“Cada época tem seu fascismo e a isso se chega de muitos modos, não necessariamente com o terror da intimidação policial, mas também negando ou distorcendo informações, corrompendo a justiça, paralisando a educação, divulgando de muitas maneiras sutis a saudade de um mundo no qual a ordem reinava soberana, e a segurança dos poucos privilegiados se nutria do trabalho e do silêncio forçado da maioria”[2] (Primo Levi).

 

I. Testemunho
Por que ao propor o procedimento do passe, Lacan elege o testemunho como modalidade de transmissão da passagem de analisante a analista? Tal eleição teria alguma relação com os testemunhos de sobreviventes que naquele momento, mais que no período imediatamente posterior ao final da guerra, circulavam na cena europeia? Um dado digno de nota, que não passou despercebido em minha pesquisa nos arquivos do Centro di Studi Primo Levi, é que, coincidência ou não, no contexto dos testemunhos de sobreviventes dos campos de concentração nazistas aquele que transmite a outros o testemunho de um sobrevivente é chamado de “passador” [3]. Passador era também o termo utilizado para se designar as pessoas que passavam judeus das zonas ocupadas para zonas livres durante a guerra.

Em conferência proferida por ocasião da abertura da XXII Jornada da EBP-MG, Christiane Alberti enfatiza que Lacan teve muito em conta o laço social e as suas transformações, ao ponto de registrá-lo, em sua teoria, como um real que devemos levar em consideração[4], evocando, na esteira do texto da Proposição de 9 de outubro de 1967, o campo de concentração e os testemunhos dos sobreviventes como os fatos históricos tributários da integração do real à sua teoria. Tal eleição não parece desarticulada do ponto trazido à luz por Clotilde Leguil, ao afirmar que ademais atestar o surgimento do inconsciente, o termo “testemunha” dá conta da função da presença do analista como como testemunha do que se perde, como presença articulada a uma perda[5].

Não me parece irrelevante que no texto da Proposição[6], o campo de concentração apareça como um dos pontos de fuga em perspectiva do nó que ata a psicanálise em extensão à psicanálise em intensão. O campo e concentração é tomado no texto da proposição sobre o psicanalista da Escola como facticidade real, e ao lado das consequências do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, gatilho para uma ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação. É o que vemos, hoje. Trazer o campo de concentração como facticidade real e o nazismo como um reagente precursor[7], indica uma fratura, um antes e um depois na história do século vinte. Uma fratura também naquilo que concerne à sociedade psicanalítica, textualmente explicitado em ambas as versões da Proposição, e de modo contundente na primeira versão[8]. O que não nos deixa desviar da questão sobre quais seriam os três pontos de fuga que atariam a psicanálise em extensão à psicanálise em intensão, hoje. Questão atinente tanto ao destino das instituições fundadas sobre o modelo do exército e da Igreja, quanto à presença do analista nos campos clínico e político.

 

II. O analista, a Escola e a época
Alguns significantes me chamam a atenção em “Ponto de Basta”[9], aula de 24 de junho de 2017 proferida por Jacques-Alain Miller no contexto da penúltima eleição presidencial, e da ascensão da extrema direita na França: se engajar, escolher, discernir, perceber, saborear, examinar, provar. O que é do registro da escolha é também do registro do gosto. A heresia, no que concerne ao campo da escolha, ancora-se profundamente na língua, diria até mesmo que sobretudo na língua, em sua singularidade desconcertante. As escolhas não devem ser pensadas unicamente no campo das idealidades, elas estão enraizadas no corpo, no gozo do corpo, no sinthoma, por isso o analista não é um indiferente. O desejo do analista não é um desejo de nada. É um desejo pautado em uma ética, inclui uma política, na própria posição a que faz jus.

Vejamos o comentário de Lacan destacado por Miller à propósito de Freud, em “A direção do tratamento” – “Quem, tão intrepidamente quanto esse clinico apegado ao terra-a-terra do sofrimento, interrogou a vida em seu sentido, e não para dizer que ela não o tem – maneira cômoda de lavar as mãos, mas para dizer que tem apenas um, onde o desejo é carregado pela morte”[10] (uma resposta heideggeriana de Lacan). Nenhum niilismo aqui. Miller se declara impactado pela expressão “clinico apegado ao terra-a-terra do sofrimento”, a partir da qual retoma os tempos da existência de uma Escola, com as suas escanções e momentos cruciais, mas sobretudo sobre a distinção entre a Escola como sujeito e a Escola como instituição, tema medular em Teoria de Turim[11].

