por Jacques-Alain Miller[1]
1. O traumatismo Freud
Dicência[2] (disance) lacaniana
A perspectiva que lhes trago, hoje, tem seu ponto de partida a posteriori[3] . Inopinadamente, o que não quer dizer de modo inoportuno, ainda que isto os tenha importunado, eu me vi marcando no ano passado, por três vezes e de maneira não dissimulada, a distância que eu tomava, ou melhor, que se tomava, entre este eu (je) que lhes fala e a dicência lacaniana[4] .
distância & dicência
Eu disse dicência. Essa não é uma palavra que eu tenha forjado, mas sim um termo introduzido por Damourette e Édouard Pichon em seu Essai de grammaire de la langue française[5] , do qual Lacan o tomou. Aliás, ele teve um relacionamento pessoal com Édouard Pichon que, além de gramático, era psicanalista e acolheu favoravelmente o jovem Lacan nesse meio, dedicando-lhe um artigo em que deplorava, já naquela época, seu caráter incompreensível[6] .
A dicência é “a língua tal como falada pelas pessoas de um dado ofício”. Quanto aos hábitos profissionais, nossos autores fazem esta sensata observação: “Os termos técnicos que designam atos, ferramentas, produtos de um modo de atividade humana são freqüentemente ignorados pela maioria das pessoas”[7].
Digo dicência lacaniana porque essa língua me parece, hoje, ter uma extensão suficiente para que lhe poupemos o nome de jargão, mais pejorativo. Um jargão é a língua falada por um destes meios “que recorrem, seja por interesse, fantasia, ou tradições particulares, a certas construções frasais ou a vocábulos incompreensíveis para os não-iniciados[8] ”.
A distância da dicência lacaniana na qual eu me encontrava num certo momento foi suturada no ano passado, uma vez que – vocês são testemunhas – retomei meu ramerrame que nos levou, até o final do ano, através do Seminário: de um Outro ao outro[9] . Se relembro essa distância da dicência em que eu me encontrava é porque, definitivamente, ela me é preciosa e gostaria agora de fixar nela minha posição para este ano.
A propósito, digo a mim mesmo: talvez eu tenha estado desde sempre, sem o saber, nessa distância da dicência e talvez esse seja o segredo do que chamam minha clareza – é o que me chega de fora –, que seria devida, em última instância, ao fato de eu me esforçar para não me deixar levar pela dicência dos psicanalistas e também porque, à distância da dicência, deixo a Lacan a responsabilidade de seu dizer, o traço singular de seu dizer que é sempre amortecido na dicência.
Reação e resposta
Lacan formulou, assumiu sua singularidade de maneira evidentemente enigmática quando disse, em seu Seminário: o sinthoma: “É pelo fato de Freud ter verdadeiramente feito uma descoberta” – supondo essa descoberta como verdadeira – “que se pode dizer que o real”, a categoria do real da qual trata o Seminário, “é minha resposta sintomática”[10]. A descoberta suposta verdadeira, no caso, é o inconsciente. Lacan diz também: “Digamos que é pelo fato de Freud ter articulado o inconsciente que reajo a ele”[11]. O real seria assim uma reação de um, de um só, à articulação freudiana do inconsciente.
As duas palavras são ditas: reação e resposta. A resposta é sem dúvida de uma ordem mais complexa do que a da reação. Mas talvez este seja o termo menos significativo pelo fato de que Lacan ali está, se supõe estando, num traumatismo.
Como entendê-lo? Da seguinte maneira, é simples: a descoberta de Freud faz furo no discurso universal. Pelo menos essa foi a perspectiva adotada por Lacan, de saída, no que concerne a Freud.
E o que convencionalmente chamamos o ensino de Lacan constitui, em seu conjunto, uma resposta a esse furo. Sob modos variados, Lacan não cessa de demonstrar que essa descoberta não tem alojamento em nenhum outro discurso que a precedeu. Foi esse furo no universal – perspectiva tomada por Lacan em relação a Freud – que o precipitou na elaboração múltipla do discurso analítico, suplementar, a fim de dar moradia à descoberta de Freud.
