É uma das minhas manias o despertar, é um relâmpago. Ele se situa para mim, quando me acontece, quando acordo. Tenho nesse momento um breve clarão de lucidez, que não dura, é claro. Entro como todo mundo nesse sonho que se chama realidade. (LACAN, J. “RSI”)

 

O que é possível elucidar sobre o despertar, quer estejamos no nível do inconsciente transferencial, interpretável? E do inconsciente real, cuja primazia é dada ao sinthoma como acontecimento de corpo?

Não seria injusto afirmar que o tema do despertar tenha ocupado Lacan ao longo do amplo arco de tempo que abarca seu ensino. Ele mesmo o declara: não é o desejo de dormir, mas o desejo de despertar, que o agita[2].

Diferentemente de Freud, em cuja obra as menções ao despertar foram mais literais e referidas à experiência onírica, com Lacan o despertar ganha um alcance clínico e semântico mais amplo: fulgurações de despertar tornam-se parte da própria experiência analítica, indicando tanto a irrupção de um elemento disruptivo, quanto o limiar que marca o fim de uma análise[3].

O despertar figura no ensino de Lacan como disrupção já no Seminário 2, em seu comentário sobre o sonho da “injeção de Irma”, onde mesmo diante do horror, quando se depara com “o fundo das coisas” no momento da visão angustiante “da carne informe”, Freud “evita o despertar”[4]. Ele não desperta naquele momento humano, demasiadamente humano, em que se costuma acordar para continuar a sonhar[5]. Momento em que o sonhador desperta a fim de evitar um encontro com o real: “quando acontece no sonho alguma coisa que ameaçaria passar ao real, isto os enlouquece de tal maneira que acordam imediatamente, quer dizer, continuam a sonhar”[6]. O sonho aqui significa a imersão na trama das representações e dos discursos que tecem a realidade. O despertar, e o consequente retorno à realidade, é tido por Lacan como um adormecer diante do real.

Suas formulações sobre o despertar se sucedem, ao longo dos Seminários, e também dos Escritos, e estão presentes até o limiar de seu ‘ultimíssimo ensino’, quando aproxima o inconsciente do sonho, e diferentemente da aura otimista da primeira década de seu ensino, prevalece certo desencantamento. No Seminário 25, o momento de concluir, proclama que através da associação livre, Freud estaria apenas sonhando sobre o sonho[7]: “sonhamos com a eternidade. Este sonho consiste em imaginar que despertamos… O inconsciente é precisamente a hipótese que não sonhamos somente quando dormimos”[8]. E “o despertar absoluto, seria a morte”[9].

Quando a experiência que se desborda no espaço de um lapso, onde já “não se tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação)” [10], neste campo em que se atesta o gozo opaco do sinthoma, e já não há franqueamento, dissolução ou liberação, não há tampouco a produção de efeitos de despertar pela via do saber significante[11]. Lacan enfatiza que “somente então temos certeza de estar no inconsciente”, ou seja, de que o inconsciente “seja o real”, em contraponto ao inconsciente transferencial, constituído a partir da transferência e do sujeito suposto saber (o que implica também na suposição de um sujeito ao saber inconsciente). Ao nível do inconsciente real não haveria despertar porque ele é homólogo ao traumatismo, ao inassimilável, ao que faz furo no discurso universal[12].

Neste arco temporal de pouco mais de duas décadas, as relações entre sonho e despertar não se dão de forma unívoca. Lacan as apresenta de diferentes maneiras: às vezes como oposição, ou como alternância, e mesmo como pulsação; às vezes ao modo de uma torção; ora como continuidade, e ora como radical descontinuidade.

Em seu ultimíssimo ensino, ele conduz este binômio às raias do paradoxo, ao propor que o despertar não será mais que um sonho: o sonho do despertar (le rêve du réveil)[13]. O interessante é que pensá-lo deste modo implicará ao mesmo tempo em uma conjunção e em uma disjunção entre sonho e o despertar.

 

Vida da linguagem

Ao aproximar despertar e sonho, Lacan faz uma objeção à concepção de tempo fundada na ideia do eterno, subsidiária do tempo da tradição, o que levou Freud a reunir tempo e eternidade sob a rubrica do amor ao pai[14]. Nessa perspectiva, o despertar seria tributário do real como necessário, ou seja, se despertaria em relação a uma verdade imutável e para sempre a mesma.

