hora não espera acontecer”. Esse saber que faz a hora não é aquele sobre o passado com seu peso de determinismo, nem aquele do futuro como consequência inabalável desse passado. Mas um saber aberto à contingência, tocado pelo imprevisível.
Fiquemos atento às surpresas que a prática do psicanalista nos oferece.
Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros
(EBP/AMP)
[i] Barros, M. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016, p. 16.
[ii] Miller, J.-A. Los usos del lapso. Buenos Aires: Paidós, 2010.
[iii] Barros, R. do R. “Apresentação”. Miller, J.-A. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, p. 7.
[iv] Miller, J.-A. Los usos del lapso. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 14.
[v] Ibid. p. 91-116.
[vi] Lacan, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 254.
[vii] Leguil, C. “Presença do psicanalista como testemunha da perda”. Boletim Punctum Extra. Disponível em: http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/
[viii] Lacan, J. “O engano do sujeito suposto saber”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 339. “Na estrutura do engano do sujeito suposto saber, o psicanalista (mas quem é, e onde fica, quando é – esgotem a lira das categorias, isto é, a indeterminação de seu sujeito – o psicanalista?), o psicanalista, no entanto, tem que encontrar a certeza de seu ato e a hiância (béance) que o constitui”.
[ix] Lacan, J. Seminário Les Non-Dupes Errent. Aula de 09 de abril de 1974. Inédito.
[x] Brousse, M. H. “O equívoco”. Texto apresentado nas Jornadas da ECF, 8-9 de outubro 2011, Práxis lacaniana da psicanálise. “Esse é o princípio que dá ao equívoco seu valor de ferramenta em psicanálise, faz passar da necessidade repetitiva à contingência do possível. Para apreender-se com tal, o equívoco empurra à escrita, arrastão sinthoma até o real e não até o discurso, a um ‘tem sido assim, mas que a um ‘isso quer dizer’”.
[xi] Aromi, A. «Un littoral d’écriture». Mental : revue internationale de psychanalyse, n° 32. Ce qui ne peut se dire, ce qui s’écrit “. Novembro, 2014.
[xii] Ibid.
[xiii] Miller, J.-A. «Os trumains». Lição de 2 de maio de 2007 do curso de J.-A. Miller. A orientação lacaniana. O ultimíssimo Lacan (2006-2007). Versão estabelecida por Pascale Fari e traduzida em português por Vera Avellar Ribeiro. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/20-03-02_los-trumanos.html
[xiv] Lacan, J. Seminário Les non-dupes errent. Aula de 9 de abril de 1974. Inédito.
[xv] Leguil, C. “Presença do psicanalista como testemunha da perda”. Boletim Punctum Extra. Disponível em: http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/
[xvi] Lacan, J. O Seminário, livro 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
O sentido e os seus dejetos
“… a fantasia da Amazon é ter certeza de que a falta será saturada por um objeto do mercado global, que estará tão acessível a todo momento, quanto o saber na internet”[1].
I
Talvez a expressão mais usual para definir a função do analista, pelo menos no nosso meio, seja a de objeto, ou de “semblante de objeto”. O analista faz semblante de objeto.
Ou seja, o analista é aquele cuja presença torna possível que surja em cena, ou na cultura, o objeto, mas de certa forma transformado pela vestimenta do semblante. Penso que essa função de semblante atinge, aliás, não somente o objeto, mas também outras funções que se manifestam em uma análise, como de Outro, ou mesmo de sujeito.
Existe, como se pode ver, uma certa tensão na expressão, entre o objeto, – o objeto desnudo, digamos assim, mesmo que seja hipotético -, e seu caráter de semblante. Esta tensão pode, naturalmente, se manifestar com uma coloração afetiva, como nos mostrou nossa colega argentina Silvia Salman há alguns anos, no seu testemunho de passe.
Silvia defrontou-se, já para o final da sua análise, com um objeto, no caso representado pelo analista, que parece corresponder a esse súbito desnudamento: ela lhe deu o nome de “objeto estranho”, denominação oportuna, meio à la E.T.A. Hoffmann, que insere esse objeto na categoria freudiana do Unheimlich, traduzido em português por infamiliar. É um objeto que surge, não de uma acumulação progressiva de experiências, mas de repente, como na situação contada no texto freudiano, do senhor que irrita Freud ao irromper na cabine do trem onde Freud se encontrava, e que, após alguns segundos, é reconhecido como sendo ele próprio, Freud, cuja imagem lhe fora devolvida por um espelho[2].
