No momento em que ele parece pronto para formular alguma coisa de mais autêntico, de mais quente do que jamais pôde atingir até então, o sujeito se interrompe e emite um enunciado que pode ser este:

Eu realizo de repente o fato da sua presença.[1]

 

Só então temos a certeza de estar no inconsciente…

digo: o inconsciente, ou seja, o real.[2]

(Jacques Lacan)

 

Do primeiro seminário ao último escrito de Lacan, a presença do analista surge como uma disrupção, num instante, impossível de dizer. Uma presença que faz par com a urgência, verifica o real, abre passagem ao que é da existência.

Podemos ler sua presença como uma evidência que desponta dos testemunhos dos analisantes de Lacan. Chama a atenção como ali, o analista, em ato, corta a rotina como um objeto sonante, perturbador, acolhedor, nunca o mesmo, no par e passo da pulsação temporal que escande o dizer. A presença do gesto, da modulação da voz, seu tom, sua ternura, sua cólera, seu cinismo, seu silêncio participam do tecido de um laço a dois. Um laço que, fique claro, não era entre Lacan e seu analisante, mas um laço àquilo que, da presença do analista, se destaca e se solda ao sinthoma de cada um. Lemos em cada relato um Lacan diferente, presente em cada um como em nenhum outro – ele nunca prescindia do confronto dos corpos[3] como condição para entrada no discurso analítico. E não era só uma questão de estilo. Lacan perseguia a existência. Com seu ato, visava perturbar a defesa, perfurar sua ficção, percutir a moterialité[4] que faz vibrar o real no dizer. E para tanto, aí há de estar um analista, presente.

Dito de outro modo, face ao real que não é o mundo, pois não há nenhuma esperança de alcançar o real pela representação[5], o simbólico só pode mentir, mas a matéria não mente: o gozo existe. Então, só temos o corpo como suporte, não há outro, para vibrar e repercutir o que é da existência. O analisante fala, o analista corta. Não é mais a palavra que faz a coisa, mas o corte que tem o poder de mudar a estrutura das coisas.[6] O corte abre à indeterminação e confere à interpretação analítica um novo estatuto, descolado do sentido, uma aposta no inesperado que perfura o determinado e inaugura um novo modo de ler, de dizer, de fazer, de viver!

O novo é sutil e não acontece a qualquer tempo. Só no tempo que faz obstáculo ao ser. O passado é um não ser mais, o futuro é um não ser ainda e o presente não dura[7], mas existe e cintila no fulgor sem sentido de um laps[8]. Portanto, o acontecimento analista faz par com o tempo da existência, de onde não se sai: o tempo do real! Afinal, o tempo é curto, mas tem espessura libidinal, e é nesse tempo precipitado que se esconde a incidência do gozo.[9] O que faz de cada sessão única e instala o tempo como analista[10], precisa Miller, tempo que atualiza o trauma como furo, presente no corte e costura de uma análise, à espreita do imprevisto que perfura o inconsciente repetição para dar lugar ao fulgor do inconsciente intérprete, onde o sujeito eclode e confere à presença do analista um valor de real[11] num instante fortuito de uma prática sem valor.[12]

Assim, quando Romildo do Rêgo Barros, Diretor da EBP, enunciou o título do 24º Encontro Brasileiro de Psicanálise do Campo Freudiano – Analista: presente! –, lemos aí um convite que entrecruza dois caminhos enodados sob um mesmo giro: se, por um lado, evoca o analista presente na experiência analítica, convidando a investigar o estatuto da presença no inconsciente sob transferência, e também, como sujeito suposto saber como operar com seu ato no espaço de um lapso e no tempo de duração de uma análise, por outro lado também evoca a presença da psicanálise nas questões de sociedade. Estamos aí implicados.

A psicanálise já é um fato de sociedade. Seus vestígios encontram-se inscritos nos templos, escolas, tribunas dos almoços em família e banheiros de botecos. As palavras ditas e escritas de Freud e Lacan participam do discurso do mestre de nossa época, marcando com suas patas a mutação dos tempos atuais. Fato é que o mestre a consome e a prolifera como uma epidemia. Portanto, engajar-se nos debates em pauta, infiltrando ali o grão da diferença absoluta que não se deixa normatizar, concerne à ética da Psicanálise, em sua função compensatória, como pulmão artificial. Analista presente, então, brilha, mais ainda, como um aceno: interpretar o grão de real que sopra em nossa época. Um respiradouro, face aos impasses crescentes da civilização, que hoje se impacta com as sensíveis transformações em seu tecido social: a relação sexual é promessa que se vende por um match do cupido algoritmo; a tela da realidade se justapõe aos écrans dos dispositivos on-line, que dispensam o confronto dos corpos; as informações deslizam pelos dedos; o saber mora nas nuvens; a autodeclaração ignora o equívoco e inscreve a ontologia na cartografia dos direitos humanos – digo, logo sou – graças a uma ideia de democracia que, na era da informação, galopa a mil por hora no império do gozo do Um sozinho, que encontra abrigo em aldeias identitárias.

Nenhuma nostalgia!

Comecemos então por perguntar sobre a forma como a existência e o impossível se enlaçam e perfuram o espírito da época. Afinal, a experiência analítica vocifera: o ser sexuado só se autoriza de si mesmo e de mais alguns outros[13], e o analista, também! A Escola é uma comunidade dos que não fazem comunidade; a lógica da segregação é a coletiva; a psicologia individual é a social. Como a Escola-sujeito pode fazer par com o estado de urgência em curso nas mutações do laço social? Como ler com Lacan os tempos que correm? O que a psicanálise ensina, como ensiná-lo?

De repente, eu realizo o fato de sua presença no que se passa, se perde, se transforma. O insondável, o incabível, o irredutível se faz intruso e, num claro instante, esclarece que há um infinito que sopra da junção mais íntima de um laço a dois.

 

Faz escuro, mas eu canto…[14]

Analista: presente!

 

 

Fernanda Otoni Brisset

Coordenadora da Comissão Científica do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano

 

 

 

[1] LACAN, J. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. p. 52.

[2] LACAN, J. “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11” (1976). In.: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, (2003) p. 567.

[3] LACAN, J. O seminário, livro19: …ou pior (1971-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012. p. 220.

[4] Neologismo criado por Jacques Lacan reunindo na palavra moterialité os vocábulos mot (palavra) e matérialité (materialidade).

[5] LACAN, J. La troisième. Paris: Navarin Éditeur, 2021. p. 17.

[6] MILLER, J.-A. “Os Troumains”. Lição de 2 de maio de 2007 do curso de J.-A. Miller A orientação lacaniana. O ultimíssimo Lacan (2006-2007). Versão estabelecida por Pascale Fari e traduzida em português por Vera Avellar Ribeiro. Disponível em https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/20-03-02_los-trumanos.html

[7] MILLER, J.-A. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: EBP, 2000. p. 61

[8] Expressão abreviada da palavra “lapso”, usada por Jacques Lacan em “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11” (op.cit., p. 567).

[9] MILLER, 2000, op.cit., p. 69.

[10] Ibid., p. 52.

[11] Ibid., p. 60.

[12] MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2014. p. 274.

[13] LACAN, J. Le séminaire, livre XXI: les non-dupes errent. 1974. Inédito.

[14] MELLO, T. Faz escuro mas eu canto. São Paulo: Global Editora, 2017.


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