“’O inconsciente é a política’ provém do que liga e opõe ‘os homens’ – entre aspas – entre eles, ou seja, o inconsciente provém do laço (…) O inconsciente provém do laço social – introduzamos essa glosa – justamente porque a relação sexual não existe”[1].

 

Miller, em 2002, fez de improviso uma intervenção no seminário “Os psicanalistas na cidade”[2], em Milão, retomando dias depois em seu curso intitulando-a “Intuições Milanesas”. Retoma Lacan em “A lógica da fantasia”, quando afirma: “não digo a política é o inconsciente, mas simplesmente o inconsciente é a política”. Existe nessa afirmação algo incisivo, que não vale a pena amortecer[3]. Lacan não definiu a política, mas o inconsciente, em uma frase lampeira, trazendo em si um agalma.

No desdobramento da frase, Miller[4] chama atenção para a denegação pronunciada por Lacan, visto que ele diz: – “Eu não digo”, adentrando o “império da denegação”, no qual é possível dizer “tudo, dizendo que não diz”[5]. Para Miller, trata-se de uma dificuldade lacaniana de transformar sua proposição em uma tese, observando que se essa tese tivesse um pai, seria Freud, que remete a política ao inconsciente em textos célebres.

Enquanto na formulação lacaniana “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, a linguagem é definida por Saussure e Jakobson, a definição de política está ausente na tese “o inconsciente é a política”. Por isso, é necessário perguntar pela definição de política presente na frase[6].

A definição do inconsciente pela política tem raízes profundas no ensino de Lacan, “O inconsciente é a política” é um desdobramento de “O inconsciente é o discurso do Outro”. A relação com o Outro, intrínseca ao inconsciente, anima desde o início o ensino de Lacan. “O inconsciente é a política” radicaliza a definição do Witz, do chiste freudiano “como processo social que tem seu reconhecimento e sua satisfação no Outro”[7], que o momento de rir atesta. A formalização que Lacan faz do chiste freudiano, permite articular o sujeito do inconsciente a um Outro, “e qualificar o inconsciente como transindividual”, afirma Miller[8], demostrando que foi possível passar de “o inconsciente é transindividual” para “o inconsciente é político”.

Brousse[9] situa essa questão apontando que a dialética do desejo não é individual, portanto, “na perspectiva analítica a oposição individual/coletivo não é válida, e o desejo que o sujeito visa decifrar é sempre o desejo do Outro”, manobra que passa pelos desfiladeiros do significante.

O inconsciente provém do laço social. Miller[10] comenta que Lacan teria realizado um deslocamento da frase freudiana “a anatomia é o destino” para “o inconsciente é a política”. Lacan[11] explica que a ligação entre os homens e o que os opõe é motivado pela lógica da fantasia. Portanto, “o inconsciente é a política” decorre do que liga e opõe os homens entre eles, ou seja, do laço social, concepção que Lacan matemizará com os discursos.

Contudo, há no ensino de Lacan um ponto de virada, ou de avanço: “o inconsciente provém do laço social justamente porque a relação sexual não existe”, esclarece Miller[12]. Após teorizar que o inconsciente se produz na relação do sujeito com o Outro, Lacan demonstra que o inconsciente se produz na relação com o Outro sexo, encontrando precisamente nesse caminho a ausência da relação sexual e a interposição do objeto a.

Laurent em seu texto “’O Inconsciente é a política’, hoje”[13], adverte que algo ainda mais consistente em relação à nossa atualidade surge quando Lacan, nas lições de maio de 1967, afirma que “o Outro é o corpo”. Assim, ensina que o corpo é feito para inscrever a marca, “o corpo é feito para ser marcado”, o gesto de amor “é sempre, um pouco mais ou menos esse gesto”, o de marcar o corpo[14].

O estatuto do corpo como Outro encontra seu pleno desenvolvimento no ultimíssimo ensino de Lacan. Miller extrai desse estatuto consequências de formação, sinalizando uma orientação, a do desejo de Lacan de substituir o termo inconsciente por falasser. A abordagem do falasser permite, então, reler a formulação “O inconsciente é a política”, na dimensão da inscrição no corpo, a partir do acontecimento de corpo[15].

É preciso demarcar que o acontecimento de corpo não afeta o corpo somente como organismo de um indivíduo, mas o corpo de linguagem. “O corpo falante vem sempre se opor ao corpo do indivíduo. Ele fala e testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever no corpo”[16]. Corpo, portanto, mobilizado também nas relações estabelecidas na biopolitica do Estado.

A definição “o inconsciente é a política” inscreve o inconsciente na cidade, não homogênea, com crateras de gozo. O Inconsciente passa a depender da história, crava-se aí as marcas do tempo e, sobretudo, “da discórdia do discurso universal a cada momento da série que nela se cumpre”[17].