II
A língua, assim como as experiências científicas, as relações sociais, ou mesmo uma escolha qualquer feita por alguém, têm algo em comum: todas produzem dejetos, entendidos aqui como seus resíduos finais, depois de cumpridos seus processos de produção.
Quando perguntamos, portanto, de onde vem tal vocábulo, e citamos tal termo grego ou latino, talvez tenhamos a impressão de que se trata de um processo direto, ou evidente. Na verdade, as palavras se formam ao longo de uma história tortuosa, cheia de encontros surpreendentes e de mudanças nos seus significados, o que faz com que nunca possamos ter, na prática, uma certeza absoluta de que tal palavra da nossa língua se origina realmente ou completamente de tal vocábulo latino ou grego, por mais que se pareçam formalmente. Ou então, uma palavra antiga, primitiva, pode ter dado origem a um conjunto extenso de outras palavras, que aparentemente não têm nenhuma relação semântica entre elas. Basta pensar no verbo latino fari, que, além de significar falar na nossa língua, deu origem a outras palavras que são distantes do sentido original: infante, nefasto, e tantos outros.
As palavras, assim como a própria língua no seu conjunto, estão sempre em movimento ao longo do tempo, e vão deixando restos que não são aproveitados explicitamente na produção do sentido. Ou até mesmo conduzem para um sentido oposto ao original. Lembro que na primeira leitura que fiz do Unheimlich freudiano, o que mais me impressionou foi o fato de duas palavras opostas, que em princípio deveriam excluir-se, pudessem significar a mesma coisa: heimlich e unheimlich.
O sentido, portanto, não recobre inteiramente a palavra. A rigor, ele é apenas um dos seus aspectos. Se recobrisse, não existiriam, para citar só dois exemplos, estas importantes produções da língua: a poesia e a ironia, que são maneiras de fazer vacilar a estreiteza do sentido. Em consequência, tampouco haveria o diálogo psicanalítico, que se dá em um espaço no qual se confrontam em permanência o sentido e os seus dejetos.
Em seu texto que chamou de A salvação pelos dejetos, Jacques-Alain Miller nos explica:
“…a descoberta freudiana (…) foi, como se sabe, primeiramente, a desses dejetos da vida psíquica, os dejetos do mental que são o sonho, o lapso, o ato falho e mais além, o sintoma”[3].
E, mais para o final do artigo, Miller define o analista de uma forma que me parece definitiva:
“O que os salva (…) é ter tido êxito em fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso”[4].
Esse novo discurso, chamado por Lacan de discurso do analista, é a maneira de tornar possível um laço social que inclua o dejeto.
Se Miller diz que o analista teve êxito nessa operação de “fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso”, é porque outros, sabendo ou não, fracassaram. Quer dizer, em outros momentos da História, ou mesmo agora, houve e há irrupções do objeto como dejeto da fala. O que há de particular – talvez inédito – no trabalho do analista, é ter incluído essa irrupção em um laço social. Esta é a grande novidade trazida pela psicanálise.
Em outras palavras, o dejeto, se por um lado é incompatível com o sentido, passa a ser, por outro, um componente necessário ao discurso.
Romildo do Rêgo Barros (EBP/AMP)
Presidente do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano
[*] Trabalho para a reunião preparatória do Encontro Brasileiro em 13/05/2021, em mesa (online) com Marcus André Vieira.
[1] LAURENT É., “Gozar da internet”. Disponível em: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/gozar-internet#:~:text=%C3%89ric%20Laurent%20%E2%80%93%20A%20internet%20transforma,portanto%20a%20todas%20as%20coisas.
[2] FREUD S., “O estranho”. Obras Completas. Vol. XVII, p. 309, Nota 1.
[3] MILLER J.-A., “A salvação pelo dejetos”. Correio. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. N. 67. Dezembro de 2010. p. 19.
[4] Ibid. p. 23.