Um pequeno plano do labirinto
A vontade-de-dizer
O gozo fala A linguagem, aparelho do gozo
A interpretação introduz o impossível
a interpretação?a fala (la parole) a aparola (l´apparole) a linguagem lalíngua
a letra lituraterra
Eu lhes forneci, na vez passada, esse pequeno quadro de orientação, composto por seis termos emparelhados dois a dois e repartidos em duas séries de três. É um aparelho, um pequeno conjunto.
Posso lhes dizer de onde provêm esses seis termos, por mais que vocês o saibam. E o repito para mim mesmo.
A primeira série vertical é composta por três termos retirados de títulos de Lacan da primeira parte do seu ensino. Vocês conhecem “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”2. Extraiam a fala e a linguagem. Também conhecem “A instância da letra”3. Os dois primeiros são os termos-chave, fundadores, do ensino de Lacan, que se apresenta como um retorno a Freud, fazendo trabalhar esses dois termos na obra de Freud e no conceito da prática analítica.
Alguns anos mais tarde, como sabem, Lacan operou em ”A instância da letra” uma reorientação, que redundou na eliminação da intersubjetividade de suas referências e na inscrição, ao lado das leis da fala, das leis da linguagem que seriam a metáfora e a metonímia.
Com esses três termos temos as coordenadas essenciais que condicionam o ensino de Lacan e muito do que dele retivemos.
Em frente a esses três termos escrevi outros três, mais equívocos, neologismos que brincam com as palavras do léxico. Eu os retirei do último ou do penúltimo Lacan, aquele que reorienta seu ensino nos anos 70 e lhe dá uma abordagem sensivelmente distinta e mesmo surpreendente se comparado ao seu começo.
Estes termos são: a aparola (l´apparole) – sou obrigado a lhes dar uma indicação da maneira como escrevêlo, com l apóstrofe e dois p para marcar a diferença, já que se pronuncia da mesma maneira que o termo anterior4 -, lalíngua numa só palavra, e lituraterra, o único dos três termos que, sozinho, constituirá o título de um escrito de Lacan5.
Inscrevo essas referências para indicar que a nova perspectiva adotada por Lacan no final do seu ensino atinge coordenadas fundamentais. Essa nova perspectiva impõe uma nova disciplina à qual é preciso se acostumar, particularmente quando se tenta determinar o novo regime da interpretação analítica por ela condicionada.
Eu poderia acrescentar aqui a interpretação, com um ponto de interrogação.
O que ela se torna quando são tocadas essas coordenadas fundamentais do início? É preciso seguir Lacan, o único a avançar nessa direção.
Estamos tentando apreender alguma coisa da sua visada, que não avança sem desvios, contradições, tornando bastante difícil tecer um fio de Ariadne nesse labirinto. Trata-se de um pequeno plano do labirinto visto ainda de muito longe.
I
Tentemos avaliar – como comecei a fazê-lo na vez passada
– a ginástica que nos impõe passar de um dos termos da esquerda a um dos termos da direita.
Partamos – porque não – do termo a linguagem.
O que é a linguagem comparada ao que se delineia como lalíngua? – cujas possibilidades ilustrei na vez passada através de uma referência a Michel Leiris.
Digamos, como habitualmente, coisas simples. A linguagem, tal como Lacan a aborda no início de seu ensino, é uma estrutura. O que dizer dela? Um conjunto solidário de elementos diferenciados, diacríticos, relacionados uns aos outros, de modo que qualquer variação em um repercute nos outros, provocando variações concomitantes.
Isso será útil no momento. Isso se sustenta, é consistente, rigoroso. Não tem evidentemente como objeto a plasticidade de lalíngua.
É preciso dizer mais. A estrutura, tal como Lacan a propõe no início do seu ensino, é por excelência a estrutura linguageira. Lacan começou formulando que o inconsciente era estruturado como uma linguagem, o que significa, pelo menos, três coisas:
Primeira: o inconsciente é estrutura. Não se trata de um fluxo contínuo, indiscernível, nem tampouco de uma reserva de coisas heteróclitas, independentes umas das outras, reunidas numa espécie de saco. Nele discernimos elementos e esses elementos constituem um sistema.
Segunda: o inconsciente é linguagem. Esses elementos discerníveis são os mesmos da linguagem.
Terceira: o inconsciente é estruturado como uma linguagem de Saussure. Nela distinguimos o significante e o significado.
Nós nos formamos, nos habituamos, acostumamos com esse objeto-linguagem que, ao ser abordado como estrutura, implica uma suspensão e mesmo uma foraclusão metódica do
fator temporal, do fator diacrônico. A perspectiva tomada sobre o objeto-linguagem é essencialmente sincronia que
supõe, quando referida à história, que se pratique um corte, sincrônico. Ocupamo-nos de um estado do que Saussure chamava a língua.
Essa perspectiva é também essencialmente transindividual – sincrônica e transindividual. Tal definição da linguagem implica que haja um Outro que seja correlativo a outro conceito – o conceito de fala, que é basicamente diacrônica e individual.
Isso é saussuriano, mas Lacan, ao tomar sua referência à linguagem basicamente da obra de Saussure, reveste sua referência à fala, e mesmo a organiza, a ordena, como fala em Hegel, radicalmente intersubjetiva e, portanto, sempre dialógica, marcada pela estrutura do diálogo – mesmo quando superpõe a seu Hegel certo uso que ele faz do ato da fala segundo Austin.