A instituição não é o mesmo que a Escola-sujeito. É preciso “estar em condições de produzir um ato como Escola-sujeito”[12]. O ponto nodal aqui é o ato. Não há Escola-sujeito sem ato. Ela somente tem existência como um efeito de um ato.
No mesmo texto já citado por Miller, Lacan profere – “que antes renuncie a isso quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”. A época é dotada de subjetividade, a subjetividade de uma época é o que a anima, a sua mentalidade, o que confere a ela um horizonte e um limite que, seguindo Miller “coage os pensamentos” ao mesmo tempo em que “designa a sua coerência”. Não se refere aqui aos seus atributos, a isso que é palpável e se pode nomear ou classificar no plano individual. Não se refere ao que seriam os atributos “individuais” de uma época, deslocando inclusive o binômio “individual – coletivo”:  A subjetividade é transindividual. O que Lacan quis dizer com isso, em seu Relatório de Roma? Ele se refere ao “discurso concreto” como sendo o campo da realidade transindividual do sujeito. O ponto nodal aqui é o discurso como categoria que extrapola o binômio individual – coletivo. O transindividual parece operar uma torção ou uma dobra, ou constituir-se como litoral. Caberá pensar esse conceito a partir das proposições topológicas de Lacan, que nos reenviam ao plano da extimidade.

O exemplo memorável trazido por Miller nesse texto é o dos três prisioneiros tomados como indivíduos ligados, e mesmo enganchados uns aos outros de modo a formar uma subjetividade, tanto no sentido de horizonte, quanto de limite, na medida em que a subjetividade é prisioneira da época, de seu Zeitgeist. Lacan o articula à dialética em sua acepção hegeliana, o que se esclarece na posição do analista como eixo de tantas vidas na medida em que está advertido, que sabe da dialética que o compromete com essas vidas num movimento simbólico. Também uma Escola, na qual sujeitos estão engajados, tem um caráter transindividual, e me parece, tomando a sério e esse ponto, que possamos estender tais proposições aos seus dispositivos, sobretudo, ao dispositivo do Passe. O passe de uma Escola não é o Passe-Instituição. Só há passe em ato, e no horizonte de uma Escola-sujeito.

 

III. Se “o coletivo é o sujeito do individual”, em que consiste um cálculo coletivo?
O que leva Lacan a afirmar que o grupo e a massa não seriam de um registo diferente daquele do sujeito? E ademais, já na última nota de rodapé de “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”, remetendo o leitor ao primeiro parágrafo de Psicologia das massas e análise do eu, o que o leva a auferir que “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual”? [13]. Lacan faz a ressalva de que a objetivação temporal presente no sofisma, ponto nodal do que se produz como certeza antecipada, é mais difícil de conceber à medida que a coletividade aumenta, “parecendo criar obstáculo a uma lógica coletiva com que se possa complementar a lógica clássica”[14].

Note-se que a questão nos reenvia às premissas da lógica clássica, das premissas à conclusão como valor de verdade, como bases sobre as quais Lacan demonstra, nesse texto, a asserção subjetiva antecipatória: “1º) Um homem sabe o que não é um homem; 2º) Os homens se reconhecem entre si sendo homens; 3º) Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem. Movimento que fornece a forma lógica de toda assimilação “humana”, precisamente na medida em que ela se coloca como assimiladora de uma barbárie…”[15]

Ana Lucia Lutterbach[16] ressalta que nesse texto de 1945, Lacan se refere à subjetividade de sua época como movimento simbólico, uma referência ao inconsciente estruturado como linguagem e ao desejo como desejo do Outro. Outro que traz em si a história e os traços fundamentais da civilização. Mais tarde, a partir do Seminário 17 e até o fim de seu ensino, Lacan se refere não só à dialética do desejo, à história, como também às implicações do gozo no laço social. Tema amplamente desenvolvido por Éric Lautent em O avesso da biopolítica, a partir das “lógicas do acontecimento de corpo”[17] e das  suas formulações sobre “O falasser político”[18].