A eternidade pode ser concebida, ainda, como ausência do tempo, seja na perspectiva freudiana, para a qual o inconsciente não conhece o tempo, seja no horizonte de uma continuidade ininterrupta, não escandida e sem falhas, como se fosse possível passar o tempo todo a sonhar, embalando-se pelo efeito adormecedor dos discursos, mesmo quando estamos acordados. Nessa perspectiva, despertar seria um modo de continuar a dormir, por outros meios[15].

É a partir deste horizonte que, no Seminário 23, Lacan incita a nos desprendermos da ideia de eternidade[16]. O que se revela, entre outras coisas, em seu sonho de despertar a psicanálise do pesadelo da história[17], que a confinaria num tempo linear, saturado de sentido; perspectiva refratária tanto ao tempo lógico, quanto ao tempo topológico, para os quais, diferentemente do tempo cronológico, não haveria linearidade, sucessão nem continuidade[18].

É nesse contexto que Lacan traz à luz as dimensões da falha e do acontecimento:

O que se passa quando alguma coisa acontece a alguém em consequência de uma falha? Essa falha não está condicionada unicamente pelo acaso… A falha exprime a vida da linguagem, sendo que a vida para a linguagem significa algo muito diferente do que chamamos simplesmente vida. O que significa morte para o suporte somático, tem tanto lugar, quanto vida nas pulsões que provém do que acabo de chamar de vida da linguagem. As pulsões, provém da relação com o corpo, que não é uma relação simples… além disso, o corpo tem furos[19].

 

Pois bem, estão postos aqui, em sequência, a falha, o acontecimento, a vida da linguagem e o corpo. Antes de avançar, é preciso interrogar quanto ao estatuto do real nesse momento do ensino de Lacan: estaria o real fora do tempo? Estaria ainda referido ao que não muda, à natureza e o movimento cíclico dos astros, ao que retorna sempre ao mesmo lugar? Não, o real a essa altura é concebido a partir do acontecimento imprevisto, e este, no âmbito da experiência analítica, não apenas se inscreve no tempo, mas cria o tempo[20].

 

A sessão analítica

No sonho, assim como na sessão analítica, a realidade exterior adormece para que a realidade psíquica possa aflorar. Por isso a sessão, tanto quanto o sonho, não duram. Não se pode viver em permanente estado de sessão analítica[21]. Mas o desejo de despertar também não tem nada de natural, sendo até mesmo contra natural, já que a tendência de todo discurso é o adormecimento.

Diferentemente do sonho que adormece, no lapso de tempo que dura uma sessão, a dimensão atemporal do inconsciente eternizada no desejo de dormir é perturbada. É escandida pela interpretação e pelo corte da sessão, inaugurando a dimensão da surpresa[22], que é um dos nomes do despertar na experiência analítica.

Mas opor de um modo estanque a via dos discursos que adormecem e a via da experiência analítica, como se a primeira fosse deletéria, e a segunda, ao visar o despertar, fosse a boa via, não seria um modo apropriado de abordar a questão, já que estas dimensões se mesclam[23], e mesmo, se relacionam ao modo de uma torção moebiana: na prática da psicanálise temos automaton próprio à regularidade do dispositivo analítico, que poderá se descompletar quando a sessão analítica se reduz a uma escanção, favorecendo à emergência de um real. Nesta direção, o despertar próprio à realidade cotidiana diante do qual o sujeito adormece quando se aproxima daquilo sobre o qual nada quer saber, é atravessado pelo despertar próprio à sessão analítica, que irá “escandir o encontro sempre falho com o real, aquele que acontece entre sonho e despertar”[24].

O despertar no âmbito da experiência analítica, convocará não o real como necessário, em sua eterna permanência; ou mesmo o real como impossível, que se impõe sob os auspícios do impossível de dizer e de simbolizar; mas o real como contingência, que se atualiza na sessão analítica.

 

Trauma, troumatisme[25]

No seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, encontra-se uma das formulações cruciais de Lacan sobre o despertar. Neste seminário, o despertar será abordado através do sonho traumático[26]. Nessa perspectiva, quando o imaginário do sonho evoca visualmente o que está foracluído do simbólico, o despertar se realiza como angústia. Nos sonhos traumáticos, haveria um apagamento da realidade fantasmática, em benefício de um despertar ao real.