Quanto à letra – eu a evoquei rapidamente na vez passada
- que designa, ao menos em “A instância da letra”, o significante em sua estrutura localizada, ela introduz no que concerne à função da fala – que, por isto, ela desvaloriza – a função da escrita, que está inteiramente no centro deste escrito, “A instância da letra”.
A estrutura da qual se trata condiciona um fenômeno e apenas um – talvez seja exagerado dizer assim –, um fenômeno fundamental, inicial, e por isso mesmo determinante em relação ao que ele pode atrair. Esse fenômeno essencial é o do sentido, que “A instância da letra” de Lacan rechaça para a posição de efeito.
Este ternário – a fala, a linguagem, a letra – tem como principal consequência que o fenômeno essencial por ele condicionado seja relegado à posição de efeito. Desse ponto de vista, a estrutura, como Lacan utiliza esse termo, é essencialmente a relação dos significantes entre si sob duas formas, a combinação e a substituição, o sentido aparecendo como efeito dessa combinação ou dessa substituição: como
efeito retido na metonímia, ou como efeito positivo, emergente, na metáfora.
Nessas coordenadas – que relembro resumida e solidamente para assegurar nossos pontos de vista, antes de chegarmos a uma zona mais incerta – a interpretação não constitui problema. Nela se trata de significante. A questão é saber qual significante deve ser acrescentado, trazido, injetado pelo interlocutor-analista, para provocar um efeito de sentido, que fica por determinar. Mas a problemática da interpretação se situa entre essa adição significante e a modalidade específica do efeito de sentido esperado, que é diversamente descrita no ensino de Lacan.
A esse respeito, é preciso um pouco de atenção, sobretudo porque é muito simples, bem discernido, bem situado, belamente disposto, estruturado.
Estruturar implica discernir, situar bem os elementos uns ao lado dos outros, nas devidas relações. Aqui nos perguntamos se isso basta, se é convincente, apesar de todo o apoio que encontramos no ensino de Lacan a este respeito: apenas situar o sentido no final da cadeia, na posição de efeito, como encontramos em “A instância da letra”. Há aqui significantes que se combinam ou se substituem, e depois – simplifico – certo efeito de sentido que está retido ou é emergente.
f(S…S) S (-)s
f S S (+)s S
Isso basta? Dá conta do que implica esse ternário de início?
Pois bem, é enganador apresentar as coisas assim, apresentar o sentido como sendo apenas um efeito, embora necessariamente – necessidade que Lacan absolutamente não
desconhece –, o sentido seja também certamente inicial e não apenas terminal.
Deve haver aqui pessoas que refletiram sobre o que Lacan chama seu grafo do desejo. Não se pode deixar de perceber o que se confirma claramente na construção desse grafo, que ordena os elementos determinados pelo primeiro ternário. Esse grafo é estabelecido sobre um esquema de comunicação.
Por mais complexo, refinado, variado que ele seja não passa de uma variação da comunicação intersubjetiva, de uma variação da estrutura de diálogo. Essa estrutura é acionada em seu ponto de partida – porque há um ponto de partida, apenas um, fundamental –, pelo que o próprio Lacan nomeia a intenção de significação. Essa maquinaria, esse aparelho – como o próprio Lacan o chamará no momento em que se separa dele – não funciona de forma alguma se falhar essa intenção inicial de significação.
O que isso significa? Significa que a energia de início, necessária ao funcionamento, ao acionamento desse grafo é fornecida por um querer-dizer. Por qualquer viés que ele seja tomado, não é possível prescindir desse querer-dizer. E a fenomenologia elementar da experiência analítica comprova isso.
Não vale a pena entrar em análise, se não se quer dizer. Acreditamos que queremos dizer, e quando nos damos conta, no interior, de que não queremos dizer, o analista está ali para marcar que esse não querer dizer é mesmo assim um querer- dizer. Tentem se convencer disso.
Querer dizer tem certa materialidade – não se trata de uma ficção – e mesmo certa evidência. Tal evidência percorre
- ensino de Esse querer-dizer se reporta ao sujeito, ao sujeito completo, ao sujeito barrado, ao sujeito cindido, dividido. O sujeito quer dizer. E o sujeito, complexificado por Lacan, multiplicado, anulado, se mantém como vontade-de- dizer.
Insisto enfaticamente nisso. É preciso insistir enfaticamente para transmitir algo na massa de comentários, de significantes, de significados que recobre tudo isso. Nesse assunto, não caminho rapidamente. Percorro cuidadosamente esse terreno. Depois, a marcha começará a ser mais complicada, e então tiro proveito disso para expor a questão.
Seguramente o sujeito barrado de Lacan não é vontade de reconhecimento, como efetivamente ele era no início. Quando
- essencial para Lacan é a relação intersubjetiva, o sujeito é vontade de reconhecimento pelo Outro, desejo de reconhecimento. É isso que Lacan questiona, e finalmente refuta. Mas o sujeito permanece como vontade-de-dizer ao Outro, com maiúscula – a esse respeito nada muda -, ou como vontade-de-dizer para o Outro, na direção do Outro, inclusive a partir do Outro, mesmo quando esse Outro com maiúscula, como Lacan acaba definindo-o, não é mais definido como um sujeito. Isso não impede que o sujeito, que fala, seja vontade-de-dizer em função desse
O cerne da função da fala é dado pelo que nomeio hoje a vontade-de-dizer. A fala sempre implica uma estratégia que envolve o Outro, uma vez que o parceiro do sujeito, que sempre existe, é esse Outro. É a partir deste fundamento – que situa o sujeito e seu querer-dizer na fala, e o Outro, seu parceiro – que podemos distinguir, por exemplo, a demanda e o desejo.
