Suponhamos (…) um analista que não tenha passado pela desapropriação do pensamento e que mantivesse com a teoria psicanalítica relações de proprietário, (…) de possuidor, comparáveis àquelas do avaro e seu cofrinho. Tal analista, em sua relação com a teoria, naturalmente, só pode ver o ganho da operação. (…) O que ele não vê é o que ele perde na operação. E, o que é que ele perde? (…) Perde a dimensão da topologia que existe nele, (…) a dimensão do lugar de enunciação, a dimensão da presença que nele pode responder presente, responder ao que ele enuncia[1].

 

O analista presente no espaço de um lapso? Essa frase que designa o tema do Eixo I do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano nos surgiu, primeiramente, como uma afirmação. Mas, no decorrer de nossas discussões percebemos que não era uma afirmação evidente, simples de se sustentar. Ela comporta um paradoxo que resolvemos explicitar, pontuando essa frase com uma interrogação. Esse paradoxo diz respeito ao lugar, ao modo de presença do analista quando se trata do inconsciente real, isto é, quando, em uma análise, o espaço de um lapso, como nos diz Lacan, já não tem nenhum impacto de sentido ou interpretação, único momento em que se pode ter certeza de se estar no inconsciente[2]. Trata-se de um espaço tênue que não suporta nenhuma amizade, nenhum laço, nenhuma transferência. Dizendo de outra maneira, estamos seguros de estarmos no inconsciente somente quando, paradoxalmente, não há conexão transferencial e, portanto, podemos nos perguntar: no espaço do inconsciente real, se a transferência está ausente, onde está o analista, como localizar sua presença? Ou, para retomarmos a citação de Lacan que serve de epígrafe a este texto, de que lugar um analista pode responder “presente”?

 

O inconsciente

No Seminário 11[3], Lacan nos apresenta o inconsciente tomado no registro do simbólico, como discurso do Outro, ou seja, o que se realiza apenas do lado de fora. Nesse contexto, quando Lacan diz que o conceito de inconsciente não pode ser separado da presença do analista, é porque, na dimensão do inconsciente simbólico, o analista ocupa o lugar do Outro como destinatário do discurso do analisante. No entanto, também nesse mesmo Seminário, podemos seguir Lacan em seu esforço para situar a presença do analista relacionada a um real que irrompe no âmbito do inconsciente simbólico. A presença do analista é, então, obstáculo à rememoração, meio pelo qual se interrompe a associação livre e a comunicação: presentificação do fechamento do inconsciente. Dessa perspectiva, vemos que a presença do analista é convocada no instante da tiquê, da falha que se repete no momento preciso do bom encontro. Trata-se do real como traumatismo, da repetição de algo inassimilável, inabsorvível pela cadeia significante, e que o analista é chamado a encarnar. Entretanto, se por um lado, podemos dizer que Lacan localiza nesse momento de seu ensino a incidência de um real que emerge nos movimentos de abertura e fechamento do inconsciente, por outro, podemos tomar como uma hipótese a ser discutida, que o impacto desse real, no que concerne à presença do analista, é amortecido pela existência do Outro como lugar do inconsciente. Assim, os impasses que essa formulação apresenta serão atravessados somente anos mais tarde quando Lacan, em seu último escrito[4], nomeia o inconsciente como real e o separa do inconsciente simbólico ou, como foi nomeado por Miller[5], do inconsciente transferencial. Por isso, não é sem razão que encontramos esse escrito como uma introdução a uma edição do Seminário 11, a edição inglesa.

Nesse texto, Lacan nos apresenta uma apreensão do ato de falar completamente distinta do que ele havia proposto até então: fala-se sozinho, para si mesmo, e não para o Outro. Essa formulação não deixa de evocar o Seminário 20: fala-se para gozar e não para se comunicar[6]. Surge, então, outra forma de apresentação do inconsciente na qual o dizer se fecha sobre si mesmo, tornando precária a transição ao Outro. Nesse registro, a fala passa a presentificar o inconsciente não como discurso do Outro, mas como satisfação do Um sozinho, “que não quer dizer nada a ninguém”[7]. Quanto à experiência analítica, isso conduz a um impasse relativo à transferência, colocando um problema com relação ao modo de presença do analista e suas possibilidades de intervenção, pois o analista, diferentemente do que propunha Lacan no Seminário 11, deixa de ser situado como fazendo parte do inconsciente, isto é, como destinatário do discurso do analisante. Assim, o problema não é mais situado entre o sujeito e o Outro, mas entre o falasser e seu próprio gozo. Não se trata mais de uma falha no simbólico, mas de um furo no real, ou seja, de um limite que recai sobre o gozo. Nesse contexto, se o analista pode ser considerado, ainda, como uma manifestação do inconsciente, é porque sua presença é passível de dar corpo ao inconsciente real, ao que está fora da transferência, ao que na fala do paciente se apresenta como obstáculo, ao que não chega a se satisfazer, ao que se equivoca: trata-se do inconsciente sem o Outro.

