A proposta da Comissão de Bibliografia do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano é de encontrar, recortar, colar fragmentos de textos, pulsações que nos ajudem a ler, mas que também leiam, o tema Analista: Presente! Essas pulsações são escolhidas como lampejos que, fora do seu contexto, desencadeados, portanto, do sistemático, podem abrir brechas de leituras e, ao mesmo tempo, podem despertar o retorno ao texto de referência. Entre os vagalumes com seus pontinhos de luz, e o morcego, lembrado por Marcela Antelo, com seu sonar, esperamos que estes fragmentos ecoem.
Os recortes que traremos aqui serão escolhidos a partir dos tropeços nas leituras, desses que pedem pausa, que brilham ou obscurecem as trilhas conhecidas. Esperamos que eles encontrem, nos seus leitores, outras composições; que estes enunciados, na contingência da leitura, encontrem uma enunciação; que eles se agitem no desassossego do desejo de saber e que encontrem pouso na escrita de um texto.
Boa leitura!
Flávia Cêra
Coordenadora da Comissão de Bibliografia
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O sujeito-suposto-saber-cortar
“É seguramente por isso que coloquei o acento sobre o desejo do analista. O sujeito suposto saber que o suporta define a transferência: Suposto saber o quê? De que modo operar? Porém seria totalmente excessivo dizer que o analista sabe de que modo operar. O que seria necessário é que saiba operar convenientemente, e, que possa se dar conta da envergadura das palavras para seu analisante, que incontestavelmente ignora”[1].
Desde o início de seu ensino, Lacan vai além da elaboração dos fenômenos imaginários da transferência, colocando-a no âmbito do simbólico. Desenvolve a teoria do sujeito suposto saber como uma suposição fundamental na transferência analítica. A suposição de um sujeito embutido no saber do inconsciente é consequência do dispositivo e a transferência se apresenta alicerçada sobre tal suposição. Do lado do analisante, na busca do saber sobre seu sofrimento, ele supõe um sujeito que sabe e então ele ama. Já do lado do analista, ao não se colocar como aquele que sabe, ele se consagra a sustentar esse ato de fé. A abordagem posterior da transferência a situa no campo do real. A presença do analista, atestada no início de uma análise, possibilita uma transferência com uma envergadura tal que faz com que as entradas em análise sejam “uma comoção da rotina da realidade cotidiana do sujeito”, introduzindo, de início, um encontro do sujeito com o real, uma vacilação fantasmática inaugural, a qual é imediatamente recoberta com a instituição do SsS.[2] Nesse momento, repetição de gozo e presença real do analista são fundamentais. É o instante de ver!
O ano de 1975 é quando Lacan dita o Momento de Concluir. Acompanhado dos matemáticos, sobretudo de M. Sourris, ele manipula a figura topológica do Toro, suas apresentações, as diversas formas de cortá-lo e as propriedades que esses cortes têm. A operação vai além de um esburacamento e de um reviramento do Toro. É necessário usar essa câmara de ar para sobre ela efetuar um corte que a desimplique e desencadeie dela o seu interior e exterior. Surge dessa operação a banda de Moebius e Lacan fica assombrado com isso[3]. Assim, o ato analítico em 1975 se equipara ao corte e eleva a psicanálise à dignidade da cirurgia. O analista aqui é tomado como um sujeito-suposto-saber-operar, operar com as palavras que precisam de tempo para percorrer, de dar voltas na figura do Toro, quer dizer, nas demandas e nos desejos do analisante. Tempo de compreender! O ato do analista intervém nesse trajeto sobre o equívoco das palavras. Por meio de sua leitura, assinala um modo diferente de escrever. É um ato de leitura e não mais de deciframento, e o efeito dessa leitura permite que o próprio analisante consiga “desfazer pela palavra o que foi feito pela palavra”[4].
O inconsciente, articulado como um saber, presta-se à leitura, porque nele há um núcleo de real, há um equívoco da palavra que esbarra nesse real. O ato de leitura, ao esvaziar o sintoma de sentido, priva-o de sua profusão de significados até reduzi-lo ao que se escreveu de um encontro com o gozo. Ler o sintoma implica em ler, em aprender a ler essa escrita, que é uma escrita borromeana, reduzida ao instante de amarração do nó. Interpretar nesse momento vai na via do corte e o sujeito suposto saber advém, então, como sujeito-suposto-saber-cortar.
Lacan diz que elegeu terminar seu ensino, o Momento de concluir, não com algo que chamaria de trovão, senão com um murmúrio, um gemido, o ruído da câmara de ar que se desinfla. É também uma boa concepção para o fim de uma análise.
Eneida Medeiros Santos
(EBP/AMP)
[1] LACAN, J. Seminário 25, momento de concluir. Aula de 15/11/1977. Inédito.
[2] MILLER, J. – A. « C.S.T ». In: La conversación clínica. Olivos: Grama Ediciones, 2020. p. 22.
[3] LACAN, J. Seminário 25, Momento de concluir. Inédito.
[4] Ibidem.
Analista cidadão: presente!
“Os analistas precisam entender que há comunhão de interesses entre o discurso analítico e a democracia, e precisam entendê-lo verdadeiramente! Há que se passar do analista reservado, crítico, a um analista que participa, a um analista sensível às formas de segregação, a um analista capaz de entender qual foi sua função e qual lhe corresponde agora”[5].
Analista: Presente!
Esta é uma afirmação. O analista está. E está vivo.
O argumento do eixo III de trabalho nos remete ao analista na cidade. Éric Laurent, com “O analista-cidadão”, questiona e busca responder para que serve o psicanalista.
Psicanálise e democracia jamais estiveram tão ligadas e nunca se fizeram tão necessárias. A aposta do analista-cidadão em projetos sociais, amplia consideravelmente a sua participação enquanto um dos atores sociais nesta cena, cujo pano de fundo é um tecido sujo e roto, principalmente no Brasil de hoje. É com seu dizer silencioso, ativo, cortante, que o analista precisa se apresentar e compor a cena social. É este saber-fazer com o dito e o não-dito, que nos permite quebrar a lógica, propor e sustentar novos paradigmas – o que não é absolutamente nada fácil na prática do dia a dia –, articular normas sociais, costumes e culturas – singularidades.
O profundo enlace entre a psicanálise e a democracia abre um respiradouro. Neste campo, inserimos os direitos humanos que, por serem da ordem do para todos, implicam num esforço de poesia para fazer valer o um-a-um. Absolutamente possível, se a proposta final for a formação de cidadãos. A liberdade de expressão, longe de ser o arrogo ao direito de proferir barbaridades fascistas e anti-democráticas, deve comparecer aliada à responsabilidade pelo dito, ligada a um sujeito de direito e de deveres. A sociedade e a cidadania são elementos muito mais amplos a serem pensados e construídos, como um work in progress, onde o analista não pode não responder: Presente!
Bartyra Ribeiro de Castro
(EBP/AMP)
[5] LAURENT, É. “O analista cidadão”. A sociedade do sintoma. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007, p. 143.