Intitulei minha intervenção de hoje, sobre a interpretação em psicanálise, de “Consentir com a interpretação”[1]. De fato, proporei que a interpretação em psicanálise só é possível, aceitável, se houver um consentimento do sujeito com a interpretação. Esse consentimento supõe uma forma de despojamento de si, sob o efeito da transferência. O consentimento com a interpretação é, no fundo, o consentimento em soltar as amarras da fala e em ser ouvido para além daquilo que digo.
Deixar-se interpretar
Ora, consentir com a interpretação não é evidente, mesmo quando há o encontro com um analista. Um sujeito que vem testemunhar um sofrimento, um traumatismo psíquico e sexual, está necessariamente pronto para se deixar interpretar?
Como analista, pode-se fazer a experiência desse momento do começo da análise em que um sujeito consente em se deixar interpretar, ou melhor, em recolher uma resposta que interpreta suas falas deslocando, fazendo ressoar, interrompendo, enfatizando, repetindo. A interpretação que pode simplesmente tomar a forma de uma citação das formulações do analisante, como disse Lacan no Seminário 17, remete aquele que fala à sua própria fala, constituindo-a como um enigma. “À sua maneira, a citação é também um meio-dizer”[2]. Lacan articula, assim, enigma e enunciação: “A interpretação […] é com frequência estabelecida por um enigma. Enigma colhido, tanto quanto possível, na trama do discurso do psicanalisante”[3]. Citar as formulações do analisante é também passar do discurso do mestre ao discurso do analista. “Se a palavra é tão livremente dada ao psicanalisante […] é porque se reconhece que ele pode falar como um mestre”[4]. Em suma, a citação pode remeter ao analisante um enigma no nível de sua enunciação, ali onde seu enunciado o fazia falar como um mestre.
O consentimento com a interpretação, como entrada na experiência analítica, é um consentimento com o não-saber. Mas isso supõe que esse não-saber, esse ponto de interrogação, não seja percebido como um requestionamento da verdade do sofrimento. Este é o ponto delicado hoje, me parece, em relação à interpretação da vida sexual. A experiência da análise engendra essa possibilidade de interpretar o que acontece com o sujeito do ponto de vista de seu desejo e de seu gozo. Lacan também o diz assim: a experiência analítica remete a fala à “contundência da enunciação do oráculo”[5] e, nesse sentido, “a interpretação desencadeia a verdade”[6]. Ora, esse desencadeamento da verdade também pode produzir uma angústia, e até mesmo um pânico.
O analista do século XXI deve, portanto, proceder com uma grande prudência antes de desencadear a verdade. É uma questão de tato, mas também de temporalidade. Interpretar uma experiência traumática pode ser recebido pelo sujeito como um requestionamento da verdade dessa experiência, até mesmo como uma culpabilização. Não interpretar rápido demais, medir os efeitos de uma intervenção, dar tempo ao sujeito de fazer-se ao ser, como dizia Lacan, ao ser que ele é e não o fazer ver cedo demais ou rápido demais são, portanto, dimensões fundamentais da interpretação, uma vez que ela não se situa apenas no nível da lógica dos significantes.
Rejeição contemporânea da interpretação
Gostaria de retornar à dificuldade que encontramos, em nossa época, no que diz respeito à prática da interpretação. O sinal dos tempos, em matéria de discurso sobre sexo, é bastante hostil à interpretação. Tudo se passa como se a interpretação pudesse ser recebida como uma recusa em reconhecer o real do sofrimento. Tudo se passa como se o sofrimento psíquico também não devesse conter, em si mesmo, algum sentido, ou seja, uma relação com o desejo. A ideia lacaniana segundo a qual isso fala, ali onde menos o esperávamos, ali onde isso sofre, não está em conformidade com os discursos dominantes sobre o sofrimento em relação à vida sexual, pois esta tese supõe que o sofrimento possa ser decifrado. Esta tese supõe também que um sentido próprio possa remeter a um sentido figurado. Pareceria que, em muitos discursos do nosso tempo, não haveria mais lugar para o sentido figurado e que só há legitimidade reconhecida no sentido próprio. Em suma, pareceria ser preciso acreditar em um possível domínio da linguagem, como se houvesse, hoje, uma verdadeira recusa da transcendência da linguagem. “O que o inconsciente demonstra é […] que a fala é obscurantista”[7]. Ou seja, esse obscurantismo implica ser experimentado como uma possibilidade de ouvir diferentemente o que eu acreditava dizer, a partir de uma intenção que julguei clara. Isso implica consentir com esse deslocamento, segundo o qual minha própria fala me conduz a me encontrar ali onde eu não sabia que estava. A postura contemporânea que nega à fala esse núcleo de obscuridade é também uma postura que acredita na transparência possível de si mesmo. Essa postura solapa a psicanálise, porque ela tem a ver com uma rejeição do inconsciente.