Mas quando partimos dessas premissas, a fala sempre é um assunto de pergunta e resposta. Nessa configuração, a interpretação do analista sempre aparece como uma resposta. Lacan pode muito bem dizer que essa resposta interpretativa
é, por excelência, uma questão, o célebre Che vuoi? Que queres? seria a interpretação mínima, o que uma interpretação sempre significa, mesmo quando ela encontra outros enunciados.
É possível perfeitamente dizer que a resposta é uma pergunta, uma pergunta sobre o desejo. Que queres? é uma das fórmulas especialmente proposta nesse grafo, que daria o texto mínimo da interpretação analítica na medida em que incidiria sobre o desejo.
Há, a esse respeito, uma via central da clínica que se propõe e que consiste em se perguntar: ao que a fala do sujeito reduz o Outro, seu parceiro? Ou qual figura do Outro o sujeito tem como parceiro explícito ou implícito nesse diálogo? Há de fato uma parte bastante extensa da reflexão analítica, do estudo que pode ser feito dos casos clínicos, inclusive no âmbito da supervisão, que passa por essas avaliações. Não estou ali para dizer: Isso não funciona, é mera aparência. Mas, ao contrário, para acentuar como isso se sustenta, como constitui sistema.
A fala do primeiro ternário é sempre articulada, numa determinada estratégia, ao Outro, sempre decifrável como uma estratégia do sentido.
Tomemos exemplos e reflitamos a partir deles.
O que podemos dizer da fala histérica? A fala histérica é, por excelência, a fala analisante, na medida em que é a que constitui enigma, a que se oferece ao Outro para ser interpretada, que necessita do analista como parceiro. É efetivamente no desastre moderno e diante do fechamento de todos os recantos onde se poderia encontrar o analista, o pré-analista, o protoanalista, o para-analista – como a civilização sempre o ofereceu até os tempos modernos –, é nesse grande deserto que foi preciso inventar o analista propriamente dito para realizar essa tarefa de interpretação oferecida por essa fala. A fala histérica evidencia um querer-dizer distinto do dito, sublinha a distância do dizer
ao dito.
Prossigamos nesse sentido. Trata-se da fala sempre insatisfeita com o dito. Nela, o sujeito experimenta na insatisfação, no sofrimento e mesmo na culpa, a impossibilidade de dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro, de dizer toda a verdade. Ele o experimenta segundo diversas modalidades, que podem ir da fatalidade da mentira à aceitação do desempenho de um papel. O que não é, aliás, absolutamente incompatível: por um lado, esbaldar-se no desempenho de um papel e depois, desabar diante da fatalidade da mentira que esse papel implica. Essa fala é bem aquela que dá lugar ao intérprete, que o estimula, o causa.
O que poderíamos dizer da fala obsessiva em comparação com esta, a partir dessas coordenadas? É antes uma fala que seca a interpretação, que cala o intérprete e visa certa anulação da divisão subjetiva, portanto uma adequação do querer-dizer ao dito. Poderíamos dizer, exagerando o traço, caricaturando-o, que é uma fala cuja mensagem silenciosa sempre é: Nada há a acrescentar. De qualquer forma, o Outro nada tem a acrescentar. A fala obsessiva é uma espécie de mordaça colocada na interpretação.
Para prosseguir com a galeria das grandes categorias, o que poderíamos dizer da fala psicótica? Na psicose, a própria fala assume a tarefa de interpretação, pelo menos na vertente paranoica, colocando-se como dona do sentido, chegando, na esquizofrenia, a poder denunciar o semblante social em seus últimos redutos.
Quanto à fala perversa – talvez possamos mais tarde dar- lhe um lugar à parte -, digamos que ela debocha do sentido. Quando ela se desenrola, pura, não dá muita margem ao exercício da interpretação analítica.
Trago essas pequenas vinhetas rápidas para lembrar o terreno que podemos cobrir na experiência analítica, a extensão da apreciação que dela podemos fazer, considerando a estrutura-linguagem e seu fenômeno essencial, o sentido, mesmo quando o sentido é batizado como desejo. O essencial
de nossa clínica analítica se desloca nessas coordenadas,
certamente com variações, oposições internas. Eis o que se desloca quando passamos da linguagem à lalíngua.
II
Lalíngua, que comecei a ilustrar, a evocar na vez passada, não parece ser uma estrutura. Se a estrutura é o que eu disse no início, não chego a dizer: Lalíngua é uma estrutura. Aliás, a palavra forjada por Lacan, juntando o artigo ao substantivo, é bem feita para marcar que, nela, os elementos da linguagem que acreditamos discerníveis, não o são tanto assim. E Leiris nos oferece numerosos exemplos. Em todo caso, é muito equívoca. Ela não deixa de ter relação com a estrutura, mas daí a dizermos que lalíngua é uma estrutura, nesse ponto recuamos. Particularmente porque lalíngua não é um objeto recortado na sincronia. Ela comporta uma dimensão irredutivelmente diacrônica, uma vez que é essencialmente aluvionária. Ela é constituída por aluviões em que se acumulam os mal-entendidos, as criações linguageiras de cada um.
