“O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu”[1].

“Violento mesmo é o amor, o resto é só cara de mau”[2].

1. Épocas

Há Épocas! Assim, iniciamos o argumento para este eixo. Época é, para o discurso psicanalítico, um significante que traz diversas implicações. Ele nos traz o sentido de uma temporalidade que, apesar de trazer o tempo como contingente, aponta também um sentido político, por remeter a um contexto, a um fragmento da história. Assim, Lacan nos fala de subjetividade de uma Época, retomada por Miller no texto “Ponto de Basta”[3]. Ele retoma esse significante para destacar que não se salta por cima de sua Época. A Época é um limite, algo que determina uma forma de se colocar no mundo.

Lacan, no “Relatório de Roma”[4], faz uma outra importante referência ao tempo, ele nos diz que a subjetividade é transindividual: “seu campo (o da Psicanálise) é o do discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito”[5]. Desse modo, o campo com o qual trabalhamos em Psicanálise nos mantém presos uns aos outros, engajados em uma trama social da qual não é possível nos livrar.

No âmbito da Psicanálise, o coletivo não é uma soma de indivíduos. Cabe lembrar aqui a conhecida e enigmática frase de Lacan: O coletivo não é mais do que o sujeito do individual. Uma frase que ressoa, ressoa dentro de nós, sem que seja fácil alcançar onde ela nos leva.

Para trabalhar o tema do eixo 3 partimos da seguinte questão: Há Épocas! Cada Época teria seu próprio ponto de impossível? Ou seja, em qual dialética estamos presos na contemporaneidade? Nesses tempos atuais, diante do impossível da ordem simbólica fazer frente à desordem de um gozo, o que concerne à prática de um analista?

 

  1. Transindividualidade: o que quer dizer para Psicanálise?

Já é lugar comum em nossa comunidade falarmos da falência do Nome-do-Pai e da consequente queda do viril. Certamente, é o que define a subjetividade de nossa Época. Quando o Pai se evapora, a quem dirigir o amódio pela falha fundamental de sermos seres falantes? Falamos para quem? Sabemos que hoje pouco se fala, sendo a imagem muito mais o veículo utilizado nos laços sociais. Será que abandonaremos a fala, pois, afinal, não temos mais a quem endereçá-la?

Freud cria a psicanálise se fazendo de semblante do Outro. Ao oferecer sua escuta à histérica, o que ele primeiro descobre é o Pai. Mas sua sagacidade analítica logo o fez se deslocar do pai para sexualidade, percebendo que a raiz do sofrimento histérico não partia de Um pai perverso, mas residia na insatisfação do desejo, imputando a ele sua articulação ao inconsciente. Lacan, diz-nos que “…a imputação do Inconsciente é um fato de incrível caridade de Freud”. A caridade, por princípio, é um ato de amor, um ato de amor aos desprotegidos. O inconsciente abre, ao sujeito que sofre, uma possibilidade de dar um destino a sua incompletude: um ato de amor… Amor que, em nossa prática, recebeu o nome de transferência. Estamos no terreno da ética e aí também reside a transindividualidade que nos aprisiona.

Para esses dois gigantes da psicanálise, o objeto de seu estudo nunca foi o indivíduo e sim um aparelho, um sistema, o que permite incluir aí o social. O sujeito de que se trata não é o indivíduo, mas uma estrutura. Em Freud, um aparelho construído a partir da interpretação dos sonhos, com inconsciente, pré-consciente e consciente. Com Lacan, trata-se de uma articulação entre Real, Simbólico e Imaginário. Tais propostas demonstram que, para eles, nosso objeto de estudo supõe uma trama em cujo centro reside uma alteridade.

Dessa alteridade, dessa outrificaçao de origem, padece nosso sujeito, uma vez que se trata de uma alteridade vazia, traumática. A psicanálise pôde tirar daí, a partir de Freud e Lacan, toda uma clínica para o sintoma. Gostaríamos de extrair desse ponto outras consequências para a lógica do laço social, a lógica coletiva.

 

  1. A alteridade, marca do impossível em psicanálise

A alteridade que nos constitui, Lacan a situou na linguagem, não como uma mensagem invertida, como no âmbito de seu primeiro ensino, mas como letra, análoga a um gérmen, que veicula um gozo. Dessa forma, estamos aprisionados a um saber de um gozo que nos é transmitido, embora ignorado. Toda essa trama, marca do impossível de se nomear, marca de uma alteridade estrutural, condena o Ser a ser seu suporte, o semblante do real, como Lacan afirma.