Em matéria de sexo, de identificações sexuadas, o destino é comumente abordado apenas como destino anatômico e muito pouco como destino psíquico. A ideia lacaniana segundo a qual o sintoma é uma questão que o ser formula “lá de onde ele estava antes que o sujeito viesse ao mundo”[8] é herética em nossa época. A ideia segundo a qual nascemos mal-entendidos, pois nascidos de um mal-entendido entre dois seres, e a ideia de que fomos falados antes de sermos falantes, muito simplesmente em virtude da maneira como aquelas e aqueles que quiseram que nascêssemos falaram de nós, essa ideia é como que recusada. A abordagem do corpo, tal como Lacan a preconiza, supõe levar em conta os efeitos da fala sobre o corpo. “Sejamos radicais aqui: seu corpo é o fruto de uma linhagem da qual uma boa parte de seus infortúnios se deve ao fato de ela já estar nadando no mal-entendido tanto quanto podia”[9]. É essa dimensão estrutural do mal-entendido e da relação com a linhagem de onde venho que, no fundo, faz ressoar toda interpretação. Você fala de um lugar que você não conhece, suas palavras dizem a maneira como você tramou alguma coisa como um destino a partir dos acasos, dos encontros que o impeliram aqui e ali. Consentir com a interpretação é, portanto, a um só tempo, consentir com o obscurantismo da linguagem e com a inscrição em uma linhagem que começou muito antes de eu nascer.
Ora, a maneira como os Modernos, para falar como Éric Marty, abordam as questões da sexualidade deixa pouco espaço para essas duas dimensões. Como ele afirma: “não queremos mais interpretação”[10]. Em suma, não se quer mais causalidade psíquica. Por isso mesmo, não se quer mais um destino significante, nem um destino de gozo. Não se quer mais esta “primazia do significante em relação às significações de nosso destino mais pesadas de carregar”[11].
Assim, no fundo, o efeito da interpretação é, de fato, este: ele leva a perceber que as significações mais pesadas de nosso destino a serem carregadas têm a ver com a dominância do significante sobre nossa existência psíquica.
O documentário Petite fille, de Sébastien Lifshitz, que despertou o interesse dos psicanalistas e foi objeto de uma análise por nossa colega Hélène Bonnaud[12], testemunha também, através do sucesso encontrado por ele, a adesão de uma parte do público a essa abordagem puramente identitária da vida sexual, recusando a dimensão da relação com a história, com a fala e com a linguagem.
O que me impressionou nesse documentário foi a recusa da dimensão da causalidade psíquica. O médico que atende a mãe de Sasha – a mãe desta criança que nasceu menino, mas se sentindo menina – lhe pede, durante a entrevista com esta, para ela lhe falar sobre essa criança. A mãe traz um elemento decisivo, do ponto de vista de uma perspectiva analítica, considerando o desejo do Outro como o lugar a partir do qual um ser vem a se reconhecer. A mãe diz que desejava uma menina, mas que teve um menino. A resposta do médico é categórica: então, não sabemos de onde vem a disforia de gênero, mas temos certeza de que isso não tem nada a ver com o fato de você ter desejado uma menina. Em suma, não conhecemos a causa desse sintoma, mas o que sabemos é que ele não tem nada a ver com o desejo dos pais. Portanto, nenhuma interpretação.
Herdeiro de um mal-entendido
Em suma, trata-se do fato de que a fala da criança testemunha uma realidade que afeta seu corpo, sem que essa realidade conduza a qualquer interpretação, sem que essa realidade seja articulada a um destino, no sentido lacaniano do termo, ou a uma história e, portanto, a uma simbolização do vivido. Trata-se de deter-se ao vivido como um fato. A distinção elaborada por Lacan entre o vivido e o destino[13] é claramente feita para dar conta do que separa o regime da interpretação, notadamente com sua dimensão simbólica, do regime do reconhecimento de um transtorno como o da disforia de gênero. Assim, E. Marty observa que, hoje, no discurso dos estudos de gênero, não se quer mais que os fenômenos que afetam o corpo tenham um sentido. Há apenas o social. O indivíduo sofre com as normas de gênero que não lhe permitem aceder à verdade daquilo que ele é. Apenas a causalidade social é invocada.
Lembro-me de um paciente extremamente perseguido encontrado em uma instituição, que havia enunciado sua posição em relação à linguagem, por ocasião da primeira entrevista, de uma forma que não poderia ter sido mais clara, em tom de injunção: “Não quero que se diga que o que eu digo significa outra coisa que não o que eu quis dizer!” Respondi que ele foi muito claro no que acabara de dizer e que ele tinha toda razão de dizê-lo assim. “O que eu digo não quer dizer nada além do que eu digo” é uma maneira de afirmar que não há nenhum “querer dizer” que me escape. Eu sou o mestre da linguagem, me dizia ele, de algum modo.