Lacan cuidava muito de acentuar que as locuções que empregamos têm uma origem precisa, que nem sempre conseguimos determinar. Ao lermos o Dicionário das Preciosas nos damos conta de que certo número de suas invenções mais mirabolantes foi incorporado aos nossos meios comuns de expressão. A marquesa Untel disse certa vez: A palavra me falta, o que foi considerado charmoso, maravilhoso – Isso é a cara dela! A frase foi repetida, tornando-se hoje nossa maneira de dizer. Esse exemplo trazido por Lacan tem o valor de, discretamente, desordenar um pouquinho o objeto-linguagem em sua sincronia. Afinal, é muito mais divertido usar a língua com a contribuição da marquesa Untel e a do carreteiro da Praça Maubert. Ela comporta uma dimensão diacrônica e uma dimensão “individual”, entre aspas. Esse conceito forjado
por Lacan incorpora assim a invenção de cada um como contribuição à comunidade que habita uma lalíngua.
O fenômeno essencial do que Lacan chamou lalíngua não é o sentido – é preciso se dar conta disso –, mas o gozo. Nesse deslocamento, nessa substituição, todo um panorama se transforma – não se trata de uma pequena modificação que se introduz aqui e, depois, todo o restante permanece inalterado. Quando isso é tocado, todo o edifício desaba, ou, ao menos, balança.
Digamos de outra maneira. O princípio do segundo ternário não é o querer-dizer, mas o querer-gozar. Também me corrijo, pois me disse: O marquês Lacan disse a aparola, ele é maravilhoso! E adoto esse termo, transmito-o. O segundo ternário traduz o novo estatuto do primeiro, quando a pulsão
- para tomar a invenção do conde Freud – e não a significação, é concebida como princípio, como motor do ser falante, para dizê-lo rapidamente. Aqui, todo um sistema conceitual é transformado.
A partir disso, percebemos melhor do que se tratava nessa máquina do grafo do desejo. Era – nós o asseguramos por outras vias no ano passado – uma tentativa de Lacan de estruturar a pulsão a partir do modelo da comunicação intersubjetiva. Uma tentativa prodigiosa que consistia em fazer da pulsão um modo de mensagem, uma demanda sem sujeito. Trata-se de uma mensagem paradoxal, mas que, ainda assim, faz da pulsão um tipo de mensagem. A demanda é evidentemente um modo de mensagem, mas aqui o sujeito está ausente ou eclipsado, ou só está presente por sua barra ou por sua falta, mas uma demanda. Além disso, a pulsão é dotada de um vocabulário próprio nesse grafo, que Lacan escreve em paralelo ao tesouro de lalíngua. De um lado o tesouro de lalíngua, do outro, o tesouro da pulsão. O que significa efetivamente acentuar que a pulsão é dotada de um vocabulário próprio. Há, ainda assim, uma mensagem que se dirige ao outro lado e que se formula em termos de pulsão, e depois, no lado direito, aparece um efeito de sentido extremamente particular, especial, paradoxal, limite, mas de qualquer
forma um efeito de sentido.
Percebe-se então, do ponto que os convido a ocupar, que Lacan partiu da comunicação e estruturou, modelou a pulsão a partir da fala. Ele comenta isso longamente e de modo definitivo, fala e pulsão.
Fazer isso era certamente dar seu lugar à pulsão como querer-gozar, mas sempre sob o domínio do querer-dizer.
Isso é feito com extrema sutileza, e não sem fundamento.
Antes, despi a princesa, e se percebe que isso se fundamenta em um princípio simples, elementar. A princesa é o grafo. Quando tudo isso é retirado, resta a própria organização, o esqueleto da princesa. E se retirarmos um pouco mais, como, aliás, na história de Alphonse Allais…
Percebemos do que se trata quando a aparola vem no lugar do conceito de fala. A aparola não é algo que Lacan tenha dito frequentemente, creio que apenas uma ou no máximo duas vezes. Pouco importa. É necessário reelaborar o conceito de fala quando se chega aos extremos que acabo de descrever.
A fala – a fala tranquila – diz sempre um e outro, mesmo quando o outro se torna o Outro, supõe sempre pergunta e resposta. É sempre uma relação, um diálogo.
Ora, a aparola é um monólogo. O tema do monólogo obceca o Lacan dos anos 70 – o lembrete de que a fala é, sobretudo, monólogo. Proponho aqui a aparola como o conceito que corresponde ao que surge no Seminário Mais, ainda, quando Lacan interroga de maneira retórica: “Mas lalíngua, será que ela serve primeiro para o diálogo? Nada é menos certo”6. Digo que o que responde a essa observação, a essa interrogação – que, desenvolvida de maneira resumida, é capaz de fazer
afundar o conjunto do sistema – é que ela exige um novo conceito de fala, uma vez que lalíngua não serve ao diálogo. Com o conceito de aparola, o conjunto da referência à comunicação desaba ou, pelo menos, no nível em que se trata da aparola não há diálogo, não há comunicação, há autismo.
Não existe o Outro com maiúscula. A aparola não tem por princípio o querer-dizer ao Outro ou a partir do Outro.
No Seminário Mais, ainda, Lacan evoca o termo blablablá. Esse termo não aparece no Robert, ao menos na edição que tenho7, mas é listado no Dictionnaire de l’Argot (gíria) do Larousse, que lhes recomendo. Blablabá, expressão de uso corrente, é glosada como tagalerice vazia e sem interesse. Sobre sua origem não se sabe visivelmente quase nada. Ela derivaria de zombar (blaguer)– uma zombaria não é absolutamente uma tagarelice sem interesse; é o interessante na comunicação – ou de to blab, em inglês, que significa tagarelar. Ela é usada por Céline. Como não se reedita todo o Céline, dada a significação do seu blablablá que nem sempre é do melhor gênero…, não tenho o volume em questão, de 1937. De qualquer forma, para mim o blablablá foi difundido por Le canard enchaîné. Creio que esse periódico reivindicou, há alguns anos, a paternidade dessa expressão. Seria preciso fazer uma pesquisa séria sobre a etimologia de blablablá. Se alguém a possui ou gostaria de fazê-la seria muito bem vindo. Diz-se também, como assinalado no Dictionnaire de l’Argot, o blablá. Aliás, Lacan empregava habitualmente a expressão blablá, duas vezes apenas. É mais refinado. No blablablá há certamente mais blablablá, temos a impressão de que quem fala se deixa arrastar pelo que está em questão, e justamente blablata, enquanto blablá é o minimum.