Do desencontro sexual dos falantes decorre essa discordância, atribuída por Lacan, entre o saber sobre essa marca da letra e o Ser como semblante. Cada Ser busca no outro um parceiro para lidar com o vazio do encontro, uma cumplicidade quanto à partilha do seu exílio da relação sexual.

Antoine Tudal, poeta citado por Lacan[6], disse-nos bem:

Entre o homem e o amor,

Existe a mulher.

Entre o homem e a mulher

Existe o mundo.

Entre o homem e o mundo,

Existe um muro[7].

 

Lacan pôde ler, nesse poema, que o muro da castração é, ao mesmo tempo, a abertura do impossível ao contingente de um encontro. Frente à castração não se responde com o saber, impossível de alcançar. Impõe-se aí um uso do impossível na forma de um novo amor que permita novas e diferentes maneiras de estar no mundo.

Retomo a época com que iniciamos. Época – epokhé – que, em grego, significa colocar entre parênteses. Vamos colocá-la entre parênteses para interrogar e extrair os efeitos desse impossível do amuro nas possíveis formas de laço social em que estamos aprisionados no contemporâneo.

 

  1. Segregação, a raiz do falasser e dos coletivos

A nossa época vem se caracterizando por apresentar laços sociais e coletivos que não são marcados por um ideal, não são nomeados por ele. Um mundo onde o ideal empalidece frente à elevação ao zênite do objeto a. O que os caracteriza não são mais identificações a um líder ou a uma ideia, como propôs Freud, em Psicologia das Massas, o que daria a tais agrupamentos um caráter unificador. Cito Freud:

Teremos de considerar se os grupos com líderes talvez não sejam os mais primitivos e completos e, se nos outros uma idéia, uma abstração, não podem tomar o lugar do líder (estado de coisas para o qual os grupos religiosos, com seu chefe invisível, constituem etapa provisória) e, se uma tendência comum, um desejo, em que certo número de pessoas tenham uma parte, não poderá, da mesma maneira, servir de sucedâneo? […] o ódio contra determinada pessoa ou instituição poderia funcionar exatamente da mesma maneira unificadora […][8] [9].

 

Freud partiu de uma primeira função de julgamento baseada na experiência de prazer-desprazer para o que viria a constituir o eu com sua raiz de segregação. O que é mau é expulso e o bom é introjetado.

Nenhuma ordenação simbólica se dá sem deixar algo fora dela, ainda que esse algo seja depois simbolizado no interior, precisamente como ausente. É o princípio freudiano da constituição do sujeito a partir de uma exclusão primária, do rechaço originário de um objeto ou de um gozo[10].

Essa lógica, que conhecemos pela introjeção-expulsão, auxilia-nos a pensar sobre a rejeição primordial, tal como Lacan nos apresenta no Sofisma dos três prisioneiros, embora sobre um outro prisma. A lógica de uma assertiva antecipatória exige que o sujeito expulse o gozo que não é o dele: um homem não é homem porque não goza como eu… se os homens não sabem qual é a natureza do gozo deles, os homens sabem o que é a barbárie. A partir daí os homens se reconhecem entre si, e não sabem bem como[11] [12].

A pressa é uma aposta que pode incidir na proliferação de Coletivos como forma de resistência ao aniquilamento do singular e do enfrentamento à universalização das identidades. Ou seja, antes que o coletivo que está em formação parta para a barbárie e me elimine pelo meu modo singular de gozo, eu me apresso e me submeto ao significante que unifica esse agrupamento, mesmo que posteriormente eu tenha de acrescentar um “+” na denominação infinita no capítulo dos gozos.

Lógica da qual queremos tirar consequências para a prática do analista em nossa época. A segregação faz parte de toda operação simbólica e está na raiz do que entendemos por discurso do vínculo social. Nessa direção, qual o espírito de nossa época? De que forma os laços sociais na contemporaneidade atualizam o impossível estrutural que constitui a subjetividade da época? O que pode o analista frente aos efeitos deste impossível em suas diversas manifestações, sejam por grupos identitários ou coletivos de gozo?

 

  1. A desordem do gozo e os laços sociais

Ainda a época. Houve uma na qual Lacan pensava um gozo negativizável. Época do grafo do desejo ou de um significante primordial, o falo. No seu último ensino, iniciado no Seminário 20, Lacan nos traz um gozo que não é mais possível ser contido pelo significante, trazendo consequências enormes para a clínica do falasser. Porém, trazendo também uma leitura para o que cada vez mais se prolifera na cultura: uma desordem do gozo.