Poder-se-ia dizer que há, hoje, nos discursos dominantes sobre o sexo e o gênero, alguma coisa como uma recusa da interpretação, como se esta fosse uma recusa do sofrimento do sujeito, como se ela fosse, talvez, até mesmo uma ameaça para o sujeito. Poder-se-ia quase falar de uma sensitividade à interpretação.
Em O sexo dos Modernos, E. Marty ressalta, a propósito dos trabalhos de Judith Butler, um clima de dessubjetivação[14] do acontecimento da sexualidade. Não se quer que a sexualidade seja da ordem de um acontecimento subjetivo. Quer-se que o corpo seja, de algum modo, disjunto da história do sujeito. É. Marty assim respondeu a Jacques-Alain Miller na entrevista que tiveram juntos, em 2021, para Lacan Quotidien[15]. O íntimo estaria fora do sujeito no corpus butleriano:
“Estamos em um espaço de pensamento que considera obsoleta qualquer referência ao sujeito, à subjetividade”[16], um espaço de “uma pós-soberania do sujeito”[17]. Foi também sobre essas questões que trabalhamos com Fabian Fajnwaks em 2014, durante nosso seminário na ECF sobre “Subversão lacaniana das teorias de gênero”, seminário que resultou em uma publicação[18]. Havíamos mensurado essa antinomia entre a abordagem butleriana da vida sexual, que a reduz ao encontro com as normas sociais, causa de sofrimento, e a abordagem lacaniana que faz da sexualidade e também da feminilidade o confronto com um fora-da-norma.
Para Lacan, “o ser se mede pela falta própria à norma. Existem normas sociais por falta de qualquer norma sexual”[19]. Se a vida sexual faz acontecimento para o sujeito, é na medida em que ela não responde mais a nenhuma norma. A psicanálise, ao contrário do discurso crítico que pode ser desdobrado em relação a ela a partir dos estudos de gênero, não visa a adaptar o sujeito às normas da sociedade, mas a lidar com essa ausência de normas sexuais. A psicanálise abre, então, um espaço para a dimensão traumática da vida sexual sem reduzi-la a uma anormalidade, a um discurso sobre normas ou a um problema comportamental. Ela começa com a interpretação dos vestígios do trauma, ou seja, com a questão da causalidade. De onde vem o sofrimento? Qual a causa do mal-estar que o sujeito experimenta em seu corpo e em sua existência?
Como Jacques Borie o enuncia: “Dizer que o sujeito tem que responder por isso é uma maneira de formular como convém a ética da psicanálise, a ética como responsabilidade de um dizer por vir”[20]. O fim da análise coincide, em parte, com este momento em que o sujeito pode cingir em que medida seu sintoma testemunha esse mal-entendido herdado por ele, essa tagarelice de seus antecedentes[21] que fez destino.
Clotilde Leguil
Tradução: Vera Avellar Ribeiro
[1] Conferência de 12 de fevereiro de 2022, Seção clínica de Clermont-Ferrand.
[2] Lacan J., O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 35.
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[5] Lacan J., O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante, texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 13.
[6] Ibid.
[7] Lacan J., “Dissolution”. Aux confins du Séminaire, texto estabelecido por Jacques-Alain Miller, Paris, Navarin éditeur, coll. La Divina, 2021, p. 67.
[8] Lacan J., “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 524.
[9] Lacan J., “Dissolution”. Aux confins du Séminaire., Op. cit., p. 74.
[10] Marty É., “Genre”, ABCpenser, https://abcpenser.com/
[11] Lacan J., “A psicanálise e seu ensino”. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 448.
[12] Cf. La chronique d’Hélène Bonnaud, « Sasha, une petite fille comme les autres ? ». Lacan Quotidien, n° 903.
[13] Cf. Lacan J., O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 57-72.
[14] Marty É., Le sexe des Modernes. Pensée du neutre et théorie du genre. Paris: Seuil, 2021, p. 489.
[15] Cf. “Entrevista sobre O sexo dos Modernos”. Correio-espress, extra, nº 18, 14 de abril de 2021.
[16] Ibid.
[17] Ibid.
[18] Fajnwaks, F. e Leguil, C., Subversion lacanienne des théories du genre. Éditions Michèle, 2015.
[19] Lacan J., Revue Le Coq-Héron, nº 46-47, 1974, p. 3-8.
[20] Borie J., « Traumatisme, destin, choix ». Quarto, n° 77, p. 74.
[21] Cf. Lacan J., « Dissolution ». Op. cit., p. 75.