Perguntei-me se poderíamos assimilar o blablá à aparola. Não exatamente, embora Lacan evoque, em Mais, ainda, “o que se satisfaz com o blablablá”8. O blablá é uma forma degradada da fala, mas pertence ao registro da fala e não ao da aparola. É finalmente a fala vazia, como Lacan a havia batizado, a
fala na qual o que prevalece, tem peso, não é o conteúdo
semântico. Por isso o dicionário diz: é uma tagarelice vazia. O que conta não é o estofo semântico, mas o blablá – não sei o que vocês pensam disso –, que continua a assegurar as funções fundamentais da fala, a ponto de nos perguntarmos se é possível fazer a diferença. O blablá abre suas asas sobre tudo o que é fala. Vocês pensam com razão que eu me coloco essa questão ao dar um curso. O blablá garante perfeitamente uma função de comunicação. Ele assegura muito bem o que Jakobson chama a função fática, a função de manter contato com o outro. Quanto mais o blablá é vazio, mais ele manifesta a direção para o Outro, o gancho que o prende ao Outro. Quanto menos informações a fala contiver, mais ela é fática. A aparola nada tem de fática. Por isso eu a chamava,
há pouco, autista, num uso um pouco rápido do termo. A aparola é no que se transforma a fala quando é dominada pela pulsão, quando ela não garante a comunicação, mas o gozo. É o que corresponde à fórmula de Lacan no Seminário Mais, ainda: “Ali onde isso fala, isso goza”9, que significa no contexto: isso goza de falar.
Há, então, alguma coisa a situar que se satisfaz nesse blablá, e se satisfaz no nível do inconsciente.
Lacan tentou avançar no Seminário Mais, ainda uma conjunção radical do isso fala com o isso goza, ou seja, do Outro lacaniano com o isso freudiano ou groddeckiano. Trata- se da conjunção do que, no grafo, é distinguido como: o isso fala impõe sua estrutura ao isso goza. Trata-se efetivamente do casamento do vaso de barro com o vaso de ferro. O vaso de barro do Outro acaba despedaçado pelo vaso de ferro do isso. Assim, Lacan foi levado necessariamente a examinar o axioma o inconsciente é estruturado como uma linguagem, que
pertence ao primeiro ternário. Ter dito: o inconsciente
estruturado como uma linguagem incomodou enormemente Lacan, o que é demonstrado pelo fato de que, periodicamente, ele volta a isso. Ele repete: “eu disse o inconsciente estruturado como uma linguagem.” E simplifica a questão: “Lalíngua, a aparola, ali onde isso fala isso goza, é exatamente o que eu disse ao dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem”10. Eu o cito no capítulo ‘A outra satisfação’, no qual introduz essa conjunção totalmente inédita. E ele a demonstra.
Acrescentemos o comentário que se impõe, aliás, três comentários.
Primeiro: quando ele diz isso e o repete, não é verdade. O inconsciente estruturado como uma linguagem foi feito, ao contrário, como ele mesmo disse – citei frequentemente esta frase de “Função e campo da fala e da linguagem”, que é de fato uma referência – “para a desintricação que produzem entre a técnica de decifração do inconsciente e a teoria das pulsões”11. Foi feito justamente para colocar de lado a pulsão, ou o instinto, e isolar bem os fenômenos de sentido. Portanto, se ele o repete tão frequentemente e de maneira afirmativa, é justamente porque isso não é verdade.
Segundo: quem pode dizer a Lacan isso não é verdade? Há pessoas que não o amam; não é o meu caso. Trata-se de uma reinterpretação da fórmula inicial, uma autoreinterpretação criativa. Na verdade Lacan – ninguém entendeu isso – com uma arte extraordinária, chega a nos demonstrar que essa frase pode também querer dizer o que ela não significava em 1953. Vale a pena acompanhar a argumentação em detalhe, porque ela nutre justamente criações especialmente delicadas e interessantes.
Afinal, é fácil dizer: Eu me enganei. Todas essas questões não se situam no nível do erro. É fácil dizer: Esqueço o que disse; começo algo diferente. No entanto, é muito mais forte não deixar nada para trás, retomá-lo, vestir a princesa, após tê-la despido, com novos adornos, e mostrar
que ela é agora, por exemplo, uma republicana. É o que Lacan faz e, nesse caminho, é muito mais interessante.
Terceira – quando ele diz: é o que eu digo, basta acrescentar um marcador temporal – É o que eu digo agora, ao dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem.
A interrogação de Lacan chega a questionar este inconsciente estruturado como uma linguagem e, a partir desse fato, ele coloca a obra inteira a trabalho. Percebese que isso não encaixa perfeitamente, que às vezes é preciso forçar um pouquinho. Mas, de qualquer forma, isso assinala que os próprios fundamentos estão em questão.
É isto que ele propõe como gozo da fala, a Outra satisfação, a que se fundamenta na linguagem e é distinta do que seria o puro gozo do corpo não falante.