Jacques-Alain Miller chama a atenção para o caráter fugidio e transitório das formações do inconsciente: o sonho, o lapso, o ato falho e o chiste, fulguram, e em seguida se eclipsam. Entre as formações do inconsciente, a única que se distingue por sua permanência é o sintoma. O caráter permanente do sintoma se contrapõe ao caráter fugidio das demais formações, a não ser em uma situação muito precisa: quando um sonho se repete, indica um trauma. O sonho recorrente, tem o estatuto de um sintoma, naquilo que o sintoma comporta de “mais real”[27].

Mas o crucial aqui, não é a trama de sentidos que se deslinda enquanto se relata o que se sonhou, mas o tempo necessário à apreensão do objeto a. A reversão temporal própria ao traumatismo torna-se legível, à medida que o passado traumático é atualizado na sessão analítica “pela presença do analista enquanto corpo vivo”[28]. O trauma desregula as relações do sujeito com o tempo, reenviando aos traços de afeto que irrompem como après-coup nos sonhos traumáticos. Será preciso dar lugar à interpretação para que o real do trauma passe da eternidade de um instante que nunca se tornaria passado, ao acontecimento de um dizer, enodando-se, assim, à dimensão real e também mais singular do sinthoma.

O trauma, tal como concebido por Lacan em seu último ensino, decorre da incidência da língua, que enquanto tal, imprime traços de afeto sobre o corpo[29]. É da ordem daquilo de um troumatisme[30]. Lacan forjou este neologismo a partir da equivalência entre trauma e furo no discurso[31], e com ele abordará o trauma como um encontro com o real para o qual o falasser não encontra correspondência no plano simbólico, ponto forclusivo para todo ser falante. Conjugando traumatismo e trou/furo, Lacan abordará o trauma como algo intrínseco à incidência da linguagem sobre o corpo. As marcas de afeto provenientes deste acontecimento não são reabsorvíveis pela trama das significações.

 

O umbigo do sonho e o ininterpretável

O despertar reenviará, ainda, ao umbigo do sonho como cicatriz do trauma. Retomemos, antes das formulações de Lacan, o texto freudiano:

Há frequentemente uma passagem, mesmo no sonho mais completamente interpretado, que tem de ser deixada obscura; isto se deve a que, durante o trabalho de interpretação, damo-nos conta de que neste ponto existe uma meada de pensamentos oníricos que não pode ser desemaranhada… esse é o ponto central do sonho, o ponto onde o sonho mergulha para o desconhecido… É num certo lugar em que essa malha é particularmente fechada que o desejo onírico se desenvolve, como um cogumelo de seu micélio[32].

 

Freud se refere, em seu comentário, ao trabalho de interpretação, o que nos leva a interrogar se haveria um ponto de opacidade prévio ao sentido, algo que já estaria ali, ou mesmo algo próprio à estrutura da linguagem sobre o qual a interpretação tropeçaria; ou se trataria, no texto freudiano, daquilo que se forjará no próprio tecido do trabalho interpretativo, como resto e ponto de convergência[33].

O umbigo do sonho, tal como retomado por Lacan, aponta ao ininterpretável, a um limite onde todo e qualquer sentido se detém: ponto cego, opaco, ao mesmo tempo causa e motor dos sonhos, ou seja, um dos modos de presença do real no sonho[34].

Em “Resposta a uma questão de Marcel Ritter”[35], Lacan articulará o umbigo do sonho ao Unerkannt, ao “não reconhecido”, aproximando-o do recalque originário: “A relação ao recalque originário… é isso o que Freud aponta a propósito do umbigo do sonho. É um trou/furo, é algo como o limite de uma análise. Isso tem evidentemente algo a ver com o Real”[36].

Lacan tece, nesse texto, uma analogia entre a cicatriz umbilical e o que chama de “nó do dizível”, o que implicará, por um lado, que seja considerado como um furo, por onde o sentido se esvai; e por outro, como uma cicatriz, como o que no sonho é a marca de exclusão do falasser em relação à sua origem, índice de que o sonhador reencontra, na tentativa de representar o sonho, o fato de que na raiz da linguagem está o impossível de dizer[37].

 

Letra

Uma aproximação entre letra, sonho e despertar requer a localização de suas coordenadas, ao menos aquelas que no ensino de Lacan nos permitam ensejar este movimento: “A borda do furo no saber, não é isso que ela (a letra) desenha?”[38].