Como pensar essa assertiva nesses dois momentos do ensino de Lacan? O que os aproxima e o que os diferencia, no que concerne às torções entre o coletivo, o individual, o subjetivo e o transindividual? Me parece muitíssimo fecundo tomar tais indicações como diretrizes para uma leitura dos laços entre a clínica, a política e o campo social, nesse tempo que é o nosso.

Nessa perspectiva, a das implicações do gozo no laço social, trago ao debate uma passagem de Lacan no Seminário 16, de um Outro ao outro, em que as vicissitudes do laço entre o Outro e o gozo são tomados não na perspectiva da fantasia, mas naquela do traumatismo em sua vertente real, o que, me parece prevalecer hoje, em detrimento do trauma em suas coordenadas simbólicas. Tal perspectiva se articula com a facticidade real proposta por Lacan na Proposição de 1967, indicando que a lógica do campo de concentração, onde quer que ela esteja, desembocará no que Lacan aponta neste seminário: em situações-limite em que gozo e corpo se separam[19].

 

IV. Traumatismo e lalingua: assuntos de política

A linguagem, cujas leis podemos estudar, veicula em sua estrutura o laço social, ao passo que com lalingua temos uma camada subterrânea passando por debaixo da norma social, e a dimensão fônica da linguagem, fonte dos mal entendidos infantis, das significações investidas de libido. Se ao nível da linguagem encontramos o significante articulado, no âmbito de lalingua temos o S1, o significante sozinho, imantado de substância gozante[20].

Nos campos de extermínio a incomunicabilidade levava rapidamente à morte. O murmúrio, o balbucio, o urro, rompiam a densa barreira do mutismo, tal como Primo Levi narrou em A trégua – nos dias que se seguiram à chegada do exército russo no Campo de Buna-Monowitz – a propósito de Hurbinek, nome atribuído a uma criança provavelmente nascida no Lager, a partir dos sons inarticulados que emitia. Não sabia falar. Já os seus olhos dardejavam, terrivelmente vivos, cheios de vontade de romper a tumba do mutismo [21]. A necessidade da palavra… comprimia seu olhar com uma urgência explosiva:  era ao mesmo tempo um olhar selvagem e humano…. carregado de força e de tormento[22]. Matisklo, que se aproximava a uma palavra articulada, foi o único rudimento de palavra pronunciado ao longo de sua breve existência naqueles dias de convivência entre os prisioneiros recém liberados nas enfermarias do Lager.

No Seminário 16, de um Outro ao outro, Lacan postula que em situações-limite gozo e corpo se separam. Jacques-Alain Miller enfatiza que é essa separação entre o gozo e o corpo que faz com que o gozo seja, antes, do Outro. Ele diz: sabemos dos traumatismos devidos ao fato de um Outro ter forçado ou imposto seu gozo ao nosso corpo. Esse regime de violação é certamente o que há de mais traumático. Somos forçados aqui, a colocar entre aspas a palavra fantasia e conceder crédito a esse traumatismo, e em sua estrutura, separar o corpo e o gozo, quando é o gozo do Outro que se impõe. O corpo se esvazia de gozo. Num caso temos as vicissitudes do trauma, no outro o regime de violação, o aniquilamento, as situações em que gozo e corpo se separam. Ao que tudo indica, Matisklo de algum modo reconectou, naquele breve batimento de uma vida, gozo e corpo, como testemunharam os olhos de Hurbinek.

 

V. Racismo, segregações

Ao ser interrogado (em “Televisão”) de onde viria sua segurança em preconizar uma nova escalada do racismo justo naquele momento (estamos em 1973) em que imperava uma atmosfera de otimismo diante da promessa de integração das nações por meio dos mercados comuns – Lacan dirá: “No desatino do gozo – só há o Outro para situá-lo – mas na medida em que estamos separados dele”[23].