Lacan falou do acontecimento Freud, assinalando com esse termo o corte introduzido por Freud, o que dele pôde se expandir. Eu, porém, falaria de bom grado do: traumatismo Freud.
O acontecimento Freud foi – Lacan a ele retorna muitas vezes, a cada uma de suas viradas e reviradas -, de saída, desconhecido, tamponado, a ponto de Lacan poder dizer que a famosa peste, na verdade, se revelara “anódina. Ali aonde ele [Freud] supunha levá-la” – os Estados Unidos – “o público se arranjou com ela”[12].
O que nos resta como ensino de Lacan provém de alguém que não se arranjou com ela. A ambição desse ensino, aqui presente entre nós, é a de repercutir o traumatismo-Freud. Nessa perspectiva, o que de fato podemos pegar nas malhas de uma dialética são as repercussões de um traumatismo.
Lacan o disse a propósito do enunciado do real, sob a forma de uma escritura, a dos nós: o enunciado do real sob essa forma “tem o valor de um traumatismo”. Ele o tempera ou explica falando do “forçamento de uma nova escrita”[13].
2. Inconsciente transferencial
Inconsciente // interpretação
Aqui está o que dá aos nossos sensatos estudos um dramatismo no qual não conto instalá-los. Prefiro instalá-los na dificuldade visando, tanto quanto me seja possível – em relação a mim, é claro -, balizar o que não passou para a dicência.
Para instalá-los, para nos instalar na dificuldade, tomarei o último texto, bem curto, dos Outros escritos[14]. Lacan o escreveu imediatamente depois de o Sinthoma – ele é datado de 17 de maio de 1976, ao passo que o Seminário do Sinthoma foi concluído em 11 de maio – e merece ser lido de perto. Eu o apresentarei cuidadosamente a vocês, abrevio quando necessário. Vejam como ecoa a primeira frase desse texto, feita de modo a ir direto ao cerne da questão: “Quando […] o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente”[15].
Isso pode nos parecer conhecido, pois o valor dos sem-sentido foi, desde sempre, enfatizado e posto em função por Lacan. Todavia, o que essa frase surpreendente comporta – se a observarmos de perto – é a disjunção entre o inconsciente e a interpretação, uma exclusão entre essas duas funções. Digo função no que concerne ao inconsciente, porquanto, nesse mesmo texto, Lacan fala da “função inconsciente”[16].
Isso é próprio para fazer vacilar o que acreditamos saber da articulação do inconsciente, visto tratar-se exatamente do avesso, por exemplo, da tese desenvolvida no Seminário 6: o desejo e sua interpretação, segundo a qual “o desejo inconsciente é sua interpretação”.
No citado texto, pelo contrário, temos de colocar uma dupla barra indicando o corte, a desconexão entre o significante do lapso e o significante da interpretação.
Significante do lapso // significante da interpretação
Alcançamos, aqui, em sua junção, o elo entre o famoso S1 e o famoso S2, que são de nossa dicência – significante primeiro, significante segundo –, o mínimo inscritível da cadeia significante acarretando, quando S1 se engancha em S2, que o significante 1 venha a representar o sujeito para o outro significante, o S2. Ora, nessa frase pode ficar imperceptível, por ser colocado na abertura – na abertura desse texto, mas no fechamento do Seminário sobre Joyce -, o fato de ela admitir, se a lermos tal como o faço aqui, que S1 não representa nada, ele não é um significante representativo. Isso ataca o que consideramos como o próprio princípio da operação psicanalítica, uma vez que a psicanálise tem seu ponto de partida no estabelecimento mínimo S1-S2 da transferência.
Uma transferência-causa
Aqui, S1-S2 tem uma outra escrita, homóloga, introduzida por Lacan em sua “Proposição sobre o psicanalista da Escola”[17]. Para que não nos enganemos, S1 é o significante da transferência em seu laço com S2, um significante qualquer. A fim de fixá-lo, Lacan o escrevia com um q. Isso implica traduzir em termos de significante a relação que se estabelece, que condiciona a operação analítica.
Desse laço se produz, em posição de significado, sob a barra colocada abaixo do significante da transferência, o famoso sujeito suposto saber.