Enquanto a fala engendra sentidos, a escrita vai ao encontro do sem sentido. Por essa razão, é preciso distinguir o significante e a letra. O significante efetua o significado, enquanto a letra é matéria. Não é preciso sair do campo da linguagem para alcançar nela, o que se apresenta como fora do sentido: “A heresia não é sair do campo da linguagem, é permanecer nele, mas regulando-se por sua parte material, ou seja, pela letra (lettre), ao invés de regular-se pelo ser (l’être)”[39], sendo este último, por excelência, o campo da fantasia, do inconsciente como verdade, e da proliferação do sentido.

Nesta direção, encontra-se o apelo à invenção de um significante novo, que será novo não por ser um significante a mais, mas porque não estando “contaminado pelo sono, desencadearia um despertar” [40]. Um sonho somente poderá ser lido sob a égide de uma escrita, à condição de se desprender o campo do ser, para o campo da letra. Perfurando o sentido, ao se soltar da cadeia, a incidência de um significante novo poderá deter a metonímia.

Lacan forjará o sintagma “saber ler de outra maneira”[41], como uma leitura feita a partir da falha, do tropeço, daquilo que joga tanto com o equívoco, quanto com a dimensão do escrito na fala. Este modo de leitura não se apoia sobre o sentido e a significação, mas na materialidade da palavra, ou seja, naquilo que poderá fazer ressoar uma letra de gozo, forjada nos confins do sentido.

Se com a associação livre Freud não terá feito mais que sonhar, se por meio da interpretação significante não se chega a despertar, um sonho terá efeitos de despertar se, cortando a ventilação do efeito de verdade, apontar “à pressão do real do sintoma”[42].

J.-A. Miller articulará a interpretação à leitura, e o sonho à escrita, evocando nesta aproximação a escrita assonante de James Joyce em Finnegans Wake. A escrita joyceana corta o alento do sono[43], “secando” o sentido. Partindo do princípio de que a matéria literária e os sonhos seriam forjados a partir dos mesmos elementos, Joyce produziu uma obra capaz de despertar a literatura de seu sonho[44].

A grande obra joyceana, não apenas leva ao limite uma diluição do tempo histórico, como também forja na própria escrita, acontecimentos de linguagem improváveis, outorgando à subjetividade de sua época outra trama, e ao texto, outra textura. Nessa perspectiva (aquela traçada pelo wake de Finnegans), o despertar coincide com um “acontecimento de linguagem”[45].

 

Os trumains[46]

Tem-se, ainda, no limiar do ultimíssimo ensino, a invenção por Lacan de um novo neologismo. Os trumains, cunhado a partir do trou/furo, em analogia a um objeto extraído do campo da topologia, o toro: “há mais de um furo naquilo que se chama homem. É até mesmo uma verdadeira peneira”, o enuncia, jocosamente. O troué, (furado), marcado pelo troumatisme, também ressoa como true (verdade), a qual Lacan fará alusão em seguida, ao evocar a invenção freudiana, a análise, ao “anunciar a única verdade que conta: não há relação sexual entre Os trumains”: o que há de bizarro nos trumains, prossegue Lacan, “é que ele monopoliza a morte”, l’amort, é como Lacan conjuga em outro neologismo, trumains, amor e morte. E ressalta: “o curioso é que o homem preze muito a sua condição de ser mortal”[47]. Ele prossegue, nesta lição, com os toros e os furos, discorrendo sobre funerais, múmias e rituais de mumificação, o que nos permite apontar a uma espécie de generalização do troumatisme, e não mais o falo ou a castração, como horizonte comum aos trumains. É o inconsciente real, enquanto se inscreve como falha irredutível, cujo modo de inscrição é o furo[48], o que parece estar em jogo aqui.

É sob a perspectiva de que ao nível do sinthoma o despertar não passaria de um sonho, que Jacques-Alain Miller assinala que o ser humano (Os trumains), está condenado ao sonho[49]. O homem tórico, este que gira em círculos, lhe traz à luz, por evocação, os “homens ocos” de T.S. Eliot”. Retomo aqui os primeiros versos deste pungente poema:

Somos os homens ocos
Os homens empalhados

Uns nos outros amparados…
Cachola cheia de crina. Que pena!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos
São surdas, inexpressivas
Como o sopro do vento na relva seca
Ou o trotar dos ratos sobre os cacos quebrados
Em nossa cave seca[50].