Na esteira das questões atinentes à segregação, vale interrogar: 1) Se a segregação horizontal e “ramificada”[24], na escala e magnitude que vemos hoje, seria uma derivação da “segregação estrutural”[25], aquela inerente à constituição o sujeito e à ordem simbólica, ou responderia a uma lógica diferente;  2) Se a ordem simbólica se funda ao deixar algo fora dela, a ser simbolizado no interior, como ausente – quais seriam as consequências para o laço social, da precarização desta operação, ou seja, da generalização, em larga escala na civilização, dos impasses quanto a efetivação desta operação? 3) O que isto nos esclarece sobre a chamada ‘cultura do cancelamento’ e a generalização do ódio que lhe é tributária?

Chamam a atenção, sobretudo na última década, as proporções tomadas pelos linchamentos virtuais e a manipulação da opinião pública pelas as fake news, o que no Brasil vem incitando a truculência e dogmatismo crescentes no âmbito da cena política. Tais fenômenos, não estão desarticulados, e mais que isso, parecem manifestações contemporâneas daquilo que Lacan aponta sob a égide de uma segregação ramificada, reforçada, que se sobrepõe em todos os graus, não fazendo senão multiplicar barreiras. Talvez como um dos efeitos do que apontava já em 1967, mas desta vez sob as injunções da biopolítica, da tecnologia e consumo de massas, cujas incidências vão além da queda do falocentrismo. O mundo regido pela ordem simbólica, em que cada coisa estava em seu lugar, aferrolhada pelo patriarcado, assegurada pelas leis enganchadas ao Nome-do-Pai, ponto de partida de Lacan, caminha, no segundo tempo de seu ensino, rumo a uma direção oposta: aquela do desmantelamento metódico, constante e feroz da pseudo harmonia da ordem simbólica.

Os aparelhos tecnológicos (celulares, tablets e similares) parecem funcionar, hoje, como extensões do próprio corpo, ao ponto de se acessar por meio de um único e mesmo dispositivo crushes, nudes, o relógio, as redes socias, e… o analista.

Com a prevalência dos imperativos do consumo, o ideal democrático parece se deslocar, pois já não se funda na igualdade como ideal ou princípio; mas no direito ao gozo como finalidade que se quer garantir. Ou seja, é em nome do direito ao gozo que muitas vezes se apela à igualdade. Assim, em nome do gozo, as democracias liberais de massas consumidoras incorrem no risco de engendrar, paradoxalmente, uma espécie de autoritarismo às avessas: a soberania popular cedendo seu lugar à soberania do consumidor, o que desemboca não num consentimento à multiplicidade dos gozos, mas no rechaço à diferença.

É nesse contexto, que, para conter ou corrigir os excessos da pulsão, incorre-se nos dogmatismos, ou apela-se a um deus restaurador da ordem e/ou aos programas e ações políticas de vocação totalitária. Vide o atual avanço dos nacionalismos, não mais apoiados em ideias ou em utopias, mas em slogans legalistas e messiânicos. Tendo-se chegado a este ponto, não seria demais afirmar que o declínio das sociedades patriarcais em sociedades de massas consumidoras tenha uma incidência sobre a crise das democracias representativas.

 

VI. Extimidade

Desde a primeira vez que li as duas versões da Proposição, me perguntava o que uma menção aos campos de concentração nazistas estaria fazendo em um texto que pretendia interrogar a formação do analista e as bases das instituições analíticas.

Me ocorria que tais menções se justificariam por certa porosidade da instituição analítica às questões e impasses de seu tempo e, mais do que isso, ao modo de Lacan de pensar topologicamente a instituição analítica: o que pareceria à primeira vista localizar-se numa relação de exterioridade ao campo da prática estritamente analítica, encontrar-se-ia, ao mesmo tempo, em seu mais “íntimo”, em seu “interior”.

