Em que sentido a presença do analista é crucial na experiência do inconsciente no século XXI? Esta é uma questão que os tempos atuais nos forçam a formular, confrontados como estamos com a virtualização das trocas, com a necessidade de recorrer ao Zoom para nos falarmos mundo afora, num momento em que a pandemia pôs em perigo a própria possibilidade de um encontro real. Essa questão crucial para o futuro da psicanálise, Lacan a respondeu já em 1964. De fato, Lacan não precisou conhecer o mundo virtual para afirmar a necessidade da presença em corpo do analista. Ele não precisou conhecer a pandemia que acabamos de atravessar em escala planetária, para fazer valer o caráter crucial, no que concerne à experiência da análise, da presença do corpo do analista no lugar mesmo onde se desdobra a fala do analisante.
O mártir e a testemunha
Não é anódino que Lacan, em 1964, tenha escolhido o termo “testemunha”[1] para dar conta da função da presença do analista. Lacan faz do analista a testemunha do que se perde. Ele faz do psicanalista aquele que pode assumir o inconsciente como causa perdida. E é pelo fato de o analista ser capaz de conceber o inconsciente como uma causa perdida que ele tem alguma chance de ganhá-la.
Em Lacan, o uso do termo “testemunha” comporta um antecedente. Na década de 1950, a propósito das psicoses, Lacan pôde mostrar a função da testemunha em um outro sentido. O sujeito paranoico, ao falar de seu delírio, “traz seu testemunho”[2], diz Lacan, no sentido em que “ele fala com vocês de alguma coisa que lhe falou”[3]. Devido a essa relação estranha com a fala, “o psicótico é um mártir do inconsciente”, afirma Lacan, “dando ao termo mártir seu sentido, que é o de testemunhar. Trata-se de um testemunho aberto”[4]. Assim, em 1955, Lacan já fazia valer em que sentido a presença do analista é necessária para permitir o testemunho do sujeito que sofre do significante. É na medida em que ele é martirizado pelo inconsciente que o sujeito psicótico precisa de um testemunho de sua relação com a fala e com o gozo.
Em 1964, é este mesmo termo “testemunha”[5] que retorna à boca de Lacan para fazer valer uma nova concepção do inconsciente articulada à contingência e à temporalidade. A testemunha é doravante o analista, uma vez que ele ali está para atestar o surgimento do inconsciente. De fato, o inconsciente lacaniano dos anos 1960 não é apenas estruturado como uma linguagem, pois ele é também estruturado como um faltoso. Ele é o evasivo, o não realizado, que surge da zona larval, e convoca a ser apreendido a tempo de se realizar.
Presença em nome da perda
A presença do analista é, então, não tanto articulada por Lacan a uma ausência, mas a uma perda. O fato de o analista estar ali, com seu corpo, com sua voz, com sua respiração, no mesmo lugar em que está o analisante, este também com seu corpo e com sua angústia, tem uma função decisiva. O corpo do analista e sua modalidade de presença exercem a função de testemunha daquilo que se perde. Para dar conta disso, Lacan define o campo freudiano como “um campo que, por sua natureza, se perde”[6]. O surgimento do inconsciente se produz no próprio modo daquilo que aparece e depois desaparece, no modo do que se dá a conhecer e depois se deixa esquecer, no modo do que estava lá, mas que já não o está mais. Assim se manifestam os restos de um sonho, o espaço de um lapso, a falha inesperada no coração da fala. Ora, esse inconsciente que se manifesta como o que se perde – como aquilo que apenas encontrado, já está perdido – ganha consistência se, e somente se, houver uma testemunha de seu surgimento.