Mas a própria expressão gozo da fala pode deslizar, sem que se perceba o valor que deve ser dado a ela. Analistas ortodoxos – como eles se chamam – estavam prestes a colocar isso no registro da pulsão oral. Não é esse o valor próprio que Lacan dá a esta expressão, gozo da fala.
É preciso dar um valor radical a essa expressão, ou seja: o gozo fala. A fala é animada por um querer-gozar. Não se trata apenas de demanda. Seria possível dizer que a demanda visa uma necessidade, uma satisfação, inclusive um gozo e que, portanto, esse querer-gozar já estava presente na noção de demanda, porém um querer-gozar que passa, que é dominado, pelo querer-dizer.
Para colocar a fórmula o gozo da fala em seu justo lugar, é preciso inscrevê-la ao lado da fórmula: Eu, a verdade, falo, que pertence ao contexto do primeiro ternário. No primeiro ternário, Lacan resume as formações do inconsciente, a análise por Freud do primeiro lapso, dizendo: Eu, a verdade, falo. A verdade fala, e ela diz Eu.
Quando ele evoca o gozo da fala, trata-se da fórmula simétrica e oposta a esta. O inconsciente estruturado como uma linguagem implica que a verdade fala, enquanto que, no contexto de lalíngua e da aparola, é o gozo que fala.
Isso conduz, aliás, a uma inversão dos valores da fala vazia e da fala plena, tal como Lacan havia trazido no início de seu ensino. A fala vazia é a fala oca, enquanto a fala plena é aquela cheia de sentido – como Maria cheia de graça.
Nesse contexto, talvez se fique muito perplexo diante do que escrevi na linha de cima: a interpretação com um ponto de interrogação.
Quando se trata do contexto da fala, quando é a verdade que fala no lapso, no ato falho, a interpretação tem seu lugar próprio. Ela tem por finalidade fazer surgir um efeito de verdade que, seja qual for a maneira com que ele seja modalizado, contraria o efeito de sentido, de verdade, anterior, ou seja, aquele que resultava do que a verdade dizia na fala do analisante. Mas o que se pode fazer com a interpretação quando se trata da aparola, quando é o gozo que fala? Interpretar a verdade,
certamente. Interpretar o gozo!
III
De onde vêm os dois p de l´apparole? Como indiquei da vez passada, vêm da palavra appareil, aparelho. Lacan já avança nesse sentido em Mais, ainda, ao evocar os aparelhos do gozo pelos quais a realidade é abordada. Aliás, ele reduz esse plural basicamente à linguagem como aparelho do gozo, mas, evidentemente, também poderíamos considerar a fantasia como um aparelho do gozo. Normalmente, não se considera que a realidade seja abordada pelos aparelhos do gozo. Considera- se que a realidade é abordada pelos aparelhos da percepção, pelos aparelhos da representação, pelos aparelhos da consciência. Nesse Seminário, é em relação a isso que Lacan formula que ela é abordada pelos aparelhos do gozo. É abordada por tudo o que serve para gozar.
Podemos nos deter um pouco na palavra aparelho,
instrumento, engenho. Mas outros valores são atribuídos a aparelho. O aparelho é um apresto, o que está preparado. O
Robert diz: é o que está à mão. Isso nos faz pensar no estando-sob-a-mão de Heidegger, que é o utensílio, o que está próximo. É aquilo que foi arranjado, disposto, preparado de antemão.
O termo aparelho – que me agrada muito – tem duas vertentes, uma do lado do semblante, e outra do lado do útil. Por um lado, o aparelho é a demonstração exterior dos aprestos, portanto relativo a tudo o que se refere à bela aparência, ao aspecto, à impressão produzida pelo conjunto do que está à disposição. Então, há sempre no aparelho
magnificência de pompa, de ostentação.
É mais delicado quando se evoca o aparelho simples. Para nós, ainda ecoam nos ouvidos, a partir de Racine, as palavras de Nero ao descrever a paixão amorosa por Juno pela qual foi tomado. Estes dois versos condensam o enunciado de uma fantasia: Bela, sem ornamento, no simples aparelho/De uma beleza que se acaba de arrancar do sono. O aparelho jamais foi melhor evocado que nesses versos, nos quais é abandonada toda a pompa, a ostentação. Trata-se, ao contrário, do aparelho mesmo da surpresa e da nudez. Eis uma das vertentes de aparelho. Temos aqui de fato a fantasia, aparelho do gozo.
Por outro lado, há a vertente do útil, já que um aparelho é uma reunião, um ajustamento, uma montagem que possibilita realizar uma função. Essa montagem constitui uma totalidade, cujos elementos foram reunidos para servir.
Há então a vertente semblante, com todas as suas nuanças, e também a vertente utilitária, funcional.
Um aparelho é tudo que serve para alguma coisa e que não é simples. Não se trata da ferramenta. O aparelho implica certa complexidade.
Estou pronto para lhes dar – não hesito – todo o valor que tem esta notação de Lacan: a linguagem, aparelho do gozo. Estaria mesmo decidido a construir o conceito de aparelho como um conceito oposto ao de estrutura.
A linguagem é uma estrutura, mas defini-la como aparelho do gozo talvez implique em substituir, no nível que convém, o conceito de estrutura pelo conceito de aparelho.