É importante observar – e nisso reside toda a sutileza da questão – que o problema não parece estar, propriamente, numa relação de causalidade direta entre a segregação e a violência, ou entre a segregação e o mal radical dos qual nos fala Hannah Arendt, por exemplo. A segregação é consubstancial à operação simbólica, na medida em que segrega-se o que resiste a integrar a própria rede de referências e significações; segrega-se o gozo outro, deslocado, inassimilável, mas segrega-se, sobretudo, a partir de um não saber fundamental sobre o gozo. O gozo maligno em jogo no discurso racista se nutre do desconhecimento da lógica que o constitui: seu crime fundador não seria tanto o assassinato do Pai, “mas a vontade de aniquilar aquele que encarna o gozo que eu rejeito” [26], argumenta Laurent, em Racismo 2.0.

A questão central para Lacan no texto de 1967 sobre a formação do psicanalista, é que tais formas de universalização, recaindo numa espécie de homogeneização, acabariam por solapar o que estaria em jogo na segregação como fenômeno de estrutura, camuflando a lógica sobre a qual o fenômeno de estrutura se funda, e com a qual só se tem a chance de operar se não estiver totalmente subsumida ou encoberta pelo discurso do Mestre, por bandeiras ideológicas, por uma rejeição absoluta, ou por soluções homogeneizantes. Ademais, não é incomum atribuir-se como causa da segregação de estrutura, a suposta vontade caprichosa de um Outro mau, de um Deus maligno e obscuro. Foi precisamente no horizonte dessas reflexões que Lacan evocou, nos anos sessenta, e mais precisamente, no Seminário 11, o advento do nazismo[27]. O que significa o sacrifício sobre o qual Lacan discorre? O que corre nas entrelinhas do ato sacrificial, e por que ele seria tomado de fascínio? Lacan esclarece que, no objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo desse Outro, que ele chama de “Deus obscuro”. Esse seria o ponto cego, medusante e pleno de fascínio, que poderá cercar a dimensão do sacrifício, em nome e por causa do Outro. É em relação a este ponto cego e paralisante que a ignorância, a indiferença, ou o desvio do olhar são as respostas humanas, demasiadamente humanas.

Para o psicanalista, Lacan propõe “a abertura de olhos” que uma análise poderá permitir, diante do encontro de uma posição-limite, consubstancial às intrincadas relações entre o desejo, o objeto, o gozo e o Outro.  Cabendo aqui uma ressalva: a segregação inerente à operação simbólica não é equivalente e nem mesmo similar à segregação que se descortina e é colocada em marcha com o advento do nazismo e da máquina concentracionária, fundadas na vontade arbitrária e no gozo mortífero de aniquilar o semelhante. Da segregação à serviço do aniquilamento. Quando o que vigora é a lógica concentracionária, indivíduos e populações inteiras, às expensas das ações, da vontade, ou do desejo de cada um em sua singularidade, são destituídos de sua condição de cidadãos e uma vez reduzidos brutalmente à condição de dejetos, ver-se-ão capturados e lançados numa situação aniquiladora, sem saída, monstruosa. Aqui não estamos diante dos fenômenos de segregação, mas do aniquilamento. De modo que não seria pertinente, nesse contexto, confundir esses diferentes registros da segregação, imputando a culpa da segregação atroz operada por uma política de extermínio, a cada um, individualmente. Ao invés de soluções simplistas ou das malfadadas inversões da culpa, mais vale tentar cernir as consequências das diferentes formas e manifestações da segregação, e entender como e porque elas conduziriam inevitavelmente a uma obstrução dos usos da palavra, a uma inércia e desconhecimento cada vez mais amplos daquilo que as sustenta e mantém, advertidos que nem a boa vontade, nem a simples denúncia, seriam capazes de substituí-las ou de minimizar os seus estragos.

VII. Democracia
O que está acontecendo com as democracias, hoje?[28] Que tipo de mutações estão em curso? É notório que os pilares da democracia, tal como praticada no século vinte, encontram-se fortemente abalados. Observa-se pelos quatro cantos do planeta a ascensão de representantes da extrema direita se elegerem democraticamente. Há certamente movimentos de cunho neofascista, que se nutrem das fixações residuais e não ultrapassadas dos grandes conflitos mundiais do século XX. Mas diferentemente dos movimentos fascistas do século passado, há nas manifestações obscurantistas deste início de século mais diferenças que pontos em comum, dificultando a sua leitura e interpretação, o que levou o cientista político Enzo Traverso a nomear esse conjunto de movimentos de “pós-fascistas”[29]: seu conteúdo ideológico é flutuante, instável e frequentemente contraditório, podendo abarcar ideias e crenças francamente antinômicos. Em lugar das diferenças e tensionamentos ideológicos, ganham terreno polarizações de todos os tipos, intensificando o “nós contra eles”, a partir da identidade personificada por um líder autoritário. No caso do Brasil, o incremento dos apelos reacionários ao modo de uma onda ultraconservadora se alastra no vácuo de uma crise da política representativa e de uma perda de confiança nas instituições.

