Gostaria de agradecer a Margarida Assad e aos colegas do cartel pelo relatório que nos foi apresentado, fruto de um trabalho em torno de nosso terceiro eixo de investigação: “O impossível e o laço, o analista e a época”. Um trabalho que reafirma o modo vivo e peculiar de presença do analista no domínio do social, contrariando uma certa tradição originária do marxismo, que costumava identificar a psicanálise a uma prática destinada a tratar das questões de alcova ligadas ao individualismo burguês.

Lacan chega a afirmar, de modo surpreendente, exatamente o contrário: “Há apenas isso: o liame social”[1], o qual não prescinde da categoria transcendental do Outro, da forma transindividual da estrutura, que são o pano de fundo para as múltiplas encarnações contingentes do real nas diversas configurações temporais que são “as épocas”.

Qual é o impossível de nossa época? Ou como ela o veicula?

Cristiane Alberti[2] localiza o século XXI como o século do desencadeamento da pulsão de morte. Ou seja, a pulsão de morte não retorna mais como resíduo da operação de recalque como denunciou Freud em “O mal estar na civilização”, mas ela se dissemina, se espalha, se alastra a céu aberto por todos os cantos, exatamente por que o semblante paterno se tornou em larga medida inoperante, incapaz de localizá-la, transformá-la ou detê-la.

Como o analista se faz presente nesse contexto? Como promover o laço a partir dessa dissolução pulsional a não ser pela via do sinthoma como invenção singular de cada um? Como transmitir a lógica do saber fazer com o sinthoma (que é também a lógica do não-todo) num mundo em que prevalece o empuxo à avaliação e em que o sintoma é, em larga medida, desconsiderado? Como fazer crer que o impossível de suportar é sintoma de algo?

Achei muito interessante quando Margarida coloca a questão sobre “se estamos abandonando a fala, uma vez que não encontramos mais um ponto de endereçamento”. Creio que se abster da fala não é produzir necessariamente o silêncio, mas é perder-se no monólogo dos uns sozinhos exatamente quando não se pode contar com o esteio do sinthoma. Miller formalizou em Comandatuba[3] a fantasia, segundo a qual, haveria uma convergência entre a civilização hipermoderna e o discurso do analista, pois em ambos encontramos o objeto a no comando, em detrimento dos ideais. Uma análise desemboca naquilo que os nossos tempos, desbussolados, evidenciam: a derrocada da ordem patriarcal e o que se depreende daí como um monólogo (a expressão da fala que declina do apelo ao sentido, uma vez que não tem mais essa referência ou esse ponto de endereçamento). Do lado da civilização os uns sozinhos estão cada vez mais condenados a ter seu corpo separado da palavra, a permanecerem desenlaçados pelos discursos da ciência e do capitalismo: avaliado, medicado, adestrado (objetificado). Já na análise eles são convidados a se enlaçar a partir desse ponto de falha que é o impossível da relação sexual. Eles continuam a falar sozinhos, mas não sem seu corpo (seu sintoma) que implica um significante novo, aquele que produz um “efeito de sentido real”.

O relatório mostrou muito bem como a segregação é constitutiva da subjetividade em geral e está no âmago do laço social, uma vez que a civilização emana da pulsão segregativa desde Freud. Mas qual o estatuto da segregação nos dias de hoje?

Se ela está na raiz da constituição do falasser, uma vez que “só temos o Outro para situar o desatino de um gozo”[4] que é o nosso – um gozo por definição deslocado e estrangeiro -, a psicanálise não operaria exatamente no sentido de desfazer esse movimento imaginário que localiza o gozo mau no exterior? Todo gozo é por princípio segregado, apartado do sujeito por uma renúncia primordial e como tal incide como êxtimo, embora esse movimento dialético esteja, no mais das vezes, abolido em nossa época. Uma análise serviria para confrontar cada um com sua própria exclusão interna, denotada por essa infamiliaridade do gozo, por meio da interpretação capaz de invalidar essa tendência em rebaixá-lo no Outro enquanto subdesenvolvido.

Diante da dissolução da ordem patriarcal assistimos a tentativas selvagens de restauração do falocentrismo, manifestações de uma ordem de ferro sustentada por uma vontade superegoica de gozo que reforçam essa corrente imaginária – a tendência a localizar todo o mal fora de si, o que gera novos autoritarismos, inclusive entre algumas vertentes de movimentos identitários que parecem não ter qualquer abertura para essa dimensão de um significante vazio que o cartel soube trabalhar de modo tão instigante.

A abertura a um significante vazio poderia ser uma maneira analítica de resistir às urgências contemporâneas em relação ao consumo de identidades prèt a porter como, ao que parece, vêm se reduzindo a oferta do grande cardápio das identidades Trans? Observamos em alguns casos, sujeitos ainda muito jovens que se servem de designações do universo LGBTQIA + de um modo muito próprio. Eles nos mostram que estão verdadeiramente em trânsito e que encontram sua dignidade na escolha de um nome social ou a partir de uma defesa que lança mão do domínio do Neutro por precisarem, ao menos, durante algum tempo, não se filiarem a uma posição feminina ou masculina.

Não seria interessante recuperarmos a dimensão da espera para não converter expressões que em princípio trariam uma flexibilidade quanto ao gozo (Pessoa trans/Não binário) em palavras de ordem que adquirem o estatuto de identidades compulsórias a serviço da técnica e do discurso da ciência?

Dito isso, eu terminaria citando a conclusão de Marcus André em seu texto “Dias de branco” em que ele propõe situar o lugar do analista como “parteiro de identidades abertas mais do que um herói da desidentificação”[5].

Laura Rubião (EBP/AMP)

 

[1]N. E.: Comentário sobre o relatório apresentado na 3ª Preparatória para o XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, em 01.09.2022. Cartel sobre o tema do Eixo 3, composto por: Anamáris Pinto, Ana Tereza Groisman, Louise Lhullier, Lucíola Macêdo, Margarida M. Elia Assad (Mais-Um e relatora), Pablo Sauce, Romildo do Rêgo Barros, Rômulo Ferreira da Silva e Ruskaya Maia.

Lacan, J. (1972-73) O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982, p. 60.

[2] Alberti, C. “Há apenas isso: o laço social”. Revista Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Minas Gerais, n. 47, Jun/Jul 2019, p. 23.

[3] Miller, J.-A. “Uma fantasia”. Disponível em: http://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html

[4] Lacan, J. “Televisão”. In: Outros escritos, p. 533.

[5] Vieira, M. A. “Meus dias de branco”. Disponível em: https://www.ebp.org.br/correio_express/2022/04/18/meus-dias-de-branco1/


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