Nessa dimensão do inconsciente, não encontramos o apoio do discurso do Outro para significar o lapso. Como sublinha Lacan no Seminário 24, a relação com o Outro está rompida[8], trata-se da experiência de que o Outro não responde, é o que Lacan designa com a notação S(Ⱥ). Então, se existe uma resposta, uma presença, ela não vem do Outro. Como apreendê-la? Nesse mesmo Seminário, Lacan utiliza uma expressão curiosa para se referir à fala nesse espaço da ausência do Outro e da concomitante prevalência do gozo: ele nos diz que o “Um dialoga sozinho”[9]. Portanto, podemos pensar que, em seu cerne, a experiência analítica é um diálogo sem Outro, ou melhor dizendo, um diálogo com o Outro que não existe. “Existe o Um, mas não existe nada do Outro”[10].

No entanto, mesmo se considerarmos a provocação feita por Miller quando nos diz que em seu último escrito “Lacan começa a sonhar com uma análise sem analista”[11], não podemos descartar o fato de que a psicanálise continua sendo praticada aos pares. Por conseguinte, somos levados a atestar que, se a prática psicanalítica pode prescindir do Outro, ela não pode prescindir do analista, ou seja, nesse diálogo, é preciso um analista para presentificar o que existe de positivo, de inegável no que diz respeito ao gozo, mas também, o limite dessa existência, dessa satisfação, ou seja, o que faz furo. Podemos dizer, então, com Lacan[12], que, na dimensão do inconsciente real, a presença do analista é o que faz esse furo existir de verdade, existir como esse sens-blanc, que, no Seminário 24, aparece escrito de um modo que podemos traduzir como “sentido branco”, como “sem sentido”. Logo, diante da inexistência do Outro, a presença do analista não se apaga. Ela se torna, ao contrário, decisiva e, podemos ligá-la às condições pelas quais, segundo Lacan, um analista é digno de confiança[13], ou seja, ele é digno de confiança, na medida em que sustenta a barra da inexistência do Outro[14], desta forma, diz Lacan, “a barra é levada a um ponto de extrema incandescência”[15], transformando esse furo, essa inexistência, em uma incandescente presença. Portanto, é essa parte não simbolizada do gozo, que convoca a presença do analista, mas para torná-la presente será preciso dar-lhe vida, encarná-la, será preciso que o analista compareça com seu corpo, em carne e osso.

 

O corpo

Quando se trata do inconsciente real, somos confrontados com “um princípio de identidade totalmente distinto: o corpo”[16]. É o corpo que surge no lugar do Outro que não existe. Não o corpo do Outro, mas o corpo próprio como Outro, como estrangeiro e que vem dar consistência ao real de um gozo que está fora de qualquer significação. Como nos esclarece Miller,

 

trata-se de um corpo que se tem e não de um corpo que se é o que implica que tenhamos uma relação de estranheza com ele. Tudo que estava investido no Outro é aqui retomado sobre a função originária da relação com o próprio corpo como uma ideia de si mesmo e que Lacan situa com a velha palavra ego. Lacan sublinha cuidadosamente que a definição do que se é como ego não tem nada a ver com a definição do sujeito que passa pela representação significante. O ego se estabelece a partir da relação com um-corpo (un-corp)[17].

 

O ego, então, conjuga gozo e imagem. “Não há aí identificação, há pertencimento, propriedade”[18]. Assim, se o inconsciente simbólico é separado do corpo[19], o inconsciente real, ao contrário, pressupõe o corpo, convoca a presença do corpo vivo como encarnação do gozo. O Um do gozo só se sustenta com o corpo, é este que lhe dá consistência.