S………..Sq
___________________
s (S1 , S2 , … Sn )
Disso resulta um sujeito. O sujeito resulta do estabelecimento dessa conexão. Sobre esse modo de significado, dizia eu, doravante estará “presente” o saber suposto, o conjunto informando sobre “os significantes no inconsciente”[18]. A engrenagem de um significante com o outro deve ser estabelecida para daí resultar um efeito de sentido especial que, desta feita, diga alguma coisa para todo mundo, mesmo sem ser uma expressão especializada. De um jeito ou de outro, todos chegam a lhe dar um sentido sem passar pela dicência lacaniana. E assim são então mobilizados, como dizemos, os significantes no inconsciente.
Ao longo da análise, o inconsciente toma seu status dessa posição suposta. Sabe-se que Freud conservou para o inconsciente, até o fim, o status de uma hipótese, de todo modo não verificável pelos meios aos quais ele cogitava apelar, a saber, as ciências da natureza. A partir daí, reconhecemos o status do inconsciente como sendo transferencial. Aliás, foi o que me levou a falar, previamente, de inconsciente transferencial[19]. A transferência, então, longe de ser efeito do inconsciente, tem, pelo contrário, em tudo o que de Lacan passou para a dicência, muito mais um lugar de causa. É pela transferência que tornamos presente, mobilizamos e lemos o inconsciente. Quando Lacan articula a transferência a partir do sujeito suposto saber, ele a liga estreitamente ao inconsciente, nós o observamos quando o vemos escrever, em “Televisão” : «a relação com o sujeito suposto saber é uma manifestação sintomática do inconsciente ”[20]. Conforme essa ótica, podemos dizer que o inconsciente freudiano é o inconsciente transferencial e supõe a ligação entre S1 e S2. Disso decorre a distinção a ser feita, a fim de sabermos onde estamos, entre o sujeito que consiste no saber dos significantes e o sujeito a quem esse saber é suposto. No estado de consistência tem-se, para retomar um termo sartreano, um em-si (en soi), e se poderia imaginar, pelo fato de esse sujeito vir a ser a quem esse saber é suposto, que ele teria o status de para-si (pour soi).
Saber do si/consigo (soi) sozinho
Encontraremos novamente esse si/consigo (soi) precisamente porque esta pequena frase do início nega o inconsciente transferencial: temos certeza de estar no inconsciente quando o espaço de um lapso não tem mais nenhum impacto de sentido ou de interpretação. Isso quer dizer: tem-se certeza de estar no inconsciente quando não opera a conexão transferencial. E, assim, Lacan acrescenta à sua abertura – o que é muito pouco lacaniano! Mas ele pode se permitir isso, embora precise ainda de um forçamento para conseguir incluí-lo – um pedaço de frase que incide sobre o “tem-se certeza”: “ sabe-se, consigo (on le sait, soi)”[21].
Quem é este si/consigo (soi), este si que sabe que isso não tem nem pé, nem cabeça, nem sentido, nem interpretação? Temos aqui um se (on) que não é, como Lacan pôde articulá-lo, o do inconsciente, mas um se (on) que é si/consigo (soi).
Cabe ressaltar que nesses pedacinhos de frases de Lacan se trata de um saber do si/consigo (soi) sozinho. Isso não acontece no famoso registro da intersubjetividade, nem mesmo no da inter-significância entre S1-S2, mas instala, desde o início, esse estranho ser cortado, sozinho. É o que se pode verificar na seqüência do texto, permitindo apreender o que Lacan formula, à sua maneira, nas entrelinhas: “ Mas basta prestar atenção para que se saia disso”[22]
Não temos aqui o eu (Je ) ou o eu (moi) como sujeitos do verbo. Temos um: “prestar atenção”, que se preste atenção para se sair disso, do inconsciente. A atenção, que nos parece uma propriedade psicológica, toma aqui um valor oposto ao do inconsciente no qual se tem certeza de estar. O que se sabe (ce qu’on sait), consigo (soi), sozinho.
