“O sintoma como acontecimento de corpo não condena a nenhum solipsismo ou individualismo. Ele advém num corpo tomado pela linguagem, isto é, num corpo tomado no laço social com os outros”[1].
O termo parlêtre vem substituir o inconsciente freudiano, e traz consigo a dimensão do sintoma como acontecimento de corpo. O Outro é o corpo onde se inscreve algo que é chamado de marca[2]. A participação do corpo incluído no próprio conceito do inconsciente não promove um individualismo ou solipsismo, mas redimensiona as relações do sujeito com o discurso.
Referir-nos ao laço social permite destacar a vertente transindividual do inconsciente sustentada no conceito de discurso e na sua articulação com o discurso do mestre. É desta perspectiva que a relação com o coletivo e com a época podem ser pensadas, a partir “dos significantes mestres que constituem os laços sociais, que não são outra coisa, que sua dimensão política”[3].
Esta dimensão transindividual e política se enoda na frase de Lacan “o Inconsciente é a política”, o que nos permite articular a afirmação de Miller: ao extrair o inconsciente da esfera solipsista para inseri-lo na cidade é preciso saber que a cidade não existe mais, que o espaço político da cidade ou do estado foi tomado pela globalização[4].
O espaço político é global, os significantes mestres que tocam o corpo também o são. O corpo marcado pela linguagem inclui o laço que o discurso do mestre perfaz.
É preciso entender o laço ou coletivo não mais a partir da identificação ao pai, como na massa freudiana, e pensá-lo a partir daquilo que afeta os corpos. O acontecimento de corpo pode ser generalizado como um traço inscrito no corpo falante do falasser[5] e assim localizar como os corpos se articulam no laço. Como tomar o acontecimento de corpo nessa perspectiva? Como os corpos podem ou não serem marcados nesse laço?
Podemos dizer que há algo que se inscreve no corpo em determinadas experiências coletivas, mas esse comum que acaba por inscrever-se no corpo não se reduz a uma marca de afeto compartilhada, é de outra ordem[6].
Em Formas de voltar para casa, Alejandro Zambra toca a nostalgia de uma marca que não aconteceu como se imaginava, marcas do trauma que parecem não doer como deveriam, certa alienação do laço social ao mesmo tempo que viveu estas relações no compasso cotidiano dos anos de ditadura em seu país.
Em suas Ficções, a relação com o tempo, com a satisfação, o ideal e o horror se presentifica em suas linhas e seus vazios, num entrelaçamento obscuro e ao mesmo tempo imprescindível entre personagens e histórias, que parecem ser os mesmos na medida que não o são. Sua escrita faz sentir a hiância que alimenta o texto, que se vive ao lê-lo. É no próprio texto que outro tempo histórico se costura e as marcas aparecem sob outra ótica daquela compartilhada socialmente.
Embora esse seja apenas um aspecto de sua obra, o tomo como exemplo de que embora os corpos possam sofrer uma marca coletiva de um acontecimento como o foi a ditadura no Chile, o singular permanece na hiancia do entrelaçamento das palavras.
Paola Salinas (EBP/AMP)
[1] Laurent, É. O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2016, p. 23.
[2] Lacan, J. O seminário, Livro 14. A lógica do fantasma. Mimeo. Aula de 10/05/67. Inédito.
[3] Holguin, C. “En la política de los seres hablantes, el analista es una arma”. In: Bitácora Lacaniana. Revista de Psicoanalisis de la Nueva Escuela Lacaniana – NEL. n 6, septiembre de 2017. Olivos, Grama Ediciones, p. 21.
[4] Miller, J.-A. (2002) “Intuições Milanesas I”. Opção Lacaniana on line nova série. Ano 2, n. 5, julho de 2011.
[5] Laurent. É. “O falasser político”. Op.Cit. p. 213.
[6] Miller, J.-A. “La “Common Decency” de Oumma”. Publicado no Le point.fr em 6/2/15. Disponível em espanhol: www.eol.ar Jacques Alain Miller on line.
“Na estrutura do engano do sujeito suposto saber, o psicanalista (mas quem é, e onde fica, e quando é – esgotem a lira das categorias, isto é, a indeterminação de seu sujeito – o psicanalista?), o psicanalista, no entanto, tem que encontrar a certeza de seu ato e a hiância que constitui sua lei”[7].
No texto de onde essa passagem foi extraída, “O engano do sujeito suposto saber”, Lacan promove uma depuração da perspectiva do inconsciente. Algumas alegações remontam aos esforços freudianos inaugurais de situar um inconsciente distinto daquele definido pelo senso comum; outras são mais sensíveis, pois contestam perspectivas cultivadas dentro do próprio campo psicanalítico. O inconsciente, escreve Lacan, não é “o pattern de comportamento, a tendência instintiva […], a emergência desenvolvimentista que falseia o sentido das fases pré-genitais” etc. Além disso, ele alude à comicidade do saber absoluto, ao inconsciente que não tem um “ser próprio” e recorda que “sua estrutura não caía no âmbito de nenhuma representação”. Até mesmo sua elaboração do inconsciente como discurso do Outro parece ser revisitada de viés.
O inconsciente aqui transmitido por Lacan é enxuto, simples… e perturbador: “que possa haver um dizer que se diz sem que a gente saiba quem o diz”. Ele não impacta por ser antigo, recalcado ou inconfessável, mas por produzir uma “resistência ôn-tica”, ou seja, a resistência em assimilar, em nós, “que se possa dizer alguma coisa sem que nenhum sujeito o saiba”. Ocorre que essa contração conceitual que faz do inconsciente algo ao mesmo tempo tão trivial e tão crítico não fragiliza apenas a solidez daqueles que experimentam em si suas manifestações, mas também a da posição do psicanalista. Afinal, como ancorar sua interpretação sem contar com a suposição de que esse saber já estava lá? É justamente aqui que se pressente a tensão entre os termos certeza e hiância, que compõem a frase comentada e que demandaria ser mais explorada.
Pensei, então, nos desafios atuais com a experiência do inconsciente e senti a tentação de apontar para aqueles sujeitos tão fortemente aferrados às suas identidades que não poderiam senão rechaçar esse “dizer que se diz sem que a gente saiba quem o diz”. Um efeito de punctum se deu quando uma observação de Lacan, feito no início do texto, veio à mente. A descoberta “mais revolucionária que já houve para o pensamento”, aquela do inconsciente, foi “esquecida” pelos psicanalistas, que quiseram “tranquilizar a si mesmos” e tomaram “a experiência dela como privilégio deles”.
Tomar a crítica de Lacan apenas como um dado histórico, dirigida a psicanalistas ultrapassados, seria, também, tranquilizador. Mas uma interrogação se impôs: mesmo firmemente orientados pela noção de um inconsciente tão hiante, ainda existiria o risco de tomarmos sua experiência como nosso privilégio? Que forma teria esse risco?
Rodrigo Lyra (EBP/AMP)
[7] Lacan, J. “O engano do sujeito suposto saber”. Outros escritos. Jorge Zahar.Rio de Janeiro. P. 339.