A partir daí, podemos entender por que Miller afirma que “o corpo é o que o ser humano tem que trazer para a análise”[20]. Essa afirmação serve para o analisante, mas também para o analista, conferindo à experiência analítica uma dimensão topológica, na qual o analista se faz presente para o analisante, ao “condensar um gozo fora do corpo para outro corpo diferente do seu”[21]. É desse lugar que, retornando à epígrafe de Lacan, um analista pode responder “presente”, responder ao que ele enuncia.

Constatamos, então, que certamente a presença do analista não se reduz à simples presença do corpo do analista, mas será que tal presença, a do analista, é possível de se realizar sem o corpo? É possível tocar o real sem o corpo? Essa questão tem sua importância renovada em nossos dias com os atendimentos online que se intensificaram durante a pandemia. O relatório do Comitê de Ação da Escola Una, redigido por Ana Lydia Santiago, ressalta esse problema nos seguintes termos: “sem a presença em carne e osso para perturbar o fascínio da boa forma, é possível tocar o arrebatamento do gozo[22]”?

Um aspecto dessa discussão nos pareceu relevante. Embora o corpo não se evapore, a consistência do corpo, como esclarece Lacan, é mental e não física. O que pode ser constatado no fato de que um esquizofrênico pode ter a experiência de um corpo despedaçado, mesmo que seu corpo esteja em perfeitas condições físicas. Sendo assim, por que o corpo em carne e osso seria fundamental, indispensável, para que uma análise aconteça? É que, para existir, o gozo precisa de um corpo vivo. A experiência analítica não é feita para os anjos, ou seja, para os que não têm um corpo, ela não é uma abstração, não se trata de simples jogos de palavras. O real em jogo em uma análise não é algo ao qual se chega por uma dedução lógica, uma análise implica um trajeto do corpo. Só existe uma maneira de fazer existir o furo: passando por ele, com o próprio corpo, ou seja, é preciso experimentá-lo.

Miller, durante a Grande Conversação, reconhece os efeitos terapêuticos e o bom uso que se pode fazer dos atendimentos online, quando os corpos estão impossibilitados de se deslocarem. Constata-se, segundo ele, certa modalidade de presença pela palavra e pela imagem, todavia, falta o real que necessita do corpo vivo. Sendo assim, a sustentação da presença do analista, do seu dizer, não está do lado da lógica articulada: para fazer frente ao silêncio do real, é preciso a presença perturbadora do corpo.

 

Uma presença que perturba a defesa

O percurso que fizemos até agora nos leva a afirmar que, quando abordamos a presença do analista a partir da perspectiva do inconsciente real, nos deparamos com o esforço de explorar outra dimensão da psicanálise, situável para além daquela que transcorre no âmbito do recalcado e de sua interpretação. Trata-se, conforme esclarece Miller, de “explorar a defesa contra o real sem lei e fora do sentido[23]”. Trata-se de perturbar a defesa contra o real, o que redefiniria o desejo do analista como “um desejo de alcançar o real, de reduzir o Outro ao seu real e liberá-lo do sentido”[24].

Mas o que quer dizer perturbar a defesa? Perturbar a defesa é diferente de interpretar a defesa. A interpretação conserva uma ligação com os efeitos de sentido e com os efeitos de verdade que não convém à defesa. A defesa, de acordo com Lacan[25] qualifica a relação inaugural do sujeito com o real. Desde Freud[26], a defesa é uma maneira eletiva de lidar com o quantum de energia, com o afeto que escapa à representação e se apresenta como um elemento incompatível com o eu. De acordo com Freud, trata-se de um ato voluntário. Em termos lacanianos, podemos dizer que o sujeito elege, por meio da defesa, uma forma de lidar com o real, com o gozo traumático que escapa à representação e que, portanto, não é incluído no eu.

Esse gozo incompatível, inconveniente, por não convir à relação sexual, é expulso do eu e resta isolado, sozinho, sem ligação, como um elemento estranho, isto é, um sintoma. Logo, defendemo-nos do real criando um sintoma. O sintoma é, portanto, essa disfunção, esse elemento estranho, que nos concerne, mas no qual não nos reconhecemos.