“O inconsciente não conhece o tempo, mas a psicanálise sim”[18]. Lacan teve o papel de atualizar Freud, mas, sobretudo, de preparar a psicanálise para os tempos do império do gozo. Miller[19] afirma que “a psicanálise está na política”, ou mesmo faz dessa afirmação uma convocação, a cada momento que eclodem situações de guerra contra a psicanálise. O analista e a presença de um desejo de obter a diferença absoluta, implica na política da psicanálise frente a respostas totalitárias que impedem o falasser de existir em radical singularidade, de se analisar, de dispor de ferramentas e leituras sobre acontecimentos políticos que forjam situações para banir os corpos, matar, silenciar, violentar.

Cristiane Barreto (EBP/AMP)

 

 

“O que quer dizer “dizer”? “Dizer” tem algo a ver com o tempo. A ausência de tempo é algo que se sonha, é o que se chama de eternidade, e esse sonho consiste em imaginar que se desperta”[20].

 

A torção feita por Lacan entre os fios do dizer e do tempo me levou ao tema da urgência subjetiva. Na urgência, a qualidade desse enlaçamento entre dizer e tempo é, a meu ver, mais sensível e daí podemos extrair alguma leitura sobre a presença do analista.

Partamos de uma premissa: a urgência subjetiva é uma urgência no dizer. O subjetivo da urgência é o do efeito sujeito que se produz quando, ao falar para alguém sob transferência, algo além do que é dito também acontece e pode ser lido.

O sujeito da urgência é, portanto, produto de um dizer que se faz presente na experiência de remeter sua fala ao praticante. A ruptura da cadeia significante que produz um corte no tempo, tal como definida por Ricardo Seldes[21], é ruptura que se lê em um dizer e isto não vai sem um certo abalo na experiência do próprio corpo.

A urgência no dizer acontece quando quem fala experimenta a própria palavra de uma maneira que o surpreende ou perturba ou mesmo que gera estranheza. Poderia dizer: é quando ao falar, encontro com um certo desamparo com as próprias palavras.

Por vezes isso é tão sutil quanto uma pausa, uma escanção e nem sempre virá recoberta por um sentido. Por vezes, estes pontos sutis, constituem as oportunidades para o praticante fazer presença, isto é, presentificando com um ato que ali há algo que ressoa um real. Não seria essa uma perspectiva para conjecturar sobre a presença do analista? A presença do analista como presença do dizer.

Estamos falando de uma presença como índice de que ali, onde a urgência indica uma mínima falência dos suportes simbólicos e imaginários do Outro, há uma resposta possível pela via de um novo arranjo com o real que não se fará sem a passagem pelo analista como caixa de ressonância.

Ao fim, me parece que a urgência levada à dignidade do dizer sob transferência, se não tem efeito de despertar como diz Lacan na citação, ao menos é uma chance de fazer ressoar algo que não seja o eterno desejo de dormir.

Luiz Felipe Monteiro (EBP/AMP)

 

[1] MILLER, J. – A. “Intuições Milanesas II”. Opção Lacaniana online nova série Ano 2, número 6, novembro 2011.

[2] Em uma conferência em Milão, por ocasião da Fundação da Escola Lacaniana do Campo Freudiano da Itália.

[3] MILLER, J-A. “Intuições Milanesas”. In: Opção Lacaniana online, nova série, ano 2, no 5, jul. 2011. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intuições_milanesas.pdf. Acesso em: fev. 2022.

[4] Ibid. p. 3.

[5] Ibid.

[6] Ibid.

[7] Ibid. p. 6.

[8] Ibid. p. 7.

[9] BROUSSE, M-H. O Inconsciente é a política. Escola Brasileira de Psicanálise. São Paulo, 2003. P. 17.

[10] MILLER, J. – A. “Intuições Milanesas II”. Op. Cit. P. 4.

[11] Ibid. (apud).

[12] MILLER, J-A. “Intuições Milanesas II”. In: Opção Lacaniana online nova série, ano 2, no 6, nov. 2011. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_6/Intuicoes_Milanesas_II.pdf . Acesso em: fev. 2022. P. 5.

[13] LAURENT, É. “O Inconsciente é a política, hoje”. In: Correio Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, no 79. São Paulo: set. 2016. P. 87.

[14] Ibid.

[15] Ibid.

[16] LAURENT, É. “O Inconsciente é a política, hoje”. In: Correio Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, no 79. São Paulo: set. 2016. P. 89.

[17] MILLER, J-A. “Intuições Milanesas”. Op. Cit. P. 7.

[18] MILLER, J-A. “Enguia”. In: Correio Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, no 79. São Paulo: set. 2016. P. 19.

[19] MILLER, J-A. “Intuições Milanesas”. Op. Cit. P. 3.

[20] LACAN, J. Seminário 25, momento de concluir. Aula de 15/11/1977. Inédito

[21] SELDES, R. La urgência dicha. Buenos Aires: Colección Diva, 2019.


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