Verdade mentirosa
O que é essa atenção incidindo sobre o lapso, para além do saber imediato de que isso não tem sentido nem interpretação? Eu só vejo uma forma de apreender o que é essa atenção, A atenção condiciona a associação. Associamos, eventualmente, à injunção do analista. Mas, aqui, onde ele está? Não o encontramos. Só o encontramos quando nos pomos a prestar atenção. E, de fato, nesse momento, há sentido e há interpretação.
O que se tentou apreender no espaço de um lapso já lá estava antes que a máquina da atenção, cujo funcionamento tem como pivô o sujeito suposto saber, se pusesse a funcionar. “Restaria, acrescenta Lacan, o fato de eu dizer uma verdade. Não é o caso: eu falho”[23]. Esta palavra, falha (ratage), que realcei numa outra ocasião[24], designa aqui o que se obtém pela associação e até mesmo pela famosa intervenção interpretativa do analista. Mas tudo isso falha! Passa ao lado do que havia surgido, o espaço de um lapso.
Para marcar claramente como é tênue aquilo em que ele se apega – a tenuidade absoluta, o fugidio, o evasivo -, Lacan trunca a expressão “o espaço de um lapso” dizendo: “o esp de um laps”, uma assonância e uma forma de truncar só possíveis em francês, para dizer que ali se tem certeza de estar no inconsciente. E acrescenta algo que ali está como uma repetição para fixar as coisas, uma afirmação valendo como tese: “Não há verdade que, ao passar pela atenção, não minta”[25].
Se vocês seguirem o fio que desenrolo a partir desses pequenos fragmentos, ver-se-á estigmatizada ou interrogada a verdade mentirosa da associação livre. Aqui, estamos numa perspectiva em que a associação livre, longe de ser a chave da verdade, libera uma verdade filha da atenção e, desse modo, uma verdade falhada.
Aqui, considera-se o Um-sozinho como pivô. Nesse texto, há pelo menos duas alusões de Lacan ordenadas a partir desse sozinho. Diz ele: “Não há amizade que esse inconsciente suporte”[26]. Não há amizade que seja o suporte do inconsciente.
O que a palavra amizade vem fazer aqui? Ela é a expressão genérica com a qual designamos o laço entre um e outro. Afinal, escandir o espaço de um lapso, solicitar a atenção, poderia passar por um movimento amical, de ajuda à associação livre.
Nesse texto, porém, a amizade é rechaçada por Lacan. O mesmo acontece, um pouco mais adiante, quando vocês verão Lacan se divertir, como bem o conhecemos – aqui, porém, isso toma um outro valor -, a respeito do amor ao próximo, uma outra figura do laço de um ao outro.
Do solitário ao par
Essas duas indicações de Lacan mostram que, aqui, devemos convocar a ficção do Um-sozinho. Dizemos ficção porque estamos na dicência lacaniana ou psicanalítica. Todavia, a situação analítica não nos parece fictícia. De modo especialmente ousado, ao mesmo tempo em que velado pela anedota, Lacan busca a palavra solitário para qualificar a operação freudiana. “Notemos que a psicanálise, desde que ela ex-siste, mudou”[27]. Isso é bem conhecido. Acompanhamos os remanejamentos de Freud no que concerne à sua teoria, a primeira e a segunda tópicas, e sabemos que, com Lacan, os remanejamentos foram constantes – mas não é disso que se trata -, e a própria pressão da profissão, seu nome, sua inscrição social, mudaram a análise. O que aqui se visa – é preciso ter o topete de escrevê-lo – é a psicanálise “inventada por um solitário”[28].
Todo mundo sabe, hoje, que Freud tudo fez por sua transferência com Fliess. A perspectiva trazida aqui por Lacan apaga o bom Fliess[29].
É por essa razão que ele o chama o “teorizador incontestável do inconsciente”[30]. Esta é uma perspectiva, é claro. Freud prestava atenção – e como! – em seus pequenos espaços de lapso. Mas isso deve ser evocado num outro momento. Precisamos primeiro ser cativados por essa nova figura de Freud, a de um Freud sozinho. Aliás, em seguida, Lacan afasta seus discípulos, que só o eram “pelo fato de ele não ter sabido o que fazia”[31]. Inconsciente, se quisermos. Portanto, mesmo os discípulos são afastados para deixar apenas o solitário em sua relação com o inconsciente, do qual temos certeza quando não há sentido.