 

Miller ressalta, ainda, que o uso deste neologismo no plural (trumains) acentua “isso que do humano é por essência, social”[51]. Essa “sociologia imediata do falasser” se deve à aprendizagem da língua, cuja ênfase é colocada “na tecedura do aprendiz”[52], nos traços de afeto, nas marcas deixadas por lalíngua sobre o corpo: “lalíngua é para cada um algo recebido… é uma paixão, é algo que se sofre… O que Lacan denomina sinthome é a consistência dessas marcas, por isso ele reduz o sintoma a ser um acontecimento de corpo. Algo ocorreu ao corpo devido a lalíngua. Esta referência ao corpo (como consistência de gozo) é ineliminável do inconsciente”[53].

 

Acontecimento de corpo

A referência ao Finnegans Wake de James Joyce é também ponto a partir do qual Lacan formula o sintoma como acontecimento de corpo[54]. Joyce nos mostra que o trauma é aquele da incidência de lalíngua sobre o ser falante[55]. Não se trata aqui do corpo especular, mas do corpo como superfície de inscrição do gozo, cuja irrupção, traumatiza. Já um acontecimento, eclode com sua “dimensão de surpresa antes que se possa estabelecer o sentido desse encontro”[56].

Diferentemente do sujeito do significante, o corpo falante não se faz representar em uma trama de sentidos. Ele reenvia ao traumatismo do sistema da linguagem sobre si próprio, à marca do impossível de dizer que ressoa no dito[57]. Trata-se de um gozo inscrito na palavra, que a própria palavra não alcança dizer: “Se o sintoma é acontecimento de corpo, como dar conta do fato de que o gozo possa escapar ao autoerotismo do corpo e responder ao forçamento de uma jaculação interpretativa?”[58].

Lacan evocará a “jaculação” em sua fórmula jubilatória, onomatopeica, recorrendo à escrita poética para dizer deste forçamento por meio do qual “o analista pode fazer soar outra coisa que não o sentido”[59].

O gozo como acontecimento de corpo tem afinidades com o infinito, dirá Miller, ao aproximá-lo ao gozo feminino, e “isto poderá nos chegar através de um sonho”[60]. Há sonhos cuja leitura tocam diretamente o corpo de gozo.

O trabalho do sonho sob transferência se presta tanto a uma leitura feita ‘espontaneamente’ pelo próprio inconsciente-intérprete, quanto à incidência do desejo do analista, que ao instaurar uma disjunção entre a fala e o sentido, apontará à escrita como letra, em sua materialidade fora do sentido, conferindo legibilidade, assim, ao acontecimento de gozo que determinou a formação do sinthoma, reduzido à sua fórmula inicial, o puro choque da linguagem sobre o corpo[61].

A partir de que tipo de experiência do sujeito, é possível pensar o sonho como acontecimento de corpo?[62] E o que isto tem a ver com o despertar? Há no curso de uma análise, despertares parciais, que se produzem quando a barreira do sentido é transposta[63]. O relato do sonho traz em si um paradoxo, pois ao mesmo tempo que convida à significação, veicula um gozo inominável[64]. Para tanto, é preciso decifrar os sonhos, interpretá-los, percorrer os desfiladeiros do sentido em suas múltiplas associações, consentir com os enredos da significação, até que se converta em um resto fecundo, em um ponto fora do sentido.

Diz-se então, que o sonho como acontecimento de corpo poderá advir como instrumento de um despertar[65], seja como emergência do “real de um efeito de sentido”[66], seja como circunscrição de um furo, ao cingir-se o impossível de dizer.

 

Fulgurações que despertam

Vejamos um fragmento de sonho relatado por Alejandro Reiñoso, em seu primeiro testemunho:

Sério no trabalho analítico, perturbado pelas temáticas mortificantes humilhantes, muitas vezes me encontrava com um sorriso do analista que me inquietava. Um sorriso sem sentido. Do que ele ri? Não entendia, não havia razão nenhuma para rir. Trago um sonho estranho: “estava em um restaurante chinês, saboreei um arroz muito saboroso e comi com prazer. Era um arroz cantonês (Il riso alla cantonese)”. O analista, antes de eu concluir o relato do sonho, recorta o equívoco: – O riso à Lacan-tonese, o riso à Lacan! Nesse momento, explodo de rir, numa risada aberta que envolve todo o corpo; o analista também ri. Mas o que é isso? E o que isso tem a ver com a risada de Lacan? Nenhum sentido. Escrita poética da interpretação que tocou as entranhas. Algo novo que começaria a ter um efeito de leveza e soltura no corpo. Isso habilitou também uma via inédita, a do cômico, que dissolveria parte da vivência séria da existência[67].

