I - O analista presente no espaço de um lapso?


Em seu último escrito[1], Lacan nos apresenta uma apreensão do ato de falar completamente distinta do que ele havia proposto até então: fala-se sozinho, para si mesmo e não para o Outro. Fala-se para gozar e não para se comunicar. Surge, então, outra forma de apresentação do inconsciente na qual o dizer se fecha sobre si mesmo, tornando a transição ao Outro precária. No que concerne à experiência analítica, isso conduz a um impasse quanto à transferência, colocando um problema com relação ao modo de presença do analista e suas possibilidades de intervenção, pois o analista, diferentemente do que propunha Lacan no Seminário 11, deixa de ser situado como fazendo parte do inconsciente, isto é, como destinatário do discurso do analisante. Nesse contexto, se o analista pode ser considerado, ainda, como uma manifestação do inconsciente, é porque sua presença é passível de dar corpo ao inconsciente real, ao que está fora da transferência, ao que na fala do paciente se apresenta como obstáculo, ao que não chega a se satisfazer, ao que se equivoca: trata-se do inconsciente como espaço de um lapso sem qualquer impacto de sentido ou interpretação. Aqui, o analista se faz presente, sobretudo, como aquele que “perturba a defesa”, um “intruso”, “um sinthoma” ou, ainda, “uma ajuda contra”. Assim, interessa-nos, neste eixo, discutir a presença de um analista no inconsciente real, isto é, quando ele próprio se torna a manifestação do inconsciente formulado como um limite à transferência. Aguardamos, na forma de recortes clínicos, as contribuições que a prática da psicanálise pode dar sobre como o analista se faz presente fora do inconsciente transferencial.

Simone Souto e Tânia Martins
Comissão Científica do XXIVº Encontro Brasileiro do Campo Freudiano


II - O tempo, o corte e o ato: o acontecimento analista


Para Freud, o inconsciente não conhece o tempo, mas uma análise não acontece sem o seu manejo. O que caracteriza a experiência analítica é que nela o modo passado do tempo é atualizado pela presença do analista[2]. Em 1978, Lacan propõe para o analista o lugar do suposto saber como operar com a matéria que percute no corpo falante, definindo o corte como um dizer. Isso leva Miller a afirmar que o modelo do ato no ultimíssimo ensino de Lacan é o corte[3] que abre ao indeterminado e que, por participar da escrita do gozo, abre a um saber ler e fazer de outra maneira. De Freud a Lacan, encontramos o fio que engendra tempo, corte e ato como modos da presença de um dizer como acontecimento que incide no circuito pulsional. Na época em que o Outro se apresenta inconsistente, a urgência aparece dando o tom da presença de um irredutível nas demandas por respostas rápidas, nas precipitações de passagens ao ato, no tempo expectante da angústia, no inarticulável de uma experiência traumática. Como localizar essa eclosão cuja urgência Lacan indica que o analista faz par? Seria a irrupção da presença de um irredutível que favorece a entrada em análise e precipita o momento de concluir? Como o ato analítico pode franquear uma passagem ao tempo de compreender? Aguardamos os casos que mostrem o acontecimento analista no manejo do tempo na urgência e no percurso de uma análise seguindo a investigação proposta por Lacan de verificar a operação do corte como um dizer, o que ele interpreta e seus efeitos.

Fernanda Otoni, Flávia Cera e Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros
Comissão Científica do XXIVº Encontro Brasileiro do Campo Freudiano


III - O impossível e o laço: o analista e a época


Há épocas! E cada uma tem sua subjetividade.[4] A originalidade da psicanálise está em considerar a subjetividade da época como o campo de sua ação, o campo da realidade transindividual do sujeito[5], como disse Lacan. Entretanto, o analista presente aí não acontece sem a incidência de uma Escola que, lacaniana, concebe que o inconsciente é a política. A Escola de Lacan não é só um local de formação, mas também, como nos disse Romildo do Rêgo Barros, nela está contida uma crítica ativa, prática e teórica ao funcionamento social como tal[6]. Afinal, ser conforme o ser social é impossível, pois alguma coisa aí se mete atravessado, faz obstáculo, sintoma do real[7]. Transmitir esse impossível concerne à ética da psicanálise. Hoje, convivemos com a eclosão de uma pluralidade de Coletivos que se organizam em torno de um ideal, cujo discurso toma a marca de uma diferença como agente comum, dando abrigo a modos singulares de satisfação. Ou seja, o “coletivo não é nada senão o sujeito do individual”[8]. Entretanto, ele integra em si as pequenas diferenças que se tornam alvos de segregação. Lacan concebe, todavia, que os laços não só resultam da identificação a um ideal, mas decorrem, mais ainda, do impossível de se fazer um todo, tal como podemos ler no sofisma dos três prisioneiros. Ali há um laço cuja lógica não é efeito da identificação, mas da asserção do impossível que ali os aprisiona, índice irredutível da inexistência da relação, cuja “asserção subjetiva antecipatória” irrompe “como forma fundamental de uma lógica coletiva”[9]. Mas como demonstrá-lo? Como ler com Lacan o impossível e o laço, seus modos de presença na atualidade do tecido social? Que experiências podem contribuir para extrairmos o novo da lógica coletiva, que organiza a nossa época, bem como localizar os acontecimentos de corpo políticos que participam de sua montagem e seus efeitos segregativos? Aguardamos casos clínicos, “vinhetas práticas” ou “situações institucionais” nas quais a presença do analista introduz uma diferença com relação ao discurso comum abrindo a novos modos de ler as diversas formas de laço social de nossa época.

Margarida Assad, Pablo Sauce e Rômulo Ferreira da Silva
Comissão Científica do XXIVº Encontro Brasileiro do Campo Freudiano


[1] LACAN, J. Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. (1977) In: _. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

[2] MILLER, J.-A. A erótica do tempo. Op.cit.

[3] MILLER, J.-A. “Os Troumains”. Disponível em https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/20-03-02_los-trumanos.html

[4] MILLER, J.-A. Punto de Capiton. In.: Polêmica política. Barcelona: Gredos, 2021. p. 31.

[5] LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In.: Escritos. Trad.: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, (1998) p. 259.

[6] RÊGO BARROS, R. “Sobre grupos”. 4º Encontro Americano – XVI Encontro Internacional do Campo Freudiano. 2009. Disponível em http://ea.eol.org.ar/04/pt/template.asp?lecturas_online/textos/rego_barros_sobre.html

[7] LACAN, J. La troisième. Op.cit. p. 34.

[8] LACAN, J. “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”. In.: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, (1998) p. 213.

[9] Ibid., p. 211.


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