Os recentes debates que têm lugar em torno da proibição do espetáculo de Dieudonné, fazem ressoar de maneira muito atual uma das «antecipações lacanianas»[1] sobre a função da psicanálise na civilização. As últimas palavras do Seminário 19, em junho de 1972, visam precisamente nosso futuro. A saída da civilização patriarcal lhe parecia então consumada. A época pós-68 ainda fervilhava de proposições sobre o fim do poder dos pais e a chegada de uma sociedade dos irmãos, acompanhada do hedonismo feliz de uma nova religião do corpo. Lacan atrapalha um pouco a festa acrescentando uma consequência que havia passado desapercebida: «Quando voltamos à raiz do corpo, se revalorizarmos a palavra irmão, (…), saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo». A idolatria do corpo tem consequências bem diferentes do que o hedonismo narcísico o qual alguns poderiam pensar limitar essa «religião do corpo». Elas anunciam na modernidade outras figuras da religião diferentes das religiões seculares, como dizia Raymond Aron, que caracterizavam a época e forneciam, segundo ele, «O Ópio dos Intelectuais».
No mesmo momento em que Lacan previa o aumento do racismo, sublinhado com insistência de 1967 aos anos 1970, o ambiente era mais de regozijo diante das perspectivas de integração das nações em conjuntos mais amplos que autorizavam os «mercados comuns». Todo mundo era então, mais do que hoje, a favor da Europa. E Lacan acentua essa consequência inesperada com uma precisão que, na época, surpreendeu. Interrogando Lacan em «Televisão», em 1973, Jacques-Alain Miller fazia-se eco dessa surpresa e punha em relevo a importância dessa tese. «De onde lhe vem, por outro lado, a segurança de profetizar a escalada do racismo? E por que diabos dizer isso?».[2] Lacan respondia: «Porque não me parece engraçado e, no entanto, é verdade. No desatino de nosso gozo, só há o Outro para situá-lo, mas na medida em estamos separados dele. Daí fantasias, inéditas quando não nos metíamos nisso».
A lógica desenvolvida por Lacan é a seguinte. Não sabemos o que é o gozo a partir do qual poderíamos nos orientar. Só sabemos rejeitar o gozo do Outro. Com o fato de nos meter, Lacan denuncia o duplo movimento do colonialismo e da vontade de normalizar o gozo daquele que é deslocado, emigrado em nome de um dito «bem dele». «Deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo, eis o que só seria possível não lhe impondo o nosso, não o tomando por subdesenvolvido. (…) como esperar que se leve adiante a humanitarice de encomenda de que se revestiam nossas exações?». Não é o choque das civilizações, mas é o choque dos gozos. Esses gozos múltiplos fragmentam o laço social, daí a tentação de apelo a um Deus unificador.
Lacan anuncia aí também algo, o retorno dos fundamentalismos religiosos. «Deus, recuperando a força, acabaria por ex-sistir, o que não pressagia nada melhor do que um retorno de seu passado funesto». Em suas proposições sobre a lógica do racismo, Lacan leva em conta a variação das formas do objeto rejeitado, suas formas distintas que vão do antisemitismo de antes da guerra, que conduz ao racismo nazista, ao racismo pós-colonial dirigido aos imigrantes. De fato, o racismo muda seus objetos à medida em que as formas sociais se modificam, mas, conforme a perspectiva de Lacan, sempre jaz, numa comunidade humana, a rejeição de um gozo inassimilável, domínio de uma barbárie possível.