 

Antes da conclusão do relato, o analista corta a narrativa, extraindo-lhe um equívoco: o riso à Lacan-tonese. Não o deixa escapar! A leitura pelo equívoco toca o falasser em seu corpo de gozo. O perturba, o subverte e surpreende. A explosão de riso que faz vibrar todo o seu corpo parece instaurar quanto ao regime de gozo, uma mutação, um antes e um depois. O que acontece se dá no âmbito da sessão analítica, num espaço entre o relato do sonho, a intervenção do analista, e seus efeitos.  Ou seja, o acontecimento de corpo não se escreve sem antes ser passível de uma leitura que aponte não a trama de sentidos, mas ao equívoco, que dá lugar ao real de um efeito de sentido, que tem ao mesmo tempo efeito de furo.

Entre sentido e sem sentido, significante e letra, o trabalho de sonho revira a própria trama, destramando o que aparta o significante de sua motérialité, subvertendo a sonolência crônica da linguagem, e eventualmente tocando, com seus chuviscos de real, também o corpo de quem o escuta. “Será possível, do litoral, constituir um discurso tal que se caracterize por não ser emitido pelo semblante”?[68] – indaga-se Lacan em Lituraterra. Um discurso que perfure a barreira do semblante, fazendo passar ao ouvinte o que se escava do vazio por meio da letra? Estariam os sonhadores deste tempo que é o nosso, à altura desses ‘acontecimentos de linguagem’?

Lucíola Freitas de Macêdo (EBP/AMP)

 

[1] Texto originalmente publicado na revista Opção lacaniana, n.84, fevereiro 2022, p.87-98.

[2] Lacan, J. (2011, dezembro). “A terceira”. Opção Lacaniana. (62): p. 25.

[3] Cf. Koretsky, C. (2019) Sueños y despertares: una elucidación psicoanalítica. Buenos Aires: Grama.

[4] Lacan, J. (1985 [1954-55]). O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 197-198.

[5] Lacan, J. (1992, [1969-70]). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 54.

[6] Lacan, J. (2008 [1972-73]). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 76.

[7] Lacan, J. Le moment de conclure, lição de 11 de abril de 1978, inédito.

[8] Idem, lição de 15 de novembro de 1977.

[9] Lacan, J.  Improvisation: désir de mort, rêve et réveil, l’Ane n°3, 1974.

[10] Lacan, J. (1976/2003). “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 567.

[11] Miller, J.-A. (2012). El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, p.184-185.

[12] Idem, p. 9-22.

[13] Idem, p. 263.

[14] Miller, J.-A. (2013). Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, p. 389-390.

[15] Idem, p. 141.

[16] Lacan, J. (1975-76/2007). O Seminário, livro 23, o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 145.

[17] Miller, J.-A. Piezas sueltas, p. 389-390.

[18] Miller, J.-A. El ultimíssimo Lacan, p.184.

[19] Lacan, J. O Seminário, livro 23, o sinthoma, p. 144.

[20] Miller, J.-A. (2004). Los usos del lapso. Buenos Aires, Paidós, p. 234-235.

[21] Idem, p. 244.

[22] Miller, J.-A. (2000). A erótica do tempo. Rio de Janeiro: EBP-RJ, p. 55.

[23] Miller, J.-A. (1987). Despertar, Matemas I. Buenos Aires: Manantial, p. 119.

[24] Idem, p. 120.

[25] Lacan, J. seminário 21, Le no-dupes errent, 19.02.1964. (Inédito).

[26] Lacan, J. (1964/1985). O Seminário, livro 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 59-61.

[27] Miller, J-A. (2015, junho). “Ler um sintoma”. Opção Lacaniana. (70): p. 18.

[28] Miller, J-A. (2000). Op. Cit. EBP-RJ, p. 51-52.