Desse mesmo modo, Lacan pôde dizer que o real talvez fosse sua resposta sintomática à descoberta de Freud[32]. Isso vale para ele sozinho, a tal ponto que ele não tinha certeza de conseguir comunicá-lo. Embora o tivesse inserido durante muitos anos em seus Seminários, distribuídos agora em forma de livros, ele não tinha certeza de seu desdobramento.
Que a “psicanálise inventada por um solitário […] seja agora praticada aos pares” é uma inovação[33]. Eis o que desordena, faz sair do que há de engrenado na prática, pois nos pormos a operar em dois aparece como um fato número 2. Nesse sentido, Lacan marca sua posição dizendo: “Sejamos exatos, o solitário nos deu o exemplo”[34].
Eis as mudanças: da relação solitária e desatenta com o inconsciente à psicanálise aos pares, operando a partir do sujeito suposto saber, assim como a que se refere à conexão mínima significante aqui desfeita. Não nos esqueçamos: é a isso que Lacan se dedica no final de seu trabalhoso Seminário: o sinthoma. O que valoriza a escolha, entre parênteses, feita por ele, quando fala de Freud como o teorizador incontestável do inconsciente: “(que só é o que se crê – digo: que o inconsciente seja real – caso se acredite em mim)”[35]. Eis o que pode nos servir de pequena abertura sobre a presente questão. O inconsciente aqui delineado em filigrana é o inconsciente como real e não o inconsciente como transferencial. O que imanta Lacan no final de seu Seminário é um outro modo, uma outra perspectiva sobre o inconsciente que faz dele real. De algum modo, é o inconsciente como exterior ao sujeito suposto saber, exterior à máquina significante produzindo sentido aos borbotões, por pouco que a deixemos funcionar, conforme acreditamos que somos obrigados a fazê-lo.
Esse inconsciente como real é análogo, homólogo ao que evocamos inicialmente do traumatismo. De todo modo, é certamente um inconsciente não transferencial, formulado como um limite. No entanto, Lacan considera esse real como o que mais lhe é próprio na acolhida que reserva à descoberta de Freud.
Se quisermos recosturar os pedaços aqui dispersados por mim, em sua “Proposição sobre o psicanalista da Escola”[36] na qual é introduzido o pivô do sujeito suposto saber como condição da psicanálise, Lacan tem o cuidado de notar que o sujeito suposto saber não é real. Aqui, podemos então fazer um jogo entre o inconsciente como real e a operação que o tritura e também o dilui, ou seja, a do sujeito suposto saber.
3. Urgência
O final do texto, tão curto, não é um final qualquer, pois chama a atenção para uma palavra de peso cotidiano, aqui, porém, tendo um peso teórico: a urgência. “Assinalo que, como sempre, os casos de urgência me atrapalhavam enquanto eu escrevia isso”[37]. O que vale como um testemunho, se quisermos.
Do que se trata senão de um ponto de partida anterior ao estabelecimento do significante da transferência em sua relação com o significante qualquer? Lacan chama urgência a modalidade temporal que responde à ocorrência ou à inserção de um traumatismo. Ele descarta a situação analítica como sendo feita de um encontro e designa o que chamamos demanda do analisante em potencial como requerimento de uma urgência. A palavra urgência é, para Lacan, o nome do que aparece, do que põe em movimento o requerimento do analisante em potencial.
Essa palavra urgência aparece também quando Lacan evoca a questão da formação analítica, no texto “Do sujeito enfim em questão”[38], em termos anteriores aos de sua “Proposição”. Não consideremos mero acaso o fato de ainda encontrarmos, no final desse texto dedicado à noção de psicanálise didática como condição da formação – Lacan operando remanejamentos sobre sua concepção -, a evocação da urgência. “Agora, pelo menos, podemos nos contentar com a idéia de que, enquanto perdurar um vestígio do que instauramos”- é o momento em que ele está concluindo seus Escritos – “haverá psicanalistas para responder a certas urgências subjetivas, ainda que qualificá-los com o artigo definido fosse dizer demais, ou, mais ainda, desejar demais”[39]. Deixo de lado esse ponto em que ele não diz os psicanalistas, mas sim psicanalistas, a fim de enfatizar que a palavra urgência, urgências subjetivas, no caso, é posta como o colofão desse texto para validar que se trata, de fato, da função psicanalítica essencialmente relacionada, antes do começo da análise, com a urgência, ou seja, com a emergência do que faz furo como traumatismo.
