EBP- 25/11/22

Agradeço às instâncias da EBP por terem me convidado para seu Encontro, cujo tema é de uma atualidade e acuidade clínica, teórica e política.

Agradeço também a Angelina Harari por ter tido a ideia de fazer a junção de minha intervenção com o lançamento de Lacan Redivivus em português, o que é uma notícia maravilhosa!

O ano de 2021 marcou uma importante escansão por ocasião do aniversário dos cento e vinte anos do nascimento de Lacan e dos quarenta anos de sua morte. A Organisation Archives Lacan, a publicação dos volumes Lacan Redivivus e Lacan Hispano realizaram um conceito novo de mídia elevado à altura da Escola Una. De fato, essas novas publicações foram propulsadas no coração da AMP. Elas se mostram, a posteriori, necessárias por inaugurarem novas maneiras de trabalhar no Campo freudiano, a fim de manter vivo e atual o ensino de Lacan. Tal é o desejo de J.-A. Miller, que presidiu ao nascimento desses dois volumes: « não somente expor e explorar o ensino de Lacan, mas também pôr a trabalho o seu ensino sobre outros temas, como o fazemos com o casos clínicos [1] ».

À distância de estudos acadêmicos que incidiriam sobre o ensino de Lacan, trata-se de produções com Lacan, nas quais nos servimos do ensino de Lacan e cujas ressonâncias contemporâneas são mostradas.

Havia uma urgência em marcar um aniversário, o dos 40 anos da morte de Lacan, celebrando o homem Lacan mais do que o psicanalista de renome internacional. Uma urgência de dizer quem era Lacan, o que ele era para aqueles que o frequentaram. E, desde o início, o que nos parecia evidente é que seria um aniversário sem nostalgia, sem pathos. Que faria passar ao público um Lacan íntimo. Íntimo, aqui, rima com a política da psicanálise. Porque Lacan redivivus quer dizer que nossa relação com Lacan não consiste em remoer o passado de um homem, ou um pensamento passado, mas em considerar um Lacan que olha o atual, um Lacan vivo que nos olha e nos desperta.

Com efeito, este volume se abre com o caderninho de sonhos de Lacan. Foi um momento muito intenso. No início, tivemos, por repetidas vezes, hesitações quanto à transcrição: já que o relato de um sonho não tem a coerência de um texto comum. Em seguida, porque, quando o descobrimos, nós nos perguntamos sobre ao que visaria uma tal publicação. Esses sonhos que são narrados por Lacan indicam não somente a maneira como ele estava na tarefa de analisá-los, mas também elementos da vida privada, em um momento de engajamento crucial, de escolhas amorosas, de dilemas amorosos. O homem de desejo, mas também o universo fantasmático que, em cada um, não é compartilhável, expõe-se aqui, sem impudor, por ser justamente essa parte sombria e insólita de gozo contida em cada um. Transcrevê-la, para si, é reconhecê-la como parte de si. A esse respeito, a dificuldade de decifração deve-se também, em parte, ao carácter íntimo desse escrito: ele não é, literalmente, para ser lido, razão pela qual certas palavras são cortadas, apresentam pontos de suspensão, são apenas esboçadas, como se codificadas apenas para si, ao passo que outras apresentam uma grafia que contrasta muito com os manuscritos teóricos de Lacan, muito mais fáceis de ler.

Qual a necessidade de tornar público um texto tão íntimo? Por certo, isso não é sem evocar o fato de que Freud deu a conhecer, divulgou ao público sua descoberta, avançou em seu século, comunicando a análise dos seus próprios sonhos, mas foi naquele tempo da invenção da psicanálise. Aqui, é muito diferente, trata-se de Lacan em análise, analisante e, portanto, ao decidir publicar este caderninho, JAM impulsiona o que é a prática da psicanálise no campo da opinião, no campo social: e o que está em jogo concerne, portanto, à difusão e à transmissão da psicanálise, uma prática que pode levar alguém a ir muito longe na abordagem de seu ser, desprendendo-se dos ideais, do belo, das significações recebidas.

O endereçamento é um ângulo fundamental da publicação, um endereçamento não reservado a especialistas.

É assim que as publicações, nossas Jornadas, nossos fóruns, todas as intervenções que levam ao público questões de ordem clínica podem ter uma incidência na civilização, no campo social.