Laurent, em A Desordem Fálica: O Falo não Negativizável, apresenta importantes reflexões sobre novos agrupamentos, as novas identidades de gênero e raça, problematizando o que o discurso da ciência promoveria nesse campo. Necessitamos distinguir os diferentes sujeitos desses discursos. Para cada um deles encontramos sujeitos diferentes. Temos o sujeito da ciência, do qual nosso sujeito histérico se deriva, temos o sujeito do humanismo, que se aproxima da debilidade, como aponta Lacan, e temos o sujeito que domina em nossa época, o sujeito onde vigora a desordem do gozo. Podemos nos perguntar se seria o sujeito das redes sociais. Laurent traz Hannah Arendt:

O sujeito ideal da dominação totalitária não é nem o nazista convicto nem o comunista convicto, mas as pessoas para as quais a distinção entre o fato e a ficção (ou seja, a realidade da experiência) e a distinção entre verdadeiro e falso (ou seja, as normas de pensamento) não existem mais[13].

 

Esse sujeito se assemelha ao que prolifera no contemporâneo e que é o alvo por excelência do fascismo. Tal ideologia, se é que se trata de uma ideologia, oferece aos seus seguidores um fascínio, uma unidade entre eles e o culto à liberdade individual. Miguel Lago, em Linguagem da destruição: A democracia Brasileira em Crise, define muito bem o discurso do atual presidente do Brasil:

A vontade individual e a opinião devem ser defendidas doa a quem doer. Liberdade significa, portanto, fazer o que ‘der na telha’, sem que haja qualquer limitação aos impulsos do indivíduo… Uma sociedade em que os mais fortes mandam e podem lançar mão de qualquer recurso para fazer valer o gozo de seus impulsos[14].

Crescem os agrupamentos, sejam em torno dessa disrupção do gozo, sejam em torno de uma reação ao que esse discurso segrega. Entretanto, não são grupos homogêneos, como queria a ciência. Entre as mulheres, os negros, os imigrantes existem múltiplas identidades. E é por essa multiplicidade dos agrupamentos que o analista pode trazer sua contribuição e o discurso analítico tem o que dizer.

 

  1. “Política da Psicanálise não se faz sem a Escola”[15]

Precisamos lembrar que o gozo se distingue do prazer e que o múltiplo resulta de que o corpo não é único e nem pode ser alcançado pelo discurso. O corpo é a alteridade que não se consegue absorver, justamente porque ele é o Outro. É ele mesmo quem fala. Observamos que os corpos atuais estão separados da fala. São corpos despedaçados, pedaços de real sem mediação de um Outro que os nomeiem. Sem a dimensão do inconsciente que os atribua um sentido. Estamos em uma época em que os corpos são atravessados por dimensões políticas e não mais por sentidos sustentados por metáforas paternas. Lacan nomeou esse novo sintoma de acontecimento de corpo. Podemos extrair consequências para os novos laços sociais a partir dessa leitura do acontecimento de corpo?

Paula Borsói, traz uma elaboração refinada sobre a relação da Escola e os acontecimentos de corpo. Nessa mesma direção, encontro Helenice Saldanha, em seu texto “Notas sobre a dimensão política do corpo”. Ambas fazem interessantes elaborações sobre a afirmativa de Lacan de que o Inconsciente é a política. Quanto a transindividualidade, Helenice destaca o “caldo cultural do corpo”. Algo que vai além da tentativa de interpretar os “restos e não as insígnias”, como disse outro colega, Marcus André Vieira, do Rio de Janeiro, em “Meus dias de Branco”[16], algo que possa dar aos coletivos um lugar de resistência, frente à universalização do gozo, forjando novas identificações não segregativas.

Por um lado, observamos que o corpo vem ocupando as praças, as ruas, as esplanadas, em um apelo social para que o povo ocupe o espaço público sempre que um atentado é feito ao corpo, seja do imigrante, do negro, das mulheres, etc, Por outro lado, cada parte desse corpo passa a ser um traço imaginário de identificação que permite aos sujeitos se agruparem. Esse cenário, típico de nossa Época, demonstra como o corpo é um enigma para aquele que o tem. Um desconhecido que habitamos.