Essa urgência foi também celebrada por Lacan em seu “Relatório de Roma”, no qual a importância desse termo para ele se evidencia, importância que devemos manter. E nós não deixaremos que ela se perca por termos criado, hoje, ainda que minimamente, dispositivos bastante inseridos na sociedade visando tratar a urgência. Esses Centros de urgência devem ser tratados com a dignidade dada por Lacan a esse termo[40]. Em seu “Relatório de Roma”, ele o ressaltou: “Nada há de criado que não apareça na urgência, e nada na urgência que não gere sua superação na fala”[41] . Temos aqui a ilustração disso, pois essa urgência com a qual devemos fazer par é precisamente o que solicita, no requerente, naquele que faz o requerimento, nele e para ele, a ultrapassagem da fala que é também, na perspectiva desenvolvida aqui, a falha da verdade mentirosa.
Há ainda um pequeno acréscimo feito por Lacan: “Mas nada há, tampouco, que não se torne contingente nela”[42]. Eis um termo mais técnico que deveremos articular um pouco na seqüência de nossos encontros. Isso já implica em marcar, tal como Lacan se dedicou a fazê-lo de maneira lógica, o que há de não eliminável na função da pressa, a urgência sendo de algum modo a versão terapêutica da pressa. Em tudo aquilo que tem a ver com a verdade há sempre uma precipitação lógica. E basta acrescentar que nos pusemos atentos também à precipitação na mentira, possível de ser veiculada pela verdade. Isso por certo requer uma estratégia da verdade que é, como evoca Lacan em De um Outro ao outro, “a essência da terapêutica”[43] e, do ponto aonde Lacan nos conduz, cabe apenas acrescentar que essa estratégia da verdade deve dar um lugar à mentira que ela comporta.
A fim de agitar um pouco a coisa, para mostrá-la palpitante, eu os lançarei na relação que gostaria de estabelecer e os remeterei ao comentário de Lacan sobre a alucinação do Homem dos lobos, tal como ele a situa no início de seu ensino, em conexão com o que delineei, a partir de uma leitura minuciosa, do lugar do real. Com freqüência se lê esse texto relacionando-o com “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”[44], texto incidindo sobre aquilo Opção Lacaniana OnLine 10 O inconsciente real que, uma vez cortado de toda manifestação simbólica, reaparece, diz cuidadosamente Lacan, “erraticamente”[45].
Essas manifestações erráticas do que é cortado da simbolização e que serão, em “O espaço de um lapso”[46] – texto que vem no final do Seminário sobre Joyce -, valorizadas na psicose, já figuram o que Lacan chamou ‘real sem lei’, ou seja, um real disjunto do simbólico e que o supera.
Essas considerações desembocam, tal como explicitado nesse último texto de Lacan, no deslocamento ao qual ele submeteu a prova crucial a que chamou passe. Há um mal-estar no passe e nas instituições que primeiro quiseram pôr em marcha essa prova. Desde O sinthoma, de Lacan, é a partir do real que esse malestar no passe pode ser a um só tempo situado e superado.
Tradução: Vera Avellar Ribeiro
Texto publicado originalmente em Opção Lacaniana online.Série 1, n. 4. Publicamos este texto com a amável autorização de Jacques-Alain Miller, a quem agradecemos.
[1] Jacques-Alain Miller é psicanalista, Diretor do Departamento de Psicanálise (Paris VIII).
[2] NT: a palavra “dicência”, sozinha, não existe em português. A fim de mantermos uma proximidade homofônica com o termo disance, optamos por decompor e substantivar o termo “dicência” que entra na composição de alguns vocábulos referentes ao dizer ou à maneira de dizer.