O aparelho é uma montagem, mas uma montagem que pode ser mais heteróclita que a estrutura e que é, sobretudo, poderosamente finalizada. Uma estrutura pode ser decifrada, construída, mas dentro um pouco do elemento contemplativo. É preciso acrescentar coisas, como a ação, para que a estrutura comece a funcionar. Já o aparelho é de saída conectado a uma finalidade, aqui uma finalidade de gozo que ultrapassa a dita finalidade de conhecimento da realidade. Então, eu gostaria de considerar que o conceito de estrutura pertence propriamente ao contexto definido pelo primeiro ternário, e que talvez tenha o aparelho, como seu correspondente, no outro lado.
Ao empregar o termo aparola, Lacan a apresenta como uma palavra-monstro, cujo equívoco pede que acolhamos. A expressão palavra-monstro não deixa de evocar aquela de Leiris que citei na vez passada, os monstros orais que se originam da língua. Lacan usa este termo aparola num escrito, a propósito do grafo do desejo. Ele o diz como por acaso, acrescentando: “Esse aparelho (…), no qual se representa a aparola (…), que se faz a partir do Outro”12. Toda a questão é saber se a aparola é de fato compatível com o Outro.
Eu situava, como dificuldade, o lugar da interpretação nesse novo contexto em que não há lugar para o diálogo, para a comunicação intersubjetiva, mesmo modificada pela introdução do grande Outro.
O problema é o não-diálogo, o ND13.
Sobre isso, há uma indicação de Lacan – vou dá-la a vocês – que poderia caber hoje. Evocando o ND, o nãodiálogo, e percebendo bem que uma posição absoluta em relação ao não- diálogo deixa a interpretação exposta, ele indica: O não- diálogo tem seu limite na interpretação, pela qual se
assegura o real.
Como disse, seguimos Lacan em uma zona ainda não muito balizada, e onde os circuitos se cruzam. Quebrei um pouco a cabeça sobre essa frase, dizendo a mim mesmo que, num dado momento, ela poderia me servir de bússola nessa zona delicada, na qual nos deixamos conduzir com algumas reticências ao nos darmos conta de que estamos prestes a demolir totalmente a casa que construímos.
É interessante considerar as coisas desse modo. Primeiramente, é prático. Se não há diálogo, não há interpretação. Se quisermos dar um lugar à interpretação é preciso levar ao limite o não-diálogo. Não ocupe todo o espaço! Ou seja, é preciso colocar em algum lugar um limite ao não-diálogo, não se restringir a dizer: acabou, já que de qualquer forma persiste algo como interpretação.
É preciso um limite ao monólogo autista do gozo. E acho muito iluminado dizer: A interpretação analítica faz limite. A interpretação tem, ao contrário, uma potencialidade infinita. Degustamos a infinitude da interpretação, que nutre as bibliotecas. A interpretação é a tal ponto do sentido, que basta um significante a mais, não importa qual
- ele pode ser escolhido com discernimento –, para reinterpretar a posteriori.
Vocês podem experimentar isso no comentário de Lacan. Abram o dicionário ao acaso e tomem uma palavra, por exemplo, o número inteiro. Sobre o número inteiro e a psicanálise é possível escrever quilômetros. Depois, podem seguir a atualidade, que permite uma reinterpretação contínua. Ou seja, a interpretação, quando é do sentido, longe de impor limite, é ilimitada. Mas essa frase toma as coisas efetivamente na contramão: ela situa a interpretação analítica não só como finita, mas diz que ela limita. A interpretação analítica limita.
O que também gosto muito nessa ideia de que a interpretação analítica faz limite, é que ela situa a interpretação mais como uma contenção do que como um relançamento – ou seja, o contrário do que poderia ser uma
prática da interpretação. Há também nessa frase a noção de que não é o sentido que se assegura pela interpretação, como seria normal no contexto do primeiro ternário. É o real que se assegura pela interpretação.
O que podemos fazer com isso? Em que o real é assegurado pela interpretação? Isso leva a pensar que, na fala como ND, não-diálogo, no monólogo da aparola não há real ou, ao menos, nesse nível o real não está assegurado.
O que isso pode de fato significar? O que Lacan visa com esses truques? Nesse ponto não estamos seguros de que Lacan se dirija a nós. Tentamos pensar ‘como se’, ou seja, como se ele se dirigisse.
Sobre esse monólogo, se pensarmos na associação livre – que podemos tomar como um exercício da aparola, o de dizer qualquer coisa – toda a tese de Lacan, por exemplo em Mais, ainda, é mostrar que esse dizer não importa o quê conduz sempre ao princípio do prazer, ao Lustprinzip. Quer dizer, ali onde isso fala isso goza. É o comentário sobre isso. Particularmente porque, ao colocarmos entre parênteses os interditos, as inibições, os preconceitos, etc., quando a fala se põe a girar nesse nível, há uma satisfação da fala, ou seja, tudo vai bem.
Por isso Lacan, ao introduzir a noção de gozo da fala, faz uma reflexão sobre o dizer que tem êxito, etc. Trata-se do mesmo ponto de vista do que ele enuncia, em “Televisão”, quando diz: “o sujeito é feliz”. Sejam quais forem seus sofrimentos, no nível do inconsciente, ele é sempre feliz14
– ou seja, a pulsão sempre funciona como convém, à diferença do desejo.
O que isso significa, senão que nesse nível não há impossível? No nível da pulsão, no nível em que sujeito é feliz, no nível em que isso fala isso goza, há satisfação, tudo vai bem. Nesse regime, não se pode assegurar nenhum real como impossível. Nesse nível, a realidade só é abordada pelos aparelhos de gozo, ou seja, a realidade fantasística. Há a significação fantasística e mesmo a interpretação sem limite
da aparola, mas não há real assegurado. No nível em que o sujeito é feliz, o real não está assegurado.