E, em uma época em que predomina a lógica do ilimitado, e o corpo se apresenta desordenado, o vínculo entre a particularidade de gozo e o universal que o coletiviza, problematizou-se de forma pregnante. Se não podemos apelar a um ideal que não funciona mais, resta, àquele que pretende abordar tal desordem, procurar circunscrever nomeações que, longe de unificar tais agrupamentos, possam se abrir para um significante vazio, como sugeriu Marcus André. Um significante que tenha o poder de enlaçar os sujeitos desse agrupamento, servindo de sujeito para esse coletivo, em consonância com a máxima lacaniana de que o coletivo não é mais do que o sujeito do individual.

Há uma colocação de J.-A. Miller que nos dá uma pista para interpretar esse novo dos laços sociais. “Em Direção à Adolescência”, ele interroga sobre a nova aliança entre a identificação e a pulsão. Ele nos alertava que as identificações, para Lacan, partiam do desejo do Outro, mas será que elas ainda se articulariam dessa forma? Ele diz:

Eu me perguntava se, no fundo, o corpo do Outro não se encarna no grupo. O bando, a seita, o grupo, não dão um certo acesso a um eu gozo do corpo do Outro do qual faço parte? Não seria possível uma nova aliança entre a identificação e a pulsão?…[17]

 

Trazer essa aliança, entre a pulsão e a identificação, pode nos orientar sobre os novos coletivos que se organizam em torno da fantasia e do gozo, expressões de um corpo pulsional?

Abro, assim, a conversa sobre os efeitos da Política da Psicanálise em um dispositivo de Escola, onde possamos fracassar da melhor maneira, ou seja, sem fugir ao não-todo que nos singulariza e nos impõe um coletivo. A Escola – nos disse Romildo –  não é só um local de formação, nela está contida uma crítica ativa, prática e teórica ao funcionamento social como tal[18]. Esperamos que, dessa primeira conversa de Escola e na Escola, possam surgir novos trabalhos, pontuações, inquietações que irão alimentar nosso XXIV Encontro Brasileiro em novembro próximo.

Margarida M. Elia Assad (EBP/AMP)

 

[1]N. E.: Relatório apresentado na 3ª Preparatória para o XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, em 01.09.2022. Cartel sobre o tema do Eixo 3, composto por: Anamáris Pinto, Ana Tereza Groisman, Louise Lhullier, Lucíola Macêdo, Margarida M. Elia Assad (Mais-Um e relatora), Pablo Sauce, Romildo do Rêgo Barros, Rômulo Ferreira da Silva e Ruskaya Maia.

Lispector, C. A Paixão segundo GH. Editora Nova Fronteira. 1979.

[2] N. A.: Frase do Emicida – Leandro Roque de Oliveira, no twitter.

[3] Miller, J.-A. “Ponto de basta”. Opção Lacaniana. N. 79, julho 2018.

[4] Lacan, J. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. Escritos. Jorge Zahar. 1998.

[5] Ibid. p. 259.

[6] Ibid. P. 290.

[7] Tudal, A. Em Paris, 2000.

[8] Freud, S. (1966) “Psicologia de Grupo e Análise do Eu”. In: ESB, Vol XVIII, RJ. Imago.

[9] Citado por É Laurent no texto “O Além do Falo”, A desordem do Ilimitado. In: Opção Lacaniana, n 84.

[10] Bassols, M, “O Bárbaro. Transtornos de Linguagem e Segregação”. Opção Lacaniana On-line. N 25 e 26.

[11] Laurent, É. O racismo 2.0. Disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com/2014/02/lacan-cotidiano-n-371-portugues.html

[12] N. A.: É. Laurent faz essa leitura a partir do texto “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”, de Lacan, onde o autor descreve sobre a asserção subjetiva antecipatória.

[13] Arendt, H. In As origens do totalitarismo. Citado por Laurent, É. “A Desordem Fálica: O Falo Não Negativizável”. Opção Lacaniana. N. 84. p. 52.

[14] Starling, H; Lago, M; Bignotto, N. Linguagem da Destruição. A Democracia Brasileira em Crise. Companhia das Letras. 2022. São Paulo.

[15] Borsói, P. “Democratizar a psicanálise?”. Correio. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. São Paulo. N 87.

[16] Vieira, M. A. “Meus dias de branco”. Disponível em: https://www.ebp.org.br/correio_express/2022/04/18/meus-dias-de-branco1/

[17]Miller, J.- A. “Em direção a adolescência”. Em: Opção Lacaniana, n. 72. São Paulo: Eolia. 2016. P. 20-30.

[18] Barros, R. Do R. “Sobre Grupos”. Disponível em: http://ea.eol.org.ar/04/pt/template.asp?lecturas_online/textos/rego_barros_sobre.html


ABRIR EM PDF