Trabalho no impossível de dizer. Dizer é outra coisa do que falar. O analisante fala, faz poesia. Ele escreve poesia quando chega — é raro, mas é arte. Corta porque não quero dizer “já é tarde”. O analista, ele, tranche. O que ele diz é corte, ou seja, ele participa da escrita, justamente nisso: que para ele equivoca sobre a ortografia. Escreve diferentemente de modo que, pela graça da ortografia, por um outro modo de escrever, sonha outra coisa diferente do que é dito, diferente do que é dito com intenção de dizer, é dizer conscientemente, mesmo quando a consciência vai muito longe. Por isso digo que nem no que diz o analisando nem no que diz o analista, há outra coisa que não a escrita. Essa consciência não vai longe, não se sabe o que se diz quando se fala[1].
Lacan aproxima o corte, o dizer do analista e a escrita. Com isso, coloca a poesia do lado da fala do paciente, e não do lado da interpretação analítica. Seria esta uma indicação que anula aquela do seminário anterior, em que a interpretação encontra sua referência na escrita poética chinesa? Uma ultrapassagem? Uma mudança de rumo? Da poesia em fluxo migratório da interpretação para a fala do paciente? E ainda mais sob o abatimento exaltado da tagarelice?
Lacan, nesse momento, é um crítico contundente da fala. Ao colocar a fala e a poesia juntas, acena para o fato de que o destino disso é o sono, o adormecimento. É preciso cortar o enunciado que se pretende poético, para que um esbarrão do significante com o real possa criar a oportunidade de o sujeito sonhar com outra coisa, ou seja, de se deparar com algo que não atenda ao formalismo da consciência, posto que ele não sabe o que diz quando fala. Ele não sabe sobre sua enunciação quando formula um enunciado, pois a fala é inadequada para a enunciação. Por isso, ela só pode produzir a coisa na fantasia, em um estado em que se confunde sonho com realidade, em que não se sabe se é o sonhador que sonha ser uma borboleta, ou se é a borboleta a sonhar que é o sonhador, que sonha ser uma borboleta.
Não se sabe o que se diz quando se fala, porque não há como saber do dizer pela fala, e isso porque a enunciação tem uma relação muito maior com a escrita do que com a própria fala. Seja no que diz o analisante, seja no que diz o analista, não há outra coisa que nos interessa mais senão a escrita. O dizer numa análise é, portanto, da ordem de uma escrita, mesmo que o dito seja uma fala.
O enunciado que faz poesia pode recair para uma tagarelice, porém a enunciação poética tem um destino diferente. O modelo do corte para a resposta do analista parece com o silêncio que corresponda à dimensão do desejo do analista, que faz emergir uma enunciação. Portanto, o corte se apresenta como um dizer, este, sim, poético.
Cleyton Andrade
(EBP/AMP)
[1] LACAN, J. Momento de concluir. lição de 20 de dezembro de 1977. Inédito.
Um corpo é submetido a afetos e paixões, tanto o corpo político quanto o individual. Novas paixões políticas surgem como novos acontecimentos de corpo políticos, depois se transformam.[1]
Freud, como sabemos, tomará o sintoma histérico como referência para pensar a constituição de um sintoma na neurose. Porém, esse sintoma primeiro em Freud, o sintoma como formação do inconsciente e retorno do recalcado, fundado na identificação ao pai, passa no último ensino de Lacan a ser um sintoma no segundo grau, nos diz Miller[2].
Essa nova definição do sintoma em Lacan colocará, como primeiro, a surpresa da incidência da língua no corpo que faz emergir um gozo que traumatiza aquele corpo que o experimenta. Traumatiza, pois não há palavras que possa traduzir essa experiência.
Portanto, daí abre-se a questão: se o sintoma como acontecimento de corpo implica a experiência de um gozo que não diz nada a ninguém, como forjar, a partir de um encontro com um analista, a construção de um laço social que salvaguarde a singularidade desse gozo?
Essa questão vem sublinhar o fato de que o sintoma como acontecimento de corpo não restringe a nenhum solipsismo, mas reforça a noção de transindividualidade do sujeito para a psicanálise, pois advém num corpo tomado pela linguagem.
Portanto, como nos propõe Éric Laurent, essa nova perspectiva do sintoma que não exclui a dimensão do laço social, esboçaria uma nova psicologia das massas, agora não mais fundada na identificação, mas no que do caldo político-cultural se alastra no corpo produzindo nesse corpo paixões e gozos.
Laurent proporá chamar essas paixões políticas que afetam os corpos dos indivíduos de acontecimentos de corpo políticos.
Chama a atenção ainda o fato que, nessa dimensão política, os acontecimentos apareçam no plural em contraponto ao acontecimento no singular utilizado por Lacan para definir o sintoma. Essa escrita diferenciada nos forneceria elementos para pensar o entrelaçamento da dimensão coletiva em jogo no discurso político e nas diversas formas de laço social com o que há de singular na demanda que chega ao consultório de um analista?
Helenice Saldanha de Castro
(EBP/AMP)
[1] LAURENT, É. “Paixões religiosas do falasser”. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 75/76. São Paulo: 2017, p. 39.
[2] MILLER, J.-A. “O inconsciente e o corpo falante”. Scilicet: O corpo falante: sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p. 26.