Sabemos que as sociedades democráticas não são monolíticas e que é preciso manter certas condições ‘de temperatura e pressão’ para que não coloquemos a democracia em risco. Isso não quer dizer que não existam brechas e paradoxos. Um desses paradoxos, formulado por Claude Lefort[30], reside no fato de que o lugar simbolicamente vazio do poder não poderá ser apropriado ou encarnado por alguém. Sob esse paradoxo vive e respira o estado democrático de direito, que estará em perigo todas as vezes que esse lugar vazio se veja obturado ou confundido com quem detêm a autoridade. Foi o caso de Hitler, Mussolini e Stalin, e de tantos outros ditadores que floresceram no século XX. Isso poderá acontecer também quando se denegam as divisões internas aos poderes, resultando em uma indiferenciação das instâncias que regem politicamente a sociedade. Ou ainda, em situações em que o poder deixa de se constituir como um lugar simbolicamente vazio em nome da qual se governa, para se apresentar como realmente vazio, situação em que os governantes passam a ser percebidos como elementos de facções a serviço de um grupo de interesses, vendo sua legitimidade sucumbir em todas as extensões do tecido social, até que, no limite, já não se sustente uma sociedade propriamente civil. Antes de sua total corrosão, a sociedade se vê polarizada entre a defesa de um estado permissivo e rendido a grupos de interesse e o brado por um estado consubstancial à sociedade, que falando em seu nome venha a encarnar o corpo social de forma homogênea e sem brechas. Com essa polarização, nutre-se o ódio à diferença, motor da intolerância e da segregação. O laço social se fragiliza, chegando, às vezes, à ruptura.

 

VIII. A Escola como coletivo
Em “Teoria de Turim”[31], Miller enuncia o paradoxo da Escola nos seguintes termos: como entender o fato de que no momento que Lacan institui uma formação coletiva, suas primeiras palavras colocam em primeiro plano a solidão subjetiva. Essa formação coletiva “não pretende fazer desaparecer a solidão subjetiva, mas que pelo contrário se funda nela, a manifesta, e a revela”.  Advertido de que a interpretação tem sempre um efeito desagregador, e sendo cada um separado do significante mestre, remetido à sua solidão, como essa comunidade se sustentaria? A proposição “A Escola é sujeito” e seu desdobramento, “A Escola é sujeito suposto saber”, aparecem como uma espécie de solução para o paradoxo entre a solidão do analista e a Escola como conjunto “antitotalitário” e inconsistente advindo dessa soma de solidões: “constituir esta comunidade é fazer da própria Escola um sujeito barrado”. A Escola precisa de estatutos, mas, sobretudo, de interpretações dela mesma como sujeito. Trata-se de que a determinação significante da Escola, suas organizações simbólicas complexas, suas publicações, tenham como efeito instituir a Escola como sujeito suposto saber”.