[29]  Miller, J-A. (2004, dezembro). “Biologia lacaniana e acontecimento de corpo”. Opção Lacaniana. (41): p. 54.

[30] Lacan, J. Les non-dupes errent, lição de 19 de fevereiro de 1974, inédito.

[31] Miller, J.-A. (2011, setembro). “A psicanálise, seu lugar entre as ciências”. Correio, n. 69, p. 27-28.

[32] Freud, S. “A interpretação dos sonhos”. (1900) In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 5. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 560.

[33] Vanderveken, I.(2019). “O umbigo do sonho não é um inefável.” XII Congresso da AMP. Disp. em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=traumdeutung&sub=despertar&file=traumdeutung/despertar/20-04-21_lombilic-du-reve-nest-pas-un-ineffable.html.

[34] Mandil, R. (2019). “Sonho e inconsciente real”. XII Congresso da AMP. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/sueno-e-inconsciente-real.html

[35] Lacan, J. (abril 2020) «O umbigo do sonho é um furo – resposta de Jacques Lacan a uma pergunta de Marcel Ritter”. Opção Lacaniana, n. 82, p. 13-20.

[36] Ibidem, p. 14.

[37] Mandil, R. “Sonho e inconsciente real”. Op.cit.

[38] Lacan, J. (1971/2003). «Lituraterra». In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 18.

[39] Miller, J.-A. O ser e o Um, lição de 25 de maio de 2011, inédito.

[40] Miller, J.-A. (2012). El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, p. 145.

[41] Lacan, J. Le moment de conclure, lição de 10 de janeiro de 1978, inédito.

[42] Miller, J.-A., O ser e o Um, lição de 25 de maio de 2011, inédito.

[43] Lacan, J. (1975/2003). “Joyce, o sintoma”. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 566.

[44] Mandil, R. (2003) Os efeitos da letra, Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro: Contra Capa, p. 261.

[45] Miller, J.-A. Piezas sueltas, p. 395-396.

[46] Lacan, J. Le moment de conclure, lição de 17 de janeiro de 1978, inédito.

[47] Ibidem.

[48] Laurent, É. (2016). “Inconsciente e acontecimento de corpo”. Correio, n. 78, p. 32-33.

[49] Miller, J.-A. (2019). “Les trumains”. XII Congresso da AMP. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/20-03-02_los-trumanos.html.

[50] Ibidem.

[51] Miller J.A. El ultimísimo Lacan, p. 185.

[52] Ibidem, p. 190.

[53] Miller, J.-A. Piezas sueltas, p.75.

[54] Lacan, J. (1975/2003). “Joyce, o Sintoma”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 565.

[55] Miller, J.-A. (2010, abril). “Lacan com Joyce”. Correio, n.65, p. 58.

[56] Laurent, É.(2016) O avesso da biopolítica, uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, p. 50.

[57] Laurent, É. (2016, abril). “Inconsciente e acontecimento de corpo”. Correio, n. 78, p. 33.

[58] Laurent, É. (2019). “La interpretación acontecimento”. Virtuália, n. 73. Disponível em: http://www.revistavirtualia.com/articulos/831/destacado/la-interpretacion-acontecimiento.

[59] Lacan, J.(1998, agosto). “Rumo a um significante novo”. Opção Lacaniana. (22): p. 10.

[60] Miller, J.-A., O ser e o Um, lição de 02 de março de 2011, inédito.

[61] Miller, J.-A. (2015, junho). “Ler um sintoma”. Opção lacaniana. (70): p. 21.

[62] Ventura, O. (2020). “Cuando el sueño despierta Un Cuerpo”. Papers 6. XII Congresso da AMP. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/el-tema/papers/papers_006.pdf .

[63] Laurent, É.(2019). «El despertar del sueño o el esp de un son». XII Congresso da AMP. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/template.php?sec=el-tema&file=el-tema/textos-de-orientacion.html.

[64] Ventura, O. (2020). Op. Cit.

[65] Laurent, É. (2020). Op. cit.

[66] Lacan, J. R. S. I. Lição de 11 de fevereiro de 1975, inédito.

[67] Reiñoso, A., Primeiro Testemunho. Ouïr. (Inédito). Cf. “Un despertar poético a la risa”. Papers+Um. XII Congresso da AMP. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/el-tema/papers/01_papers.pdf.

[68] Lacan, J. (1971/2003). “Lituraterra”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 23.


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