 

Com Lacan, trata-se, portanto, de pensar as questões clínicas atuais, como o corpo, a sexuação, o imaginário para, a um só tempo, elucidar, esclarecer os novos sintomas ou os debates da sociedade, se quisermos manter a oferta da psicanálise estando à altura da época, a oferta de uma psicanálise que não esteja com os pés acima do chão. Os psicanalistas sabem até que ponto as formas assumidas pelos sofrimentos de hoje dependem dos discursos que dominam nossa civilização. E a presença dos psicanalistas no debate público pode ser qualificada de política, não para adotar posições partidárias, nem para entrar na política, mas, sim, a cada vez que uma questão de ordem clínica está em jogo ou então que as condições do exercício da psicanálise são ameaçadas. E eu sei que o próprio título do Encontro de vocês é uma evocação de um contexto político agudo, candente, em seu país.

E como qualificar o momento presente? Como caracterizar a subjetividade da época? Eu diria que é um momento em que cada um está voltado para o seu mais-de-gozar falso, cada um voltado para o objeto a ser adquirido no modelo do mercado, em outras palavras, um mundo onde o fazer e o ter prevaleceram sobre o ser. E onde o elemento qualificado como « humus », como diz Lacan, é ele mesmo considerado como equivalente a um objeto qualquer, produto de nossa indústria. É um modo de fazer sentir o espírito do tempo, que quer indivíduos autônomos, isolados, cortados do outro, do Outro. Cada um autodeterminado. Este imperativo de autodeterminação acaba de alcançar, pelo menos na na Europa, as margens da infância, já que se trata de considerar a criança como um cidadão de pleno direito: considero, de minha parte, que isso é um atentado à democracia.

Em um tal contexto, os sujeitos se veem amputados de uma parcela de interioridade, de uma espessura de ser, de onde se poderia enunciar a falta, o mal-estar, o equívoco, por meio dos quais podemos endereçar-nos ao outro, abertura possível para uma transferência possível. Isso é o que muda a distribuição das cartas na maneira como os sujeitos se apresentam à psicanálise.

Precisamos considerar esse dado do discurso moderno, pois ele se infiltra nos tratamentos. O discurso moderno recusa o sintoma e impele à adicção. Precisamos opor à agitação, ao acting, uma outra ação: o ato de fala que permitirá a abertura para uma outra cena, a da conformação de um sintoma com seu núcleo pulsional. Educar, dar o gosto do inconsciente, « comover o inconsciente », como diz Lacan a propósito de Joyce, ou então estreitar o gozo opaco sem passar pelo afeto, segundo a estrutura clínica concernida.

Hoje, no tempo da comunicação generalizada, a linguagem se reduz. O significante é reconduzido ao signo que se crê ler sobre o corpo, e se precipita, se cristaliza uma identificação, ao mesmo tempo em que se reduz o sujeito a seu corpo, a suas roupas, à sua cor de pele, ao seu sexo… Em matéria de sexuação, a tendência é impor uma identidade de gênero que fixe uma resposta antes mesmo que a questão seja desdobrada pelo sujeito, com o tempo lógico necessário para compreender, o tempo necessário para se acostumar com seu ser sexuado. O próprio corpo é reduzido à roupa e introduz-se um forçamento no sentido da identidade sexuada.

É em nome dessa redução do sujeito ao seu corpo que todos são reconduzidos, os racismos que se pretende combater. A psicanálise é uma via que explora um trajeto completamente diferente, onde, ao contrário, aproxima-se um pouco o real do sexo que jaz no coração de seu ser, não sem o imaginário. Nós o aproximamos, mas não sem o outro, pois, como dizia Lacan, « existir não é ser, é depender do outro ».

O mal-estar correlacionado ao sintoma já deu lugar, hoje, à rejeição ou à negação do inconsciente, à medida que o simbólico perde em potência. A utopia não é mais o recurso ao pai, mas a docilidade generalizada, muitas vezes docilidade à burocracia sanitária. Por essa razão, enfatizo voluntariamente este movimento a favor de uma psicanálise presente no mundo: « Em direção ao inconsciente »: em direção ao que JAM havia utilizado a propósito da adolescência: em direção à adolescência. Em direção a para visar a distância necessária, a fim de alojar o lugar do inconsciente: nem ser, nem não ser, mas o não realizado, justo à espera de existir.

Christiane Alberti

 

Tradução: Vera Avellar Ribeiro

 

[1] Miller J.-A., in Miller J.-A. & alii, « Conversation entre Buenos Aires et Paris autour de Lacan hispano », La Cause du désir, n110, março de 2022, p. 13.


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