Isso é o que faz Lacan dizer “que a presença do psicanalista é irredutível, como testemunha dessa perda”[7]. Pois a perda não se produz em plena luz do dia, mas “numa zona de sombra”[8]. Essa perda nos confronta com um ponto opaco em nossa própria fala. Faz-nos experimentar o obscurantismo de nossa fala. Ali onde eu acreditava saber o que eu pensava e o que eu dizia, eis que me encontro ali onde eu não pensava estar, em um lugar onde eu não esperava me encontrar. Esse obscurantismo de minha própria fala, segundo a palavra escolhida por Lacan em 1980 em seu Seminário Dissolução[9], é também o que torna necessária a presença do analista. Ali onde não vejo nada, o analista ali está para mostrar o que há para ver. Só a intervenção, o corte, a interpretação, são capazes de fazer ver onde a perda está em jogo.
Assim, “a presença do psicanalista […] deve ser incluída no conceito de inconsciente”[10] na medida em que essa presença contribui para não deixar desaparecer a manifestação contingente do inconsciente.
Paradoxo da presença do analista no final da análise
Entre o começo e o fim da análise, a presença do analista se transforma. Assim, Jacques-Alain Miller, em sua “Teoria do parceiro”[11], ressaltou as modalidades de presença do analista, depois o Outro do sentido até chegar a esta alguma coisa que ele encarna do “gozo”[12] do sujeito. O corpo do analista testemunha, então, o que afeta o corpo do analisante, ou seja, o eco no corpo do fato de haver um dizer. Há, portanto, um paradoxo da presença do analista na orientação lacaniana. Pois o analista, como Lacan o concebe nos anos 1950, é aquele que deve se apagar como corpo para existir apenas como Outro do significante. A presença em corpo do analista é então concebida, no Seminário 1, como um fator de resistência. De fato, a resistência surge quando o sujeito ressente, bruscamente, a “presença”[13] do analista. Essa presença faz obstáculo ao acesso ao registro do ser, isto é, ao valor sagrado da fala, quando esta vem do inconsciente. O analista, segundo o último Lacan, o dos anos 1970, é aquele que faz ressoar de seu próprio corpo o efeito de gozo produzido pelo significante. É então como Outro do sentido que ele deve ausentar-se para estar presente como parceiro do corpo do analisante.
Desse modo, a presença do analista, no final da análise, tem isto de surpreendente: ela é da ordem de um corpo a corpo que não mais repousa sobre o amor pelo sentido, mas sobre um novo amor, o amor pelo inconsciente real.
Quando o fim da análise conduz ao passe, ele faz então entrar em cena uma nova modalidade de testemunho. O Analista da Escola testemunha, por sua vez, a maneira como a presença do analista, em corpo, pôde fazer ressoar o efeito de gozo do significante e fazê-lo passar ao avesso do sentido, possibilitando-lhe ver do que sua análise se serviu a fim de produzir a ficção que diz o ser. O testemunho do AE tem a função de transmitir o que fez acontecimento de corpo e traumatizou de modo inaugural a relação com a língua. Aqui também, a presença em corpo é irredutível, presença de um analisante tornado analista, que pode testemunhar o fio de ouro do gozo como estando na raiz da relação singular de um ser com os significantes de sua história. Presença de um corpo falante que faz da causa analítica o que anima seu desejo.
Clotilde Leguil
(ECF/AMP)
Tradução: Vera Avellar Ribeiro
Revisão: Fernanda Otoni Brisset
[1] LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979. p. 122.
[2] LACAN, J. O seminário, livro 3: As psicoses. (1955-1956) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010 (novo projeto gráfico). p. 53.
[3] Ibid., p. 53.
[4] Ibid., p. 156.
[5] LACAN, 1979, op. cit., p. 122.
[6] Ibid.
[7] Ibid.
[8] Ibid.
[9] LACAN, J. Dissolution (1980) In: LACAN, J. Aux confins du Séminaire, Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Paris: La divina, Navarin Editeur, 2021. p. 67.
[10] LACAN, 1979, op. cit., p. 123.
[11] MILLER, J.-A. «A teoria do parceiro». In: Os circuitos do desejo na vida e na análise. Contra Capa: Rio de Janeiro. 2000. p. 153 – 207.
[12] Ibid.
[13] LACAN, J. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. (1953-1954) Texto estabelecido por J.-A. Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. p. 51.