Aqui, o corpo está implicado no assunto, é o que leva Lacan, ao final de seu ensino, a definir o sintoma como um acontecimento de corpo. O sintoma está estreitamente relacionado ao fato de se ter um corpo. Portanto, se a interpretação tem a ver com o recalcado e recai sobre a representação, a defesa, por sua vez, tem a ver com o gozo e, perturbá-la significa, do lado do analista, que ele faça aparecer o real que esse gozo implica e, do lado do analisante, que este consinta com o nãotodo desse gozo, com o furo, com o não sentido que o sintoma comporta. O gozo não é, então, algo que pode ser interpretado, e, assim, para o analisante, “não existe meio de fazer de outro jeito do que receber de um psicanalista o que abala sua defesa”[27].

Mas, para que isso aconteça, é preciso mais do que palavras. É preciso que o analista opere com o próprio corpo como agente do trauma[28], fazendo de seu corpo um instrumento que perturbe a defesa, presentificando com o próprio corpo o gozo excluído. Só assim, através do corpo, a materialidade do gozo torna-se consistente ou “corps-sistant[29], como escreve Lacan, tornando possível ao falasser, por meio da experiência analítica, conhecer seu sintoma, relacionar-se com ele, tal como faz com sua imagem e, assim, poder manipulá-lo, e com ele se virar.

Na orientação lacaniana, encontramos algumas formas por meio das quais um analista se faz presente, perturbando a defesa: como “sinthoma[30], como “intruso”[31], como “uma ajuda contra”[32], ou ainda, respondendo do “lugar de mais ninguém”[33].

Aguardamos de vocês, na forma de recortes clínicos, as contribuições da prática da psicanálise lacaniana sobre como o analista se faz presente nas situações em que ele próprio se torna a manifestação do inconsciente, formulado como um limite à transferência. É a partir dessas contribuições que esperamos esclarecer, um pouco mais, essa paradoxal presença do analista no espaço de um lapso.

 

Cartel: Andrea Reis, Carla Serles, Cristina Maia, Glória Maron, Ludmilla Féres Faria, Nohemí Ibañez Brown, Niraldo de Oliveira Santos, Simone Souto (relatora), Sônia Vicente, Tânia Martins.

 

 

 

[1] LACAN, J. Le séminaire, livre XXIV: L’insu que sait de l’une-bévues’aile à mourre (1976-77). Lição de 8 de fevereiro de 1977. Inédito.

[2] _________ “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 567.

[3] _________ O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 119.

[4] _________ 2003, p. 567.

[5] MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2014, p. 13.

[6] LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 148.

[7] MILLER, J.-A. Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2012, p.106.

[8] LACAN, J. 1976-77, lição de 10 de maio de 1977.

[9] _______ ibid., lição de 11 de janeiro de 1977.

[10] __________. ibid., lição de 10 de maio de 1977.

[11] MILLER, J.-A. op. Cit., 2014, p. 92.

[12] LACAN, J. op. Cit., 1976-77, lição de 10 de maio de 1977.

[13] _________ ibid., lição de 18 de janeiro de 1977.

[14] _________ ibid., lição de 18 de janeiro de 1977.

[15] _________ ibid., lição de 08 de fevereiro de 1977.

[16] MILLER, J.-A. op. cit., 2014, p. 107.

[17] ____________ ibid., p. 108.

[18] ____________ ibid.

[19] ____________ ibid., p. 81.

[20] ____________ ibid., p. 108.

[21] LAURENT, É. O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2018, p. 65.

[22] SANTIAGO, A. L. Relatório do Comitê de Ação da Escola Una, 2022. Disponível AQUI

[23] MILLER, J.-A. “O real no século XXI”. Revista Opção Lacaniana, n° 63. São Paulo, 2012, p. 11-20.

[24] ____________ ibid., p. 17.

[25] LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 43.

[26] FREUD, S. “As neuropsicoses de defesa”. Obras completas, v. III. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1894/2006.

[27] LACAN, J. 1976-77, lição de 11 de janeiro de 1977.

[28] LAURENT, É. “A ordem simbólica no século XXI. Consequências para o tratamento”. Opção Lacaniana, n° 62. São Paulo, 2011, p. 88.

[29] LACAN, J. op. Cit., 1976-77, lição de 14 de dezembro de 1976.

[30] _________ O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 131.

[31] MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 41.

[32] LACAN, J. op. cit.,2007, p. 131.

[33] _________ “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: “Psicanálise e estrutura da personalidade”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 674.


ABRIR EM PDF