Isso indica qual poderia ser o lugar da interpretação analítica, na medida em que ela interviria na contramão do princípio do prazer. Seria preciso formular, seguindo a linha sugerida por Lacan – enfim, sugere! Ele devia ter o aparelho da coisa, enquanto nós estamos tentando reconstruí-lo –, que a interpretação analítica introduz o impossível.
Nesse êxito pulsional fatal – mesmo no âmbito do sofrimento, isso funciona, o sujeito é feliz – no nível aqui determinado, a interpretação analítica sublinha o fracasso presente no êxito da aparola. Tal fracasso, indicado por Lacan em Mais, ainda, é que toda essa felicidade não permite garantir o real da relação sexual. Não desenvolverei isso, apenas indico seu lugar nesse contexto.
Se tomarmos as coisas por aí, isso tem consequências. Se a interpretação analítica é o meio pelo qual se assegura o real, então ela é da ordem da formalização, se admitirmos que apenas a formalização matemática atinge um real. É isso que Lacan explora.
Isso implica que, como a formalização, a interpretação analítica deve ser feita ao contrário do sentido. Lacan evoca mesmo que poderíamos dizer a contrassenso. Aliás, o equívoco é justamente tomar as coisas pelo contrassenso.
Se quisermos – mantenhamos a esperança – dar novamente um lugar à interpretação analítica no segundo ternário, é preciso que ela tenha valor de formalização da aparola. Isso quer dizer que a interpretação analítica, assim como a formalização, aceita, assume, suporta certo isso não quer dizer nada.
Trata-se de um modo um tanto especial de interpretação. Toda interpretação consiste em formular isso quer dizer outra coisa – enquanto que aqui, a redução ao isso não quer dizer nada está no horizonte. Poderíamos mesmo dizer que, na interpretação analítica, a extração do isso quer gozar passa pelo isso não quer dizer nada, e que o
inconsciente, ao contrário, – por isso não se pode desconhecê-lo nesse estatuto – mascara, com o isso quer dizer, o isso quer gozar. Portanto, para reencontrar o isso quer gozar, é preciso passar pelo isso não quer dizer nada. Isso implica ainda outra coisa, que não cairia mal se fosse construído. É que, a exemplo da formalização, a interpretação no segundo ternário está mais do lado do escrito que do lado da fala. De qualquer forma, ela deve ser feita desafiando o escrito, na medida em que a formalização
supõe o escrito.
Chego ao final por hoje. Prosseguirei na próxima semana.
Tradução: Elisa Monteiro
1 Este texto, que ora publicamos em Opção Lacaniana online nova
série, é uma nova tradução feita a partir de “Le monologue de l’ apparole” de Jacques-Alain Miller, texto editado por Catherine Bonningue e publicado em La Cause freudieene, nº 34, L´apparole, et autres blablas, de novembro de 1996, pp. 07-18. Retoma a sétima lição (31 de janeiro de 1996) de ‘A fuga do sentido’,
Curso de Jacques-Alain Miller da Orientação Lacaniana (19951996), ensino pronunciado no âmbito do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII. Foi publicado pela primeira vez em português em Opção Lacaniana nº 23, de dezembro de 1998, pp. 68-
- Lembramos que a sexta lição desse Curso de J.-A. Miller foi publicada, com título “O escrito na fala”, em Opção Lacaniana on- line nova série n.8, de julho de 2012. Nesta nova tradução, revista pela equipe editorial de Opção lacaniana on-line nova série, seguimos a tradução da Jorge Zahar editora do termo l´apparole usado por Lacan em “Prefácio a uma tese” (2003[1970]). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 395.
2 LACAN, J. (1998[1953]). “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, pp. 229-237.
3 Idem. (1998[1957]). “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. In: Escritos. Op. cit., pp. 493-533.
4 NT: Seguindo o que acentua J.-A. Miller aqui, mantivemos no quadro acima os termos em francês entre parênteses, que correspondem à fala e à aparola, ou seja, la parole e l’ apparole, para que não se perca a ideia de que são homofonicamente idênticos.
5 LACAN, J. (2003[1971]). “Lituraterra”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, pp. 15-25.
6 LACAN, J. (1985[1972-1973]). O seminário, livro 20: mais, ainda.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 189.
7 NT: Os termos blablablá e blablá já foram incorporados ao Robert e ao Houaiss. Blablablá é definido no Houaiss como:
“conversa oca, sem conteúdo; conversa fiada”, e ainda como “exposição longa ou série de afirmações, por vezes de cunho mentiroso, de que se lança mão para mascarar o vazio do pensamento, para enganar alguém ou iludir sua vigilância”.
8 LACAN, J. (1985[1972-1973]). Op.cit., p. 77.
9 Idem. Ibid, p. 156.
10 MILLER, J.-A. apud LACAN, J. (1985[1972-1973]). “Aristóteles e Freud: a outra satisfação”. In: O Seminário, livro 20: mais, ainda. Op. cit.
11 MILLER, J.-A. apud LACAN, J.(1998[1953]).“Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: Escritos. Op. cit., p. 262.
12 LACAN, J. (2003[1970]). “Prefácio a uma tese”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 395.
13 NT: No original: le pas-de-dialogue, resumido por J.-A. Miller como PPD. Traduzimos por não-diálogo, e resumimos como: ND.
14 LACAN, J. (2003[1974]). “Televisão”. In: Outros escritos. Op. cit., p. 525.