[3] Texto e notas da primeira lição da Orientação lacaniana III, 9 (2006-07)
[4] J-A Miller alude aqui ao fato de não ter dado aula, por três vezes, nos meses de novembro e dezembro de 2005. No entanto, ele veio ao encontro marcado na sala Paul Painlevé, no CNAM, explicando então que preferia calar-se, não queria contornar “essa falha”, essa “dificuldade de falar lacaniano”, preferindo muito mais confrontar-se com ela; não lhe faltava material, mas sim, acrescentou ele, “sua escansão” e o “o ponto de basta” que o tornaria legível.
[5] Damourette, Jacques & Pichon, Édouard, Des mots à la pensée. Essai de grammaire de la langue française (1911-1940), Paris, Edition d’Arthey, 1968, T.I, p. 45-55.
[6] Pichon É., “La famille devant M. Lacan” (1939), Revue française de Psychanalyse, 11, n. 1-2, Paris, 1939, p. 107-135.
[7] Damourette, J. & Pichon, É., Essai de grammaire de la langue française, op.cit., p. 45.
[8] Ibid., p. 46.
[9] Cf., Miller, J-A, “Introdução à leitura do Seminário: De um Outro ao outro” (2005-06), La Cause freudienne n. 64, Paris, Seuil/Navarin, 2006, pp. 137-169, e n/s. 65 & 66, a serem publicados em 2007.
[10] Lacan, J., Le Séminaire, livre XXIII, Le Sinthome (1975-76), Paris, Seuil, 2005, p.132.
[11] Ibid.
[12] Cf. Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI” (1972), Outros escritos, Rio de Janeiro, J. Zahar ed., 2003, p. 567.
[13] Cf. Lacan, J., Le Séminaire Le sinthome, op.cit., p 130-131
[14] Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI”, op.cit, p. 567
[15] Ibid., p. 567
[16] Ibid., p. 568
[17] Lacan, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” (1967), Autres écrits, p.cit., p. 248.
[18] Ibid.
[19] Miller, J-A, “Notre sujet suppose savoir. Présentation du theme des Journées d’études 2007”(2006), La lettre mensuelle n. 254, janeiro de 2007
[20] Lacan, J., “Televisão”, Autres écrits, op.cit., p. 543
[21] Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI”, op.cit., p. 567
[22] Ibid.
[23] Ibid.
[24] Cf. Miller, J-A., Orientação lacaniana III, I (1998-99).
[25] Ibid.
[26] Ibid.
[27] Ibid.
[28] Ibid.
[29] Aqui, J-A Miller remete à recente publicação em francês das Cartas a Wilhem Fliess (edição completa), de S Freud, Paris, PUF, 2006; ele especifica que “a evocação feita por Lacan de Freud como solitário vem bem a calhar”.
[30] Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI”, Rio de Janeiro, J. Zahar ed., 2003, p. 567.
[31] Ibid.
[32] Cf. Lacan, J., Le Séminaire, livre XXIII, Le sinthome. Paris, Seuil, 2005, p. 132
[33] Ibid.
[34] Ibid
[35] Ibid.
[36] Cf. Lacan, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, op. cit.
[37] Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI”, op. cit.
[38] Laca, J., “Do sujeito enfim em questão” (1966), Escritos, Rio de Janeiro, J. Zahar ed., 1998, p. 229
[39] Ibid, p 237
[40] J-A Miller fala dos CPCT criados pela Escola da Causa freudiana e por outras Escolas da Associação Mundial de psicanálise.
[41] Lacan, J., “Função e campo da fala e da linguagem”(1953), Escritos, op.cit., p 242.
[42] Ibid.
[43] Lacan, J., De um Outro ao outro, op.cit., p 19
[44] Lacan, J., “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1958), Escritos, Rio de Janeiro, J. Zahar ed., 1998, p. 537.
[45] Cf. Lacan, J., “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung de Freud” (1956), Escritos, Rio de janeiro, J. Zahar ed., 1998, p. 386 e seguintes.
[46] J-A Miller chamará o “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI” , agora e na seqüência do primeiro trimestre de seu curso 2006-07, como: “O espaço de um lapso” ou “O esp de um laps”.