Em “Questão de Escola: proposta sobre a garantia” (2017), o problema se recoloca tendo como horizonte as mutações do Discurso do Mestre. A questão já não se enuncia unicamente em termos de uma “Escola sujeito”, como na “Teoria de Turim”. Miller ressalta a sua condição de “ser ambíguo”, uma “Escola Morcego”. O que está em questão é o embuste de pretender que o discurso analítico se funde como um discurso que não tomaria seus efeitos a partir do semblante. Donde o paradoxo: não apenas o do laço entre a solidão do analista e a Escola, mas aquele do discurso analítico como um embuste que toca o real: o discurso analítico não só dissolve os semblantes dos outros discursos, como também denuncia o próprio. O resultado dessa operação, ainda que tenha efeito de semblante, é desnudar o real. Como consequência, seu suporte de semblante, que é o sujeito suposto saber, se autodestrói. Se na “Teoria de Turim”, a Escola como sujeito suposto saber aparece como uma solução, em “Proposta sobre a garantia”[32] o sujeito suposto saber, como suporte de semblante do discurso analítico se autodestrói. Estaríamos diante de uma nova mutação, dessa vez, em relação aos destinos do sujeito suposto saber como suporte de semblante do discurso analítico?  Convido-lhes a elaborar e extrair as consequências desta Proposta sobre a garantia, de Jacques-Alain Miller, a fim de fazermos uma releitura dos pontos de fuga da Proposição sobre o psicanalista da Escola, hoje, passados cinquenta e cinco anos de sua proclamação.

Lucíola Freitas de Macêdo

 

[1] Texto apresentado no dia 8/8/22 em atividade em conexão com o XXIV EBCF organizada pelo Conselho e pela Diretoria da Seção Rio.

[2] Levi, P. A assimetria e a vida. São Paulo: Ed. UNESP, 2016, p.56

[3] Mesnard, P. Primo Levi: uma vita per immagini. Venecia, Marsilio Editori, 2008, p.11, 102 e 144.

[4] Alberti, C. Há apenas isso: o laço social. Curinga, n.47, 2019, p.19.

[5] Em “Presença do psicanalista com testemunha da perda”. Boletim Punctum Extra. http://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/

[6] Lacan, J. Proposição de 9 de outubro de 1967. Outros Escritos, Rio de Janeiro, JZE, p.261-263.

[7] Lacan, J. Anexos. Outros Escritos, Rio de Janeiro, JZE, p.583.

[8] Lacan, J. Anexos. Outros Escritos, Rio de Janeiro, JZE, p. 583-584.

[9] Miller, J.-A. Ponto de basta. Opção Lacaniana, n.79, julho 2018, p.23-38.

[10] Lacan apud Miller. Ponto de basta, p.31.

[11] Miller, J.-A. Teoria de Turim. Opção Lacaniana on-line n.21, Nov.2016. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_21/teoria_de_turim.pdf.

[12] Miller, J.-A. Ponto de basta, p.32.

[13] Lacan, J. O tempo lógico. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.213.

[14] Idem.

[15] Idem.

[16] Cf. em https://jornadasebprioicprj.com.br/2022/local/.

[17] Laurent, É. O avesso na biopolítica. RJ, Contra Capa, 2016, p.61-64.

[18] Idem, p.201-219.

[19] Lacan, J. O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p.266.

[20] Miller, J.-A. A psicose ordinária, a convenção de Antibes, p. 286.

[21] Levi, P. A trégua. São Paulo: Cia das Letras, 2010, p.19.

[22] Idem, P.18-19.

[23] Lacan, J. Televisão. Outros Escritos, Rio de Janeiro, JZE, p.533.

[24] Lacan, J. Nota sobre o Pai. In: Opção lacaniana. São Paulo: Edições Eolia, n.71, dezembro 2013, p.7.

[25] Bassols, M. O bárbaro. Transtornos de linguagem e segregação. In. Opção lacaniana online nova série, ano 9, março/julho 2018, n. 25 e 26.

[26] LAURENT, Eric. Le racisme 2.0. In: Lacan Quotidien, n.371, 26 de janeiro de 2014. Disponível em: http://www.lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2014/01/LQ-371.pdf.

[27] LACAN, Jacques (1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p.259.

[28] Para uma análise das questões atinentes a este tema no contexto do Brasil atual, recomendo: Bignotto,N., Starling, H. & Lago, M. Linguagem da destruição, a democracia brasileira em crise. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

[29] Traverso, E. les nouveaux visages du fascisme. Paris: Textuel, 2107, p.13.

[30] Lefort, C. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.75-77.

[31]  Miller, J.-A. Teoria de Turim. Opção Lacaniana on-line n.21, nov.2016.

[32] Miller, J.-A. Questão de Escola: proposta sobre a garantia. Opção lacaniana nova série, ano 8, n.23, julho 2017.


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