Antes de «Televisão», Lacan evoca esta questão do racismo na «Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola» e na sua «Alocução sobre as psicoses da criança», durante o mesmo ano. Na «Proposição…», Lacan evoca o que o racismo nazista tinha, na sua barbárie, de «precursor»: «Abreviemos dizendo que o que vimos emergir deles, para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação».[3] E na «Alocução sobre as psicoses da criança», ele justifica o nó entre posição do analista e movimento da civilização: «Como responderemos, nós, os psicanalistas: a segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes».[4]
De fato, a lógica pela qual Lacan constrói qualquer conjunto humano que seja, opera uma torção naPsicologia de Grupo freudiana. Em 1921, depois de ter formulado a segunda tópica que organiza a realidade psíquica, Freud retoma a questão do destino pulsional a partir do tipo de identificação que rege de maneira determinante a vida psíquica: «E em completa oposição à prática costumeira, não escolherei, como nosso ponto de partida, uma formação de grupo relativamente simples, mas começarei por grupos altamente organizados, permanentes e artificiais. Os mais interessantes exemplos de tais estruturas são as Igrejas – a comunidade dos crentes – e os exércitos… Teremos de considerar se os grupos com líderes talvez não sejam os mais primitivos e completos, se nos outros uma idéia, uma abstração, não pode tomar o lugar do líder (estado de coisas para o qual os grupos religiosos, com seu chefe invisível, constituem etapa transitória) e se uma tendência comum, um desejo, em que certo número de pessoas tenha uma parte, não poderá, da mesma maneira, servir de sucedâneo. (…) o ódio contra uma determinada pessoa ou instituição poderia funcionar da mesma maneira unificadora».[5] Para Freud, o ódio e a rejeição racista se unem, porém permanecem conectados ao líder que toma o lugar do pai ou, mais precisamente, do assassinato do pai. O ilimitado da exigência permanece no grupo e o estabelecimento do laço social é fundamentado no assentamento pulsional da identificação. O grupo estável compõe nele mesmo o mesmo princípio de ilimitação produzido pela multidão primária. Assim Freud pôde dar conta do exército como multidão organizada e do poder de matança selvagem que a acompanha. O ódio comum pode unificar a multidão, ligada a uma identificação segregada ao líder.
Para construir a lógica do laço social, Lacan não avança a partir da identificação ao líder, mas a uma primeira rejeição pulsional. O seu tempo lógico chega a propor para toda formação humana três tempos segundo os quais se articulam o Sujeito e o Outro social:
1) Um homem sabe que não é um homem;
2) Os homens se reconhecem entre si;
3) Eu afirmo ser um homem, com medo de ser convencido pelos homens de não ser um homem.
Esses tempos de identificação não partem de um saber sobre o que seria ser um homem e depois de um processo de identificação, mas essa lógica parte do que não é um homem – Um homem sabe o que não é um homem. Isso não diz nada sobre o que é um homem. Depois, os homens se reconhecem entre si por seremhomens: não sabem o que fazem, mas se reconhecem entre si. Enfim, eu afirmo ser um homem. Lá vai toda a questão da afirmação ou da decisão ligada à função da precipitação, a função da angústia ― do medo de serconvencido pelos homens de não ser um homem.[6]
Essa lógica coletiva é fundada na ameaça de uma rejeição primordial, uma forma de racismo: um homem sabe o que não é um homem. E é uma questão de gozo. Não é homem aquele que rejeito como tendo um gozo distinto do meu. «Movimento que dá a forma lógica de toda assimilação «humana», enquanto precisamente ela se coloca como assimiladora de uma barbárie e, portanto, reserva a determinação essencial do «Eu»…»[7] .
Quando Lacan escreveu esse texto, a barbárie nazista estava próxima. Começou por considerar o Judeu como aquele que não goza como o Ariano: um homem não é um homem porque não goza como eu. Ao contrário, pode-se sublinhar que, nessa lógica, se os homens não sabem qual é a natureza do gozo deles, os homens sabem o que é a barbárie. A partir de lá, os homens se reconhecem entre si, e não sabem bem como. E depois, subjetivamente, e um por um, eu me precipito. Afirmo ser um homem, com medo de ser denunciado como não sendo um homem. Essa lógica coletiva se enovela em conjunto, a partir de uma ausência de definição do ser-um-homem, o Eu que se afirma e o conjunto dos homens, curtocircuitando o líder.
Essa forma lógica prosseguirá ao longo da obra de Lacan. Será complicada pela teoria do desejo e pela teoria do gozo, mas vai funcionar, inclusive na lógica do passe. A lógica de constituição da coletividade psicanalítica será abordada segundo a mesma lógica anti-identificatória, ou mais precisamente, de identificações não-segregativas, como as chamou Jacques-Alain Miller em sua «Teoria de Torino»[8].
1) ― Um psicanalista sabe o que não é um psicanalista – isso não diz em nada que o psicanalista saiba o que é um psicanalista.
2) ― Os psicanalistas se reconhecem entre si por serem psicanalistas – é o que se pede na experiência do passe, que um cartel reconheça: ― esse daí, «é dos nossos».
3) ― Para se apresentar ao passe, o sujeito, ele, deve afirmar, decidir ser psicanalista e se arriscar em não convencer os outros de que ele é psicanalista.[9]
Se Lacan insistiu nessa dimensão do racismo na «Proposição…», é para sublinhar que todo conjunto humano comporta em seu fundo um gozo deslocado, um não-saber fundamental sobre o gozo, que corresponderia a uma identificação. O psicanalista é simplesmente aquele que deve sabê-lo para constituir a comunidade daqueles que se reconhecem como psicanalistas.
O gozo maligno em jogo no discurso racista é desconhecimento dessa lógica. Ela está no fundamento de todo laço social. O crime fundador não é o assassinato do pai, mas a vontade de assassinato daquele que encarna o gozo que eu rejeito. Portanto, sempre o antiracismo é a reinventar para seguir as novas formas do objeto do racismo, se deformando à medida dos remanejamentos das formações sociais. No entanto, nossa história põe especialmente em relevo, nas variações do racismo, o lugar central do antisemitismo, ao mesmo tempo precursor e horizonte. Retomarei a análise da nova forma do que vem aí para nós, feita por Bernard-Henri Lévy: «O antisemitismo tem uma história. Tomou, no decorrer das épocas, formas diferentes, mas correspondendo, cada vez, ao que o espírito do tempo podia ou queria entender. E eu acredito que, por razões cujo detalhe é impossível entrar aqui, o único antisemitismo apto a «funcionar» hoje, o único capaz de abusar e de mobilizar, como o fez em outras épocas, um grande número de mulheres e homens, é aquele que saberia enovelar o triplo fio do antisionismo (os judeus sustentando um «Israël assassino»), do negacionismo (um povo sem escrúpulos capaz, para chegar a seus fins, de inventar ou instrumentalizar o martírio dos seus) e da concorrência das vítimas (a memória da Shoah funcionando como a tela que esconderia os outros massacres do planeta). E então, Dieudonné estava a ponto de operar a conjunção desses três fios».[10] A surpreendente resposta que lhe dirige Nicolas Bedos abre uma outra questão sobre o estatuto do cômico no estômago de nossa civilização do individualismo de massa democrático. Não basta aliás pôr em jogo o estômago, talvez precisem todas as vísceras para se fazer escutar. Consequência inesperada: a televisão torna-se uma mídia cada vez menos soft e todos se aproximam da violência da internet.
Éric Laurent
Texto publicado originalmente em Lacan Cotidiano. n. 371, em 18.02.2014.
Publicamos este texto com a amável autorização de Éric Laurent, a quem agradecemos.
[1] Miller J.-A., « As profecias de Lacan », LePoint.fr, 18 de agosto de 2013.
[2] Lacan J, «Televisão» [1973], Outros Escritos, Zahar, Rio de Janeiro, 2002, p. 534.
[3] Lacan J., «Proposição de 9 outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola», Outros Escritos, op. cit., p. 263.
[4] Ibid., p. 361.
[5] Freud S., «Psicologia de Grupo e Análise do Ego», Obras completas, XVIII, Rio de Janeiro, Imago, 1969, p. 127.
[6] Lacan J., «O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada» [1945], Écrits, Seuil, 1966, p. 213.
[7] Lacan J., «O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada» [1945], Écrits, op. cit ., p. 213.
[8] Miller J.-A., «Teoria de Torino», Intervenção no Iº Congresso científico de la Scuola lacaniana di Psicoanalisi (em formação), o 21 de maio de 2000, cujo tema era «As patologias das leis e das normas », disponível no site da École de la Cause freudienne.
[9] Laurent É., « Os paradoxos da identificação », aulas de 1993 na Section Clinique, o 1o dezembro de 1993, inédito.
[10] Lévy B.-H., «Para acabar (provisoriamente?) com a questão Dieudonné», Le Point, 16 de janeiro